sábado, 30 de abril de 2011

Uma Carta Americana contendo reflexões sobre as ordens que Lagarde publicou durante Abril de 1808



Carta de Plácido a Venâncio 



Abril de 1808 


Temos novo Intendente da Polícia 1; e o General em Chefe é também Duque de Abrantes por graça do Imperador dos franceses. Como os Títulos de Portugal ficam provavelmente diminuídos pela Deputação forçada que deste Reino saiu há pouco tempo para França, substituem-se novos para conservar o esplendor da Monarquia 2
Em túrgido estilo se anunciou o segundo despacho na Gazeta de 5 do corrente; e curiosos que estranharam o fraseado, pesquisaram e souberam que o mesmo Intendente era agora o compilador dela. Assegura-se que este homem comprara em França, por avultadas somas, o cargo que hoje ocupa em Lisboa; e que o Imperador, sabendo quantos prodígios se têm operado no mundo pela palavra, encarregara a este Apóstolo a missão de Portugal. Não sei qual será o resultado futuro dos seus trabalhos; mas o que se tem ordenado até agora em seu nome excita por um lado a mofa, e por outro a indignação; e não me parece que estes dois sentimentos sejam muito favoráveis às vistas do Conquistador. 
Pela primeira Ordem de 7 deste mês, manda que as gazetas, cartas ou proclamações que nos chegarem da Esquadra Inglesa sejam denunciadas na Intendência; e que não comuniquemos novidades suspeitas ao Governo nos lugares públicos, sob pena de prisão; além da que nos impõe, obrigando-nos a gemer e calar. Não esquece que serão recompensados os espias e delatores 3
Por uma de 9, declara réus de morte os cães existentes em Lisboa, e para as execuções promove todos os soldados franceses a carrascos (cargo bem digno de tais indivíduos), tendo por gratificação a pele do padecente. 
Por outra de 11, dá finas providências para não se venderem chaves sem fechaduras; nem molhos de chaves velhas; nem chaves novas a qualquer pessoa; e tantas vezes fala em chaves, que forma uma nojosa arenga de seis artigos, e de nenhuma utilidade. 
Ultimamente, como num bairro da cidade alguns moradores castigaram numa taberna a petulância de cinco soldados franceses, ordena, para exemplo – o discípulo de Robespierre –, que dos moradores das ruas em que se cometeu a desordem sejam logo presos doze entre os que tiverem pior conduta e fama; e que as tabernas ou casas de povo fiquem por seis meses fechadas, e os seus donos presos, se não denunciarem alguns dos delinquentes. No resto da Ordem, que contém dez artigos, defende-se de novo o uso das armas, que tanto susto causam aos nossos inimigos 4
Para prender só os doze homens que num bairro tenham a pior fama, é indispensável averiguar anteriormente o procedimento de todos; cuja diligência não pode fazer-se logo, como manda a vivacidade francesa. Conservá-los presos, se não nomearem réus, não serve para descobrir a verdade, mas para acumular testemunhos falsos, que multiplicarão as prisões e as desgraças; e ordenar, porque houve uma bulha numa taberna, que se fechem todas as do bairro, é fazer justiça de Herodes ou assustar miseráveis para que procurem dobrar com dinheiro o ânimo do magistrado, e já dizem que não é difícil aplacar com o metal louro, que se ri da traça, as iras desta Divindade. 
A Lei, meu amigo, só castiga o delinquente; e a humanidade ordena, e os melhor criminalistas recomendam, que se deixem antes cem culpados impunes, do que se castigue um inocente. Porém, os que governam com baionetas não adoptam máximas de moderação; e se este homem fora justa, não seria empregado por Bonaparte. Não se cuida agora de reger povos exercitando ditames de justiça; convém fasciná-los com ideias ilusórias e assombrosas, fazê-los escravos e empobrecê-los; e quem melhor desempenha a honrada comissão, mais lugar consegue na privança do Soberano. Contudo, enganar uma nação, não é obra que se incumba a néscios; e eu começo a desconfiar do saber de Napoleão, pela escolha dos enviados. Já conhecemos pelo dedo o gigante Junot, e vemos que Lagarde não é mais que um presunçoso pedante, que na época em que se nos prometem reformas sábias e extirpação de abusos, trata de chaves velhas e de cães, e mostra na punição dos delitos que ou carece das primeiras ideias de Direito Criminal, ou as despreza por cruel 5

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Notas do autor: 



2. Também porque estavam extintos os Títulos em França, se criaram novos por Decretos de Napoleao. Tal é o do 1.º de Março de 1808, que se refere ao Senatus-Consulto de 14 de Agosto de 1806. 


3. Deu-se esta Ordem em consequência de um Decreto de Junot de 5 de Abril, que proibia de novo a comunicaçao com a Esquadra [inglesa].  


4. A primeira providência sobre as armas deu-se em 4 de Dezembro de 1807, a segunda em 15 de Fevereiro, esta de que fala o autor em 29 de Abril, e a última em 24 de Julho de 1808. 

5. Nota-se em duas Gazetas do mês de Abril uma contradição, que mostra bem quanto eram superficiais os engenhos que nos governavam. Na de 16, para que se formasse alta ideia da polícia, asseverou o Intendente que em Lisboa não se ouviu falar de delitos triviais; e na de 19 disse o General que tendo-se multiplicado infinitamente os roubos tanto em Lisboa, como em todo o Portugal, ordenava que o Tribunal Especial (criado por Decreto de 8 do mesmo mês) conhecesse provisoriamente do crime de roubo. Duvido que se possam achar cabeças mais ocas! 


[Fonte: “Carta XLVIII”, in Cartas Americanas. Publicadas por Theodoro José Biancardi [1.ª ed., 1809], Lisboa, Impressão de Alcobia, 1820, pp. 161-165. Inserimos os itálicos originais e as notas do autor]. 


sexta-feira, 29 de abril de 2011

Carta de Junot a Napoleão (29 de Abril de 1808)

Aviso da Secretaria de Estado da Guerra e da Marinha (29 de Abril de 1808)




[Fonte: Primeiro Suplemento à Gazeta de Lisboa, n.º 17, 29 de Abril de 1808].

Notícias publicadas na Gazeta de Lisboa (29 de Abril de 1808)



Lisboa, 29 de Abril. 


Mr. Seniavin, Almirante russiano [sic], deu os dias passados, a bordo da sua nau, um grande jantar ao Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Duque de Abrantes, ao seu Estado-Maior e aos principais membros do Governo. Reinou nessa ocasião, bem como sempre, a mais ingénua cordialidade entre os indivíduos de ambas as nações, e fizeram-se brindes à saúde e à união dos dois grandes Monarcas, em que estão agora fitos os olhos de todo o universo, e em cujas mãos se acham os destinos de tantos povos. Sua Excelência o General em Chefe foi recebido a bordo da esquadra russiana com as honras devidas ainda menos àsua graduação que ao seu alto nome, aos seus títulos e à sua glória pessoal. 

A merecerem crédito algumas cartas de Madrid, Sua Majestade o Imperador e Rei concedeu uma audiência ao novo Rei de Espanha nas margens do Guipúzcoa, ao pé de Bayonne. Com impaciência se esperam saber os resultados daquele encontro, que tanto deve influir nos destinos da Espanha. 

Por decreto do Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor General em Chefe de 27 deste mês, foi mr. Devilliers nomeado por Secretário Geral da Intendência Geral da Polícia do Reino. 

Por outro decreto da mesma data, foi mr. Perron nomeado por Delegado de Polícia no Porto, debaixo das ordens do Senhor Conselheiro do Governo, Intendente Geral da Polícia do Reino [Lagarde]. 

Por cartas de Paris consta que o Senhor General Loison, Governador das Tulherias, Comandante duma das Divisões do Exército de Portugal, foi promovido por Sua Majestade à dignidade de Conde do Império, com as rendas de um feudo considerável. Alguns outros oficiais Generais do mesmo Exército receberam também a sua nomeação em qualidade de Barões. 

[Fonte: Primeiro Suplemento à Gazeta de Lisboa, n.º 17, 29 de Abril de 1808].


Ordem de Lagarde motivada por uns incidentes em Lisboa (29 de Abril de 1808)



O Conselheiro do Governo, Intendente Geral da Polícia do Reino de Portugal, participou a Sua Excelência o Duque de Abrantes, General em Chefe do Exército, os excessos recentemente cometidos no dia Sábado, 23 deste mês, nas Ruas Suja, da Amendoeira, da Mouraria, e Arco do Socorro. Sua Excelência, que tanto deseja fazer justiça ao bom espírito de que é animada a cidade de Lisboa, ouviu com o mais vivo desprazer que um ajuntamento tumultuoso que houve nestas quatro ruas tomara parte numa rixa particular entre alguns militares  (actualmente entregues a um Conselho de Guerra), donde resultaram violências culpáveis contra cinco soldados franceses, alheios daquela rixa, que pacificamente por ali transitavam; me encarregou de declarar que, no caso de se repetirem semelhantes delitos, serão deles responsáveis os bairros da cidade em que acontecerem, e que punirá grave e exemplarmente o menor atentado contra os soldados do seu Exército. E querendo Sua Excelência prevenir desde já o perigo de tumultos desta natureza, me ordenou que publicasse e fizesse executar as providências seguintes:

Art. I. Dos habitantes ou moradores nas Ruas Suja, da Amendoeira, da Mouraria, e Arco do Socorro, serão logo presos doze dos de pior fama e mais suspeitos pela sua anterior conduta, e conservados em prisão por três meses, caso não se declarem os verdadeiros instigadores e autores das desordens cometidas nas mesmas ruas no dia 23 deste mês.

Art. II. Todas as meretrizes que moram nestas quatro ruas serão obrigadas a evacuá-las inteiramente dentro de quatro dias, o mais tardar, depois da afixação da presente ordem, sob pena de serem logo presas, rapadas e desterradas de Lisboa e seu termo, no caso de se encontrarem depois daquele prazo.

Art. III. Todas as baiucas, tabernas ou casas de povo das quatro ruas acima referidas serão fechadas dentro de 48 horas, sem poderem tornar a abrir-se antes de passarem 6 meses, salvo se o dono denunciar alguns dos que tiverem tido parte nos excessos cometidos. Esta denúncia deverá fazer-se na Intendência Geral da Polícia do Reino (no Rossio) ou perante o Corregedor ou  Juiz do Crime do bairro.

Art. IV. Em caso de rixas, desordens ou qualquer tumulto nas praças públicas e ruas desta capital, é proibido a todo o habitante sair de casa ou loja com qualquer arma ofensiva ou defensiva, ou entrar em algum ajuntamento; a guarnição, a Guarda Militar da Polícia e outros oficiais de justiça ou agentes da polícia são os únicos encarregados de manter a ordem e tranquilidade em semelhantes ocasiões.

Art. V. Fica expressamente proibido na cidade de Lisboa e seus arrebaldes conservar em casa, trazer, fabricar ou vender espécie alguma de armas proibidas, entre as quais se contaram desde este momento os paus com ferrões, vulgarmente conhecidos pelo nome de chuços e cajados. Os que ainda os conservarem serão obrigados a entregá-los dentro de 48 horas na Intendência Geral da Polícia ou ao Corregedor ou Juiz do Crime do seu respectivo bairro; os quais os receberão, fazendo uma lista que me será remetida, o mais tardar, dentro de 8 dias, para eu determinar o lugar onde definitivamente devem depositar-se.

Art. VI. Aqueles em cuja casa, 4 dias depois da afixação do presente [edital], se acharem em Lisboa e seus arrebaldes chuços e cajados, serão condenados, por cada um deles, além de um mês de prisão, em 16.000 réis de multa para o denunciante.

Art. VII. Fica igualmente proibido conservar em casa, por qualquer motivo que seja, trazer, fabricar ou vender espécie alguma de punhal, estoque, ou espingarda de vento, ou outras armas proibidas pelas leis anteriores, sob pena de serem entregues à Comissão Especial [sic] estabelecida pelo decreto de 8 deste mês, para serem julgados conforme as Leis do Reino, e além disso condenados a uma multa de 48.000 réis para quem denunciar a existência de tais armas, onde quer que estiverem, depois do prazo de 6 dias fixado para o depósito, seja na Intendência Geral, seja perante o Corregedor ou Juiz do Crime do distrito do possuidor.

Art. VIII. Todos os que, não sendo funcionários militares ou civis, actualmente empregados, se acharem pelas ruas de Lisboa ou seus arrebaldes com armas ocultas, menos que não sejam munidos de uma licença formal e posterior à entrada do Exército francês, serão presos e levados à Intendência Geral para serem conduzidos perante a Comissão Especial, e julgados segundo o rigor das Leis contra os que usam de armas proibidas.

Art. IX. O artigo VII da presente ordem sobre punhais, estoques, espingardas de vento e outras armas proibidas é igualmente aplicável às províncias, e aí receberá a sua execução perante os Corregedores mores, Corregedores ordinários, Juízes de Fora e Juízes ordinários, doze dias, quanto muito, depois da sua publicação na capital de cada província.

ART. X. Todas as autoridades ligadas à polícia, especialmente a Guarda Militar de Lisboa, ficam encarregadas de concorrer, cada uma pela parte que lhe toca, para a mais severa execução da presente ordem, que será impressa, publicada e afixada em toda a parte onde preciso for. 

Lisboa, 29 de Abril de 1808. 

P. Lagarde. 



[Fonte: Suplemento Extraordinário à Gazeta de Lisboa, n.º XVIII, 3 de Maio de 1808].


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Nota:

Na última folha da versão desta ordem publicada em edital, acima inserida [e extraída da compilação Discurso do Imortal Guilherme Pitt...], pode ser lida a seguinte anotação manuscrita: “Estes grandes excessos foram que na Rua Suja correram [?] a facadas quantos soldados franceses ali apareceram – morrendo alguns deles”.

Acúrsio das Neves conta outra versão: “Aconteceu nesta mesma ocasião [da tentativa de captura do brigue Gaivota] uma desordem nas ruas Suja, da Amendoeira e vizinhas, que não teve outro princípio que o de uma pendência particular entre alguns soldados das três nações [portuguesa, espanhola e francesa], de que resultou ficarem mortos um português e um francês, sem outra consequência que a de concorrer ao motim uma grande parte do povo daquelas ruas, como era de esperar. Lagarde, de acordo com Junot, figurou disto uma sublevação, mandou prender doze homens dos mais suspeitos pela sua anterior conduta (como se a sua anterior conduta os fizesse responsáveis por crimes em que não tiveram parte), dentre os habitantes das mesmas ruas, para serem conservados por três meses na prisão, caso não declarassem os verdadeiros autores ou instigadores daquela desordem. Mandou fechar todas as tabernas, baiucas e casas de pasto daqueles sítios, por tempo de seis meses, salvo se o dono denunciasse algum que tivesse tido parte no motim. Isto é conhecer as verdadeiras regras da jurisprudência criminal, e uma bela teoria em matéria de delações! Tomou daqui pretexto para fulminar novas proibições sobre o fabrico, uso e conservação de todo o género de armas ofensivas e defensivas em Lisboa e seus arrebaldes, compreendendo até os cajados. Ainda falta o mais galante: mandou despejar das mesmas ruas todas as meretrizes, dentro de quatro dias, [sob] pena de serem presas, rapadas e desterradas. Podem ver-se estes chefes de obra [=obras-prima] da polícia francesa no edital de 29 de Abril[Fonte: José Accursio das Neves, Historia Geral da Invasão dos Francezes em Portugal - Tomo II, Lisboa, 1810, Officina de Simão Thaddeo Ferreira, pp. 229-230].


Carta de Geoffroy Saint-Hilaire ao seu sogro, Isidore-Simon Brière de Mondétour (29 de Abril de 1808)

Talavera de la Reina, 29 de Abril [de 1808].


Meu caro pai*:

Aqui estamos a caminho de Lisboa, a duas jornadas de Madrid, numa bonita cidade chamada Talavera de la Reina. Na véspera da minha partida jantei na casa do Sr. Dennié [Intendente-Geral do Exército francês], que me disse que a sua mulher não tinha recebido nenhuma das suas cartas, ainda que ele tenha tido o cuidado de enviá-las pelo correio dos despachos [ou seja, o correio oficial]: ele supunha que este meio era o menos seguro, por causa de algumas medidas policiais que são usuais em certas épocas de operações militares. Eu tinha feito uso dos mesmos meios, e portanto fiquei preocupado em relação ao destino das cartas que escrevi à minha mulher**. Preocupa-me pensar que ela pode ter receado de tal modo a minha sorte que não sai da cama, o que acontecerá se não lhe chegar nenhuma das minhas cartas: é para evitar este inconveniente que arrisco [enviar] esta carta, ignorando se ela vos alcançará.
Estou numa estrada bem tranquila, cujos únicos inconvenientes são os maus albergues: seja como for, fiz-me acompanhar por dois militares que regressavam a Lisboa, os quais alimento com as minhas provisões. Estas precauções são inúteis; não as vou ostentar, para não ter de revelar demasiada pusilanimidade; contudo, participo-vos isto para vos tranquilizar acerca do meu caminho e para vos provar que sou exagerado em todos os meios que me devem permitir uma viagem feliz.
Também tomei precauções contra os maus albergues: trago comigo uma cama completa, madeiras de cama dobráveis, etc., por isso encontro-me bastante bem. Temos também bastantes provisões, nas quais não tocamos a não ser nos casos em que não encontramos absolutamente nada. Congratulamo-nos por estas precauções, dado que se pedimos alguma coisa, respondem-nos: Dai-nos o dinheiro, vamos comprar os ovos na casa deste, o vinho na daquele, etc., e a maior parte das vezes voltam dizendo que os comerciantes estão sem mercadorias. A Espanha está verdadeiramente na barbárie mais vergonhosa em relação a muitas coisas.
Não é que entre os espanhóis não haja muitos homens instruídos; os camponeses que sabem ler são proporcionalmente mais numerosos do que na França, e todos os estadistas um pouco relevantes são latinistas muito bons. Todos os notários do campo conversam admiravelmente em latim, o que se deve sem dúvida ao seu zelo pela religião; queremos conhecer a língua com a qual damos graças a Deus.
O General Leroy veio ver-me à cama, na véspera da minha partida, para me trazer uma carta para o seu cunhado, o General Kellermann, que exerce o comando a seis horas de Lisboa, em Setúbal. O General Loison está a quatro horas dessa capital e não no Porto, como me tinham inicialmente assegurado, e o General Margaron está na própria cidade de Lisboa.
Acabo de ser informado destes detalhes por um francês que regressava de Lisboa e que encontrei ao jantar.
Apressam-me para partir; termino esta carta pedindo-vos que apresenteis os meus respeitos à Sra. Martin, às senhoras da rua Monsieur-le-Prince*** , e, sobretudo, que não vos esqueçais de falar de mim a certos habitantes do Jardim das Plantas, sempre presentes no meu espírito.
Aceitai toda a minha devoção e os meus respeitos,

Geoffroy Saint-Hilaire

[Fonte: E.-T. Hamy, "La mission de Geoffroy Saint-Hilaire en Espagne et en Portugal (1808). Histoire et documents", in Nouvelles Archives du Muséum d'Histoire Naturelle, Quatrième série - Tome dixième, Paris, Masson et C. Éditeurs, 1908, pp. 1-66, pp. 38-39].

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Notas:

* Geoffroy Saint-Hilaire tinha casado em 1804 com Angélique Jeanne Louise Pauline Brière de Mondétour, filha de Isidore-Simon Brière de Mondétour, antigo recebedor-geral dos economatos no tempo de Luís XVI, que se tornara em 1801 presidente [maire] do 2º arrondissement de Paris, cargo que viria a conservar até 1808, quando Napoleão, a 16 Setembro desse mesmo ano, tornaria-o membro da comissão de finanças do Governo francês (curiosamente, 15 dias antes fora nomeado como cavaleiro do Império). 

*Segundo o editor da carta acima traduzida, a aludida correspondência de Geoffroy Saint-Hilaire à sua esposa, eventualmente de grande interesse, não foi encontrada após a morte desta última, em 1873.

*** As "senhoras da rua Monsieur-le-Prince" eram as Mesdemoiselles Petit, duas tias-avós da esposa de Geoffroy Saint-Hilaire. A 14 de Maio (já no Alentejo) e a 11 de Outubro de 1808 (depois de regressar à França), Geoffroy Saint-Hilaire escreveria-lhes pessoalmente.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Decreto de Junot sobre a deserção (27 de Abril de 1808)


O General em Chefe do Exército de Portugal, informado que um grande número de soldados portugueses tem abandonado as suas bandeiras, deixando-se seduzir por malévolos e por boatos mentirosos a respeito do destino dos Regimentos portugueses que deveram marchar para Espanha; considerando quanto é importante à tranquilidade pública e ao próprio interesse daquelas vítimas do erro e da ignorância, o impedir que não se entreguem aos excessos de roubar, por lhes faltar os meios de subsistência, e por temor do castigo justamente merecido; persuadido que não é por cobardia, mas sim por ignorância e seduzidos pela malquerença que estes soldados abandonaram as suas bandeiras no momento em que tinham glória a adquirir; e convencido que se apressarão a unir-se aos seus camaradas e aos seus Generais, aos quais tiveram sempre confiança, decreta o seguinte:

Art. I. Todo o oficial inferior ou soldado português que tiver abandonado as suas bandeiras desde o primeiro de Fevereiro, se apresentará ao Comandante militar mais vizinho do seu domicílio, ou ao Corregedor ou Juiz de Fora do lugar da sua residência, para ali declarar que está determinado a tornar a servir; portanto se lhe dará uma guia para se dirigir ao depósito, onde receberá as ordens para voltar ao seu corpo; e não será inquietado por ter desertado.

Art. II. Estabelecer-se-ão cinco depósitos, a saber:
Um em Lisboa, para a Estremadura.
Um na Guarda, para a Beira e Trás-os-Montes.
Um em Campo Maior, para o Alentejo.
Um em Faro, para o Algarve.
Um no Porto, para Entre-Douro e Minho.

Art. III. Será enviado um oficial superior para comandar cada depósito, com oficiais para serem empregados a conduzir os soldados que deverão unir-se aos Regimentos.
Logo que hajam no depósito cento e vinte homens, ou cem pelo menos, o Comandante organizará uma Companhia provisional, com dois oficiais e quatro oficiais inferiores, e a dirigirá ao Quartel-General das Divisões portuguesas em Salamanca, onde ela receberá novas ordens.

Art. IV. O Secretário de Estado da Guerra dará as suas ordens para que nos diferentes depósitos hajam fardamento e armas para municiamento das Companhias provisionais; vigiará sobre que o pré lhes seja pago exactamente durante a sua estada no depósito, e em jornada; e fará regular as contas do que se lhes tiver devendo, a fim de que cada soldado possa receber o que se lhe dever à sua chegada ao Regimento.

Art. V. Todo o oficial inferior ou soldado que até o 1.º de Junho não se tiver unido e tiver sido preso, será imediatamente posto em Conselho de Guerra, para ali ser julgado como desertor, em tempo de guerra, com toda a severidade da Lei.

Art. VI. O Ministro Secretário de Estado da Guerra fica encarregado da execução do presente decreto, que será impresso, publicado por editais em todo o Reino e lido do púlpito em cada freguesia todos os Domingos do mês de Maio.

Dado no Palácio do Quartel-General em Lisboa, aos 27 de Abril de 1808.

O Duque de Abrantes


O Secretário de Estado da Guerra e da Marinha, 
Lhuyt


[Fonte: Suplemento Extraordinário à Gazeta de Lisboa, n.º XVIII, 3 de Maio de 1808].


Carta da Deputação portuguesa enviada de Bayonne, depois de conversações com Napoleão (27 de Abril de 1808)



A Deputação portuguesa enviada junto a Sua Majestade o Imperador dos franceses, Rei de Itália, Protector da Confederação do Reno, aos seus compatriotas:



A confiança que tendes no Grande Príncipe, junto ao qual nós temos a honra de ser os intérpretes dos vossos sentimentos e dos vossos votos, foi inspirada menos pelo conhecimento dos interesses da Pátria, que pelo desejo de confiar a decisão da nossa sorte ao Poderoso Génio, que tendo restaurado a sua, deu uma nova constituição à Europa. 
O tempo que nos demorámos na fronteira do Império francês, e que precedeu a chegada de Sua Majestade Imperial e Real, nos mostrou em toda a extensão o império que tem nos corações dos seus vassalos o Grande Monarca. 
As contínuas aclamações dos seus súbditos nos anunciaram o momento em que se devia completar a sua felicidade e começar a nossa. 
Sua Majestade Imperial e Real concedeu o primeiro dia da sua chegada a Baiona aos seus vassalos (este é o tributo ordinário do seu desvelo para com eles) e dignou-se de nos conceder o segundo. Sua Majestade Imperial e Real conhecia, ainda mesmo antes de nós lho expormos, a vossa posição, as vossas necessidades, e tudo quanto vos interessa. Se alguma coisa pode igualar o seu génio é a elevação da sua alma e a generosidade dos seus princípios. 
Ao mesmo passo que Sua Majestade Imperial e Real se dignava falar-nos sobre as nossas circunstâncias políticas com afabilidade verdadeiramente paternal, fazia as reflexões as mais interessantes para a nossa felicidade, e manifestava os princípios mais elevados a respeito do uso dos direitos que as circunstâncias lhe deram. Não foi como Conquistador que Sua Majestade Imperial e Real entrou no nosso território, nem como tal quer que o seu exército aí permaneça. O Imperador sabe que nunca tivemos guerra com Sua Majestade Imperial e Real. Pela grande distância que separa a nossa Pátria do seu Império, não pode vigiar Sua Majestade Imperial e Real sobre ela com a mesma atenção com que vigia os outros seus Estados, e que, satisfazendo todas as suas necessidades, satisfaz também o amor que Sua Majestade Imperial e Real tem àqueles que logram a fortuna de ser seus vassalos; seguem-se muitos inconvenientes da delegação de uma grande autoridade em países mui distantes. Sua Majestade Imperial e Real não tem desejo algum de vingança, nenhum ódio, nenhum rancor ao Príncipe que nos governava, nem à sua Real Família: Sua Majestade Imperial e Real ocupa-se de objectos mais nobres, e não trata senão de nos ligar com as outras partes da Europa ao grande sistema continental, do qual nós devemos fechar o último anel; trata de nos livrar da influência estrangeira que nos dominou tantos anos; o Imperador não pode consentir uma colónia inglesa no Continente; o Imperador não pode quer deixar aportar em Portugal o Príncipe que o deixou, confiando-se à guarda de navios ingleses. 
Sua Majestade Imperial e Real, considerando a vossa situação, se dignou declarar-nos que a nossa sorte estava na nossa mão, e que dependia do espírito público que nós mostrássemos, e com o qual nos uníssemos ao sistema geral do continente, e concorrêssemos para os acontecimentos já preparados, assim como da nossa vigilância e da firmeza com que repelíssemos as insinuações e as intrigas que se podem recear, e que, sem proveito real para aqueles que fossem os autores ou os objectos, necessariamente causariam a nossa desgraça. Estes são os sinais pelos quais Sua Majestade Imperial e Real quer julgar se nós somos ainda dignos de formar uma nação capaz de sustentar no trono o Príncipe que nos governar, e de ocupar entre as nações o lugar que nos compete, ou ser confundidos com aquela cuja posição se aproxima de nós, e da qual tão grandes motivos nos afastam*. Vereis com reconhecimento e com admiração, nestas sábias disposições, os profundos conhecimentos de Sua Majestade Imperial e Real, que não quer decidir a sorte de uma nação senão segundo os seus desejos, manifestados pelas suas acções. Pertence aos magistrados e às pessoas mais autorizadas que existem entre vós, pertence a vós todos publicar com a maior clareza as benéficas intenções de Sua Majestade Imperial e Real. 
Esperamos que não serão frustradas as protestações[=declarações] que lhe fizemos em vosso nome; e quando um grito unânime arrancado do fundo dos nossos corações mostrou o desejo que tínhamos de ser uma nação, então mais que nunca nos julgámos dignos intérpretes dos vossos sentimentos. Fazei ver a Sua Majestade Imperial e Real que, depois de tantas tempestades, soube fazer da sua Pátria o primeiro país do mundo, que a nossa não merece ser o último. 
Sua Majestade Imperial e Real conhece as privações que a interrupção momentânea do comércio vos faz suportar: o vosso estado a este respeito é o mesmo que o do resto da Europa e que o da América; é consequência de uma luta, cujo futuro resultado vos pode compensar os trabalhos do tempo actual; também não esqueceu a Sua Majestade Imperial e Real a coacção em que vos pôs a entrada de um exército estrangeiro. Sua Majestade Imperial e Real deseja ardentemente prevenir que se renove esta desgraça. 
Fez impressão no seu coração o peso da contribuição que oprime Portugal, e a sua bondade lhe ditou a promessa de a reduzir a justos limites, àqueles que são compatíveis com as nossas possibilidades. Os nossos compatriotas que estavam prisioneiros em França, graças à clemência do Imperador, gozam já da sua liberdade. 
Sua Majestade Imperial e Real nos autoriza para que vos participemos as suas intenções, ficando nós certos que elas excitarão em vós a maior gratidão e o mais sincero desejo de lhe corresponder. 
Continuaremos a preencher junto a Sua Majestade Imperial e Real, e conforme as suas ordens, uma missão que não tem dificuldades, pois que a bondade do Imperador se une à sua sabedoria para simplificar os nossos maiores interesses. 

Baiona, 27 de Abril de 1808. 

Marquês de Penalva
Marquês de Marialva
D. Nuno Caetano Álvares Pereira de Melo
Marquês de Valença
Marquês de Abrantes
Marquês de Abrantes, D. José 
Conde do Sabugal
Francisco, Bispo de Coimbra e Conde de Arganil
José, Bispo, Inquisidor Geral
Visconde de Barbacena
D. Lourenço de Lima
D. José, Prior Mor da Ordem Militar de S. Bento de Avis
Joaquim Alberto Jorge
António Tomás da Silva Leitão 


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Observações:

Esta carta será publicada em Portugal por edital de Junot datado de 12 de Maio de 1808. A versão aqui transcrita (com a devida actualização ortográfica) é a que foi publicada no 1.º Suplemento à Gazeta de Lisboa, n.º 19, 13 de Maio de 1808. Para além destas duas fontes, este documento também foi publicado, ainda no tempo do Governo de Junot, com o título Carta da Deputação Portuguesa aos seus compatriotas, datada de Bayona de 27 de Abril de 1808, dando conta da sua conferência com Napoleão, Lisboa, na Impressão Imperial e Real, 1808.


Abaixo deixamos algumas notas biográficas sobre os membros da Deputação portuguesa que assinam este documento, pela respectiva ordem de assinatura. Eram nove representantes da nobreza (n.os 1-7; 10-11), três representantes do clero (n.os 8, 9 e 12) e dois representantes do "povo" (n.os 13 e 14):


1. D. Fernando Teles da Silva Caminha e Meneses (1754-1818), 3.º Marquês de Penalva e 7.º conde de Tarouca, foi Gentil-homem da rainha D. Maria I e do Príncipe regente. Era defensor do paternalismo absolutista, conforme expôs nas suas obras Dissertação a favor da Monarquia, onde se prova pela razão, autoridade e experiência ser este o melhor e mais justo de todos os governos e Dissertação sobre as Obrigações do Vassalo (ambas publicadas em 1799). 

2. D. Pedro José Joaquim Vito de Meneses Coutinho (1775-1823), 6.º Marquês de Marialva e 8.º conde de Cantanhede, era arquivista militar quando os franceses invadiram Portugal. Dizem as más línguas que foi um dos amantes de D. Carlota Joaquina, e que D. Miguel poderia mesmo ser seu filho… 

3. D. Nuno Caetano Álvares Pereira de Melo (1799-1837): 6.º duque de Cadaval, era o membro mais novo desta delegação. 

4. D. José Bernardino de Portugal e Castro (1780-1840), 5.º Marquês de Valença e 12.º conde de Vimioso. Viria a ser, já depois da revolução liberal, ministro da Guerra. 

5. D. Pedro de Lancastre da Silveira Castelo Branco Sá e Meneses (1762-1828), 3.º Marquês de Abrantes, 7.º conde de Vila Nova de Portimão e 12.º conde de Penaguião. Era o presidente do Governo da Regência instituída por D. João antes de partir para o Brasil, segundo a proclamação de 26 de Novembro de 1807, na qual o monarca lhe chamava “meu muito amado e prezado primo”. Estava em Bayonne, segundo as ordens de Junot, com o seu filho:


7. D. Manuel Assis Mascarenhas (1778-1839), 5.º conde do Sabugal, de Óbidos e de Palma. Era Tenente-Coronel do 1.º Regimento de Cavalaria das tropas portuguesas que partiram para a França (futura Legião Portuguesa) um dos organizadores da Legião Lusitana (composta por uma selecção de milhares dos melhores soldados portugueses, enviada para a França). Foi o único deste grupo de “deputados” que não ficou prisioneiro de Napoleão, pois como Tenente-coronel da dita Legião, participou com notoriedade em batalhas no centro da Europa, vindo inclusivé a ser condecorado por Napoleão por esse motivo. 

8. D. Francisco de Lemos de Faria Pereira Coutinho (1735-1822), 52.º Bispo de Coimbra e 17.º Conde de Arganil e Reitor da Universidade de Coimbra. Mediante as determinações de Junot (ver a carta que lhe enviou a 23 de Fevereiro de 1808), partiu para a França sozinho, no dia 17 de Março, só se tendo juntado ao resto da deputação já em Bayonne. São do seu secretário duas cartas (uma de 18 de Abril e outra de 22 do mesmo mês) que já publicámos, com alguns pormenores sobre os resultados dos encontros dos membros desta deputação com Napoleão. 

9. José, Bispo, Inquisidor Geral. Logo depois de ter recebido o aviso de Junot para se dirigir a Bayonne, convocou uma reunião do Conselho da Inquisição, que ocorreu no dia 5 de Março, e onde declarou que o governo da mesma instituição recairia sobre o dito Conselho, durante a sua ausência. Cinco dias depois partiu para a França, donde viria a regressar somente seis anos mais tarde. Para mais informações bibliográficas, ver as nossas anotações à sua Pastoral de 22 de Dezembro de 1807

10. D. Luís António Furtado de Castro do Rio de Mendonça e Faro (1754-1830), 6.º Visconde de Barbacena, ex-governador de Minas Gerais (Brasil), era no tempo da primeira invasão francesa vedor de Carlota Joaquina, escrivão da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e presidente da Mesa da Consciência e Ordens. 

11. D. Lourenço José Xavier de Lima (1767-1839), era embaixador em França quando, a meados de Outubro de 1807, recebeu ordens de Napoleão para se retirar do país, por se ter declarado guerra a Portugal. Por esse motivo teria sido o primeiro a avisar a Corte portuguesa do ataque iminente dos franceses, caso o Príncipe regente não se submetesse às imposições do Imperador. Segundo as ordens de Junot, foi recambiado para a França como presidente desta Deputação... 

12. D. José de Almeida, Prior Mor da Ordem Militar de S. Bento de Avis. Para além do apelido deste membro do clero, recolhido por Manuel de Amaral, nada mais conseguimos apurar.

13. Joaquim Alberto Jorge e

14. António Tomás da Silva Leitão. Estes dois últimos indivíduos, representantes do “povo”, eram Juízes Desembargadores do Senado da Câmara de Lisboa...


Proclamação de Charles Cotton, prevendo o levantamento do bloqueio aos géneros de primeira necessidade nos portos portugueses, no caso de que o Governo de Junot o aceitasse (27 de Abril de 1808)




O Cavaleiro D. Charles Cotton, Barão inglês, Almirante e Comandante em Chefe das Naus e outras embarcações de Guerra que presentemente bloqueiam os Portos de Portugal

Faço saber, em resposta às repetidas queixas que por diferente vias me têm constado da grande carestia de pães e outros artigos de primeira necessidade, por todo o Reino de Portugal, e do aumento diário das calamidades insuperáveis de semelhantes faltas, que o bloqueio dos portos de Portugal não se faz para matar à fome os desgraçados habitantes desse Reino, mas é a consequência inevitável das necessárias operações da guerra, pois a cidade de Lisboa, estando entre as mãos dos inimigos da Grã-Bretanha, se considera no caso de um porto onde o inimigo possa abastecer qualquer expedição, entra os domínios de Sua Majestade Britânica e, por consequência, é indispensável um bloqueio rigoroso à sua precisa segurança. Considerando, porém, o grande aperto e a miséria a que se acha reduzido o povo de Portugal, pede-me a humanidade que representasse os meus sentimentos ao seu respeito ao governo de Sua Majestade Britânica, o que já fiz, e tenho resposta do mesmo governo cheia de benignidade, autorizando-me a oferecer os mais generosos termos de Capitulação Marítima, pela qual se pode levantar o bloqueio, e aliviar a miséria que ameaça esse desgraçado povo, influindo-me desejos de aliviá-lo, em consequência da compaixão com que Sua Majestade Britânica considera as desgraças de um povo já bastante infeliz. Estou já pronto para remeter cópias dos repetidos termos àqueles que presentemente estão no exercício do Governo em Lisboa, logo que a comunicação em todo o tempo praticada entre as nações civilizadas, por via parlamentária, seja admitida dentro do Tejo, e em qualquer outro lugar; por consequência depende agora na decisão dos actuais Governadores desse Reino o alívio do dito povo; pois como eles queiram aceder aos generosos termos que lhes ofereço, levantarei bloqueio para admitir em todos os portos do Reino de Portugal os géneros da primeira necessidade, porém no caso deles recusarem esta oferta, será forçoso aumentar o rigor deste bloqueio ao maior aperto possível. 
Dado a bordo da nau Hiberniaadiante da foz do Tejo, em vinte e sete de Abril de mil oitocentos e oito. 

Comandante Cotton 

[Fonte: Alberto Iria, A Invasão de Junot no Algarve (Subsídios para a História da Guerra Peninsular), Lisboa, Tip. Inácio Pereira Rosa, 1941, p. 414 (doc. 291)].


terça-feira, 26 de abril de 2011

Ofício do Corregedor de Tavira a Lagarde, sobre um pequeno incidente envolvendo duas embarcações inglesas diante da baía de Lagos (26 de Abril de 1808)



Dois brigues ingleses apresentaram-se na semana passada diante dos fortes da cidade de Lagos, contra os quais atiraram alguns tiros de canhão. Mas ripostou-se tão vivamente, que foram obrigados a retornar ao largo.

[Fonte: Alberto Iria, A Invasão de Junot no Algarve (Subsídios para a História da Guerra Peninsular), Lisboa, Tip. Inácio Pereira Rosa, 1941, pp. 13-14].

Carta de Geoffroy Saint-Hilaire aos professores-administradores do Museu de História Natural de Paris (26 de Abril de 1808)



Madrid, 26 de Abril de 1808.

Meus caros Colegas:

Tenho a honra de vos informar que a minha partida está marcada para amanhã, 27 de Abril. Uma carruagem de Barcelona foi a única oportunidade que surgiu [para partir] desde que estou aqui. Negociei-a no momento da sua chegada, e como a paguei por um preço mais alto do que outros interessados, obtive a preferência. Tudo estava pronto para que partisse hoje mesmo; não o pude fazer porque a minha viatura foi imediatamente embargada pelas autoridades espanholas; [mas] consegui ultrapassar este obstáculo. 
Não cessei de trabalhar no Gabinete de Madrid; precisava de dois ou três dias a mais para não deixar nada para trás, mas tive que aproveitar a primeira ocasião para partir, e foi o que fiz.
Estive rodeado e acompanhado constantemente por naturalistas espanhóis: às suas atenções penhorantes para comigo, somaram a mercê de me deixar escolher nas suas colecções o que faltasse às nossas.
Aceitei esses presentes e empacotei-os numa caixa, que deixei na casa do Sr. Dennié, Intendente-Geral do Exército [francês], para que vos seja enviada na primeira ocasião que surja. 
Há nessa caixa 17 ou 18 aves, um grande e belo exemplar de osga [conservada] em licor e uma concha abundante na Espanha, mas apresentada pelos autores como autóctone unicamente na Índia, onde, segundo dizem, é bastante rara. Envio-vos duas variedades.
Ficarei agradecido, meus caros colegas, em receber notícias vossas, ou espero pelo menos ter esse prazer em Lisboa. Não tenho outras notícias do Museu [de História Natural de Paris] senão a da morte da zebra. Se houver um meio de a substituir, fá-lo-ei.
Queirais aceitar, meus caros Colegas, esta nova garantia da minha respeitosa amizade.

Geoffroy Saint-Hilaire

[P.S.] Lalande tem-se portado sempre bem. Ele pede ao Sr. Jacques Thouin [chefe da administração do Museu de História Natural de Paris] para dar notícias suas ao seu pai.



[Fonte: E.-T. Hamy, "La mission de Geoffroy Saint-Hilaire en Espagne et en Portugal (1808). Histoire et documents", in Nouvelles Archives du Muséum d'Histoire Naturelle, Quatrième série - Tome dixième, Paris, Masson et C. Éditeurs, 1908, pp. 1-66, pp. 37-38].


segunda-feira, 25 de abril de 2011

Acta da Vereação da Câmara de Faro (25 de Abril de 1808)



Aos vinte e cindo dias do mês de Abril de mil oitocentos e oito anos, nesta cidade de Faro e Casas da Câmara dela, onde se ajuntaram o Doutor Manuel Herculano de Freitas Azevedo Falcão, Juiz de Fora que serve ao presente de Corregedor da Comarca por impedimento do actual, e as Câmaras desta Comarca, que são a desta cidade e da cidade de Silves e a da Vila de Lagoa, convocadas todas pelo dito Ministro como determinado na Régia Provisão vinda da Real Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação destes Reinos e Seus Domínios, datada de 8 do presente mês de Abril, para regularem da quantia de cinco contos de réis em que pela mesma Real Junta foi colectada esta Comarca para satisfação da contribuição proposta a este Reino pelo Real Decreto do primeiro de Fevereiro deste presente ano, de quanto deveria ser a cota que ficasse respeitando a cada uma das mesmas Câmaras e sendo, com efeito, disputada esta matéria pelas mesmas Câmaras, por fim se foi acordado por todas, em atenção às disponibilidades de cada uma das mesmas terras, em que esta cidade de Faro e seu termo ficava obrigada a dar a cota de três contos e seiscentos mil réis, a cidade de Silves a cota de oitocentos mil réis e a vila de Lagoa a cota de seiscentos mil réis, tudo para inteira satisfação da contribuição que foi proposta a esta cidade de Faro e de como se havia acordado fiz este termo que assinaram o dito Juiz que serve de Corregedor da Comarca e mais vereadores das ditas Câmaras e eu, Francisco Xavier de Thadeo [?] escrevi. 

Azevedo Falcão 
[?] 
Cruz 
Figueiredo 
Freire 
Guilherme José Pragana 



Pela Câmara de Silves: 

Mascarenhas Neto 
[?] 
Serpa 
[?] 



Pela Câmara de Lagoa: 

Machado Santos 
Fogaça 


[Fonte: Arquivo Histórico Militar, 1.ª div., 14.ª sec., cx. 186, doc. 24].


domingo, 24 de abril de 2011

Ordem do dia de Junot sobre um rechaço de algumas embarcações inglesas perto de Belém (24 de Abril de 1808)





Ordem do dia do Exército de Portugal 


O General em Chefe, satisfeito do modo com que se portou a equipagem da corveta de Sua Majestade Imperial e Real a Gaivota, comandada por mr. le Blond-Plassan, Tenente do Mar, na acção que houve na noite de 22 para 23 deste mês, entre a dita corveta e cinco pinques [sic] ingleses, amarinhados por mais de 150 homens, se apressa a dar a conhecer ao exército, pela sua ordem do dia, as particularidades seguintes: 

Pelas duas horas da manhã, 5 pinques ingleses abordaram a Gaivota, por duas diferentes vezes; mas de cada vez foram repelidos à arma branca e a tiro de pistola. Da terceira vez tentaram os pinques a abordagem; porém, o fogo da curveta foi tão vivo e tão bem dirigido, que não cuidaram mais que em salvar-se, abandonando todos os da sua companha que se achavam ainda mais embaraçados nas redes e ovéns, os quais tiveram de ser lançados ao mar. 

Nessa ocasião perdeu o inimigo pelo menos 40 homens, especialmente o oficial comandante da expedição, que foi morto por mr. le Blond-Plassan, ficando o seu chapéu e pistola em poder do Comandante da Marinha. 

A equipagem da Gaivota, principalmente os militares, capitaneados pelo Tenente Gargan, e dois marinheiros franceses, pelejaram com muito valor. Não temos de sentir mais que a perda dum só homem, por apelido Glasser, soldado da 4.ª Companhia da Legião Hanoveriana, que ficou mortalmente ferido. Também o foram mais oito, se bem que levemente, de sorte que em breve poderão tornar a servir. 

Mr. le Blond-Plassan dá um particular louvor aos senhores oficiais do seu comando, os quais se houveram na referida acção com coragem presença de ânimo. 

Os ingleses quiseram festejar o dia [de] aniversário de S. Jorge [23 de Abril]; mas ficaram enganados. Não é assim que o exército francês tem solenizado o aniversário da coroação do seu Imperador e o da batalha de Marengo. 

Palácio do Quartel-General de Lisboa, a 24 de Abril de 1808. 

O Duque de Abrantes 

[Fonte: Gazeta de Lisboa, n.º 17, 26 de Abril de 1808]. 


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Observações:

Com em tantos outros casos, é difícil perceber, mais de 200 anos depois, o que realmente se passou naquela noite. A versão de Acúrsio das Neves, que também abordou este episódio, não podia contrastar mais com a versão de Junot: depois de referir a fuga do Núncio e a forma como Junot esbravejou ao sabê-lo, sem nada poder fazer, continua o citado autor, com ironia: 

“É coisa notável que raras vezes se experimenta um desgosto que não seja acompanhado de outros! Os ingleses frustraram novamente a vigilância das torres e baterias da barra na noite de 23 [de Abril], e vieram perto de Belém em embarcações ligeiras atacar o brigue Gaivota, e o teriam levado se uma rede de corda não defendesse a sua abordagem. Ainda principiaram a rompê-la; mas sendo pressentidos pelos franceses que guarneciam o brigue, tiveram de desistir da empresa, deixando um chapéu, que provavelmente caiu da cabeça a algum dos ingleses, na acção de quererem romper a rede, e sempre levaram uma lancha pertencente ao brigue. Esta notícia logo na manhã seguinte se divulgou pelos cafés e pelas praças de Lisboa; mas ao mesmo tempo que se celebrava com prazer a ousadia nobre dos ingleses e o desleixamento das guarnições francesas, que não só os deixaram entrar, mas até sair a salvo, depois de descobertos, tendo-se entranhado tanto pelo rio acima, com que admiração se não viu logo uma arrogante gazeta que representava esta acção como uma vitória assinalada das armas francesas? Eram cinco pinques, dizia o gazeteiro* (e nem na entrada, nem na saída foram vistos!) e não menos de quarenta, incluso o comandante da expedição, ficaram mortos de um rasgo de pena. É assim que o valor de Lagarde pretendeu cobrir a vergonha dos soldados franceses; é assim que estes impostores têm enganado o mundo!” [Fonte: José Accursio das Neves, Historia Geral da Invasão dos Francezes em Portugal - Tomo II, Lisboa, 1810, Officina de Simão Thaddeo Ferreira, pp. 227-228].

Ainda que possamos considerar que Lagarde tenha exagerado, parece certo que os ingleses foram realmente rechaçados naquele dia 22 de Abril, segundo se deduz da inscrição da lápide dum monumento erguido diante da praia (nova) de Paço d'Arcosem memória do Capitão Conway Shipley, um militar britânico que morreu nesse ataque mal sucedidoSacred to the memory of Conway Shiply [sic], Esq. aged 25 years, late Captain of His Britannic Majesty’s Ship La Nymphe, who was killed in an attempt to cut an enemy’s vessel of war out of the Tagus, on the 22d of April, 1808. Circumstances which human wisdom could not foresee nor any exertion of human courage obviate, rendered the attempt unsuccessful, and closed the short but distinguished career of the Gallant Leader of it. But while his name will live long in records of Fame and the remembrance of his country, it is hoped that the brave and good of every nation will venerate his ashes and contemplate with respect the last mansion of a hero.
[Ver a tradução em "Lapides nas sepulturas de alguns officiais inglezes, mortos em Portugal durante a Guerra Peninsular", in Francisco Augusto Martins de Carvalho, Guerra Peninsular - Notas, Episodios e Extractos Curiosos, Coimbra, Typographia Auxiliar d'Esciptorio, 1910, pp. 62-63].

Acrescentamos finalmente que o blog Age of Sail contém uma entrada sobre Conway Shipley, incluindo uma narração mais pormenorizada deste ataque no Tejo.

Fonte das imagens: Os Bardinos
Túmulo do inglês
(Paço d'Arcos)

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Nota:

* Alusão a Lagarde, que ficou de facto conhecido em Portugal como o gazeteiro. Na verdade, Acúrsio das Neves comete aqui um lapso, visto estar a referir-se obviamente ao texto (a ordem do dia acima transcrita) assinado pelo Duque de Abrantes (Junot), publicado originalmente na Gazeta de Lisboa.