terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Momentos de ócio

Apesar  da invasão a Portugal ir contando com algumas barreiras, Junot ia aproveitando todos os pretextos para ocupar-se com outros assuntos menos preocupantes e mais agradáveis.


No dia 11 de Dezembro, depois de embarcar no cais do Sodré para ir cumprimentar o Almirante da esquadra russa ancorada no Tejo, Junot encaminhou-se "para a Quinta das Laranjeiras [cuja entrada se pode ver na fotografia à direita], aonde o esperava o Barão de Quintela com um grande baile, em obséquio do aniversário do filho primogénito do mesmo Barão. Durou a função até às três horas da noite, que foi quando o General se recolheu para a casa da sua residência" [Domingos Alves Branco Muniz Barreto, Memoria dos Successos acontecidos na cidade de Lisboafl. 31v].
No dia seguinte, era a vez do Marquês de Abrantes regalar Junot com um convite para uma caçada em sua honra. Ainda "neste mesmo dia chegou de Paris um correio com a notícia de que a esposa do General em Chefe tinha dado à luz uma menina [na verdade, era um menino, que nascera a 25 de Setembro], e não tardando em se divulgar por Lisboa semelhante notícia, se dirigiram logo a cumprimentar ao mesmo General os Governadores do Reino, a grandeza[=nobreza] e outras pessoas; e neste mesmo dia foi também que se deu princípio à partida do jogo do Whist, de que é extremamente apaixonado o General Mr. Junot, e por preço muito caro e com grandes apostas, que dobram segundo o excesso das vazas. Até à minha partida de Lisboa, eram parceiros certos o comendador Barreto, Manuel José Sarmento, o provedor do seguro Francisco Manuel Calvete e o Barão de Quintela" [id., fl. 32].   

Carta de Pierre Margaron, General de Brigada do Exército francês em Portugal, ao naturalista Geoffroy Saint-Hilaire, membro do Instituto da França e administrador do Museu de História Natural de Paris (10 de Dezembro de 1807)



Quartel-General, em Lisboa, 10 de Dezembro de 1807.


Fizestes-me justiça, Senhor, ao não duvidardes do prazer que me daria a vossa carta e da prontidão com que atenderia aos vossos pedidos. 
Vi o senhor Lendenberg e o senhor Sieber. A colecção do senhor conde de Hoffmansegg está em segurança. Ofereci salvaguardas, mas responderam-me que consideravam que tal precaução era inútil. Assim, limitei-me a convidar estes senhores a recorrerem a mim se surgissem circunstâncias em que lhes pudesse ser útil. Podeis, portanto, tranquilizar o proprietário e assegurar-lhe que a vossa recomendação será plena e inteiramente efectuada*.
Para responder tanto quanto possível aos desejos do meu amável sábio, questionei o senhor Sieber, que saiu há instantes da minha casa, para saber quais são quais as peças de grande beleza que, conforme o seu conhecimento, estão tanto nos gabinetes de história natural do Príncipe como nos de particulares: ele indicou-me que o objecto mais raro e sem paralelo é uma massa de cobre nativo**. Amanhã iremos percorrer todos os gabinetes, e tomarei nota de tudo o que ele e um célebre mineralogista que nos deve acompanhar*** me refiram e que mereça ser transportado para o Jardin des Plantes.
Daqui a uma hora irei à casa do General em Chefe, ao qual comunicarei a carta do interessante professor [o próprio Saint-Hilaire] e dos seus projectos. Antes de mais, obterei todas as autorizações que necessitarei para as minhas primeiras pesquisas, e tudo farei para ver chegar a Lisboa o administrador zeloso que quer enriquecer com tantas razões o nosso Gabinete e, sobretudo, o senhor Geoffroy, ao qual garanto a recepção mais amigável.
Resultou inútil falar do Thouyou: esta ave é desconhecida, mesmo do senhor Sieber. Talvez tenha mais sorte nas minhas pesquisas amanhã, pois não restam dúvidas que, a existir, deve encontrar-se no gabinete do Príncipe****.
Senhor, podeis dar-me frequentemente ocasiões para vos ser agradável, e contai com a minha exactidão, bem como com os meus sentimentos de elevada consideração, com os quais serei sempre
Vosso muito devotado,


[P.S.] [...] Escrever-vos-ei assim que veja o General [Junot] e feito as minhas descobertas.

[Fonte: E.-T. Hamy, "La mission de Geoffroy Saint-Hilaire en Espagne et en Portugal (1808). Histoire et documents", in Nouvelles Archives du Muséum d'Histoire Naturelle, Quatrième série - Tome dixième, Paris, Masson et C. Éditeurs, 1908, pp. 1-66, pp. 56-57].

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Notas:

* Entre 1797 e 1801, o naturalista alemão Hoffmansegg tinha estado em Portugal, juntamente com os seus colegas Heinrich Friedrich Link e Friedrich Wilhelm Sieber (não confundir com o também naturalista Franz Wilhelm Sieber), com o objectivo de recolher material (sobretudo botânico) do país, então praticamente desconhecido no resto da Europa. Contudo, mais ignorado ainda era o material do Brasil. Assim, antes de deixar Portugal, Hoffmansegg decidiu recorrer à sua vasta fortuna para enviar o referido Friedrich Wilhelm Sieber ao Brasil. Porém, como a antiga colónia portuguesa estava fechada aos estrangeiros (recordemos que só depois de ali chegar o Príncipe Regência é que os seus portos foram abertos "às nações amigas"), Hoffmansegg comprometeu-se que Sieber deixaria em Portugal todos os duplicados dos materiais que recolheria no Brasil. Não obstante, ao regressar a Lisboa, depois de explorar o Brasil durante três anos, Sieber tentou esquivar-se da referida obrigação que o seu promotor tinha contraído, junto do director do Museu da Ajuda, Domingos Vandelli. De facto, Sieber conseguiu expedir para o Mar Báltico a maior e melhor parte das caixas com os materiais que  tinha recolhido no Brasil, através dos recursos duma casa de comerciantes alemães sediada em Lisboa (da qual fazia parte o "sr. Lendenberg", como aparece referido na carta acima transcrita, embora noutros documentos apareça grafado como "Lindenberg", o qual correspondia-se periodicamente com o próprio Hoffmansegg). Contudo, a Alfândega de Lisboa, ao descobri-lo, decidiu apreender duas dessas caixas, como forma de garantia do cumprimento das obrigações contraídas por Hoffmansegg. Aparentemente, Sieber não deu o braço a torcer (por recomendações do seu patrono?), e acabou por permanecer em Lisboa com as seis caixas que restavam. Entretanto, Hoffmansegg recebera a maior parte desse material (possivelmente antes do embargo ordenado pelo Governo português), e não perdera tempo para anunciar ao mundo a "descoberta" de quatro tipos novos de macacos do Brasil, descrevendo-os num artigo publicado em meados de 1807 [Von Graf Hoffmannsegg, "Beschreibung vier affernatiger Thiere aus Brasilien", in Magazin für die Neuesten Entdeckungen in der Gesammten Naturkunde, Berlim, Realschulbuchhandlung, 1807, pp. 83-104]. No final desse mesmo ano de 1807, Hoffmansegg toma conhecimento que o exército francês prepara-se para marchar para Portugal, e percebe que não pode perder essa oportunidade para tentar resgatar as seis caixas que permaneciam em Lisboa, ademais daquelas duas que tinham sido apreendidas. Assim, escreve imediatamente ao Museu de História Natural de Paris (do qual era correspondente), cujos membros intervêm rapidamente junto das autoridades competentes (isto é, o Ministério do Interior do Governo francês, encabeçado por Emmanuel Crétet). Ao mesmo tempo, e com o mesmo objectivo, o naturalista francês Geoffroy Saint-Hilaire, então administrador do dito Museu parisiense, recorre ao seu amigo Margaron, que rumara para Portugal como General de Brigada do [primeiro] Corpo de Observação da Gironda (posteriormente chamado Armée de Portugal). Apesar de não se conhecer a correspondência que Saint-Hilaire remeteu ao General Margaron, percebe-se pelo teor da resposta acima transcrita que o primeiro tinha recomendado ao segundo precisamente para salvaguardar (entre outras coisas) as colecções naturais que Sieber tinha recolhido no Brasil, e cujo "legítimo proprietário", por assim dizer, era o próprio Hoffmansegg. Adiante veremos como esta questão ficou resolvida.



*** É possível, embora não o possamos afirmar, dada a falta de maiores informações, que o "célebre mineralogista" fosse José Bonifácio de Andrada e Silva.

**** Posteriormente descobrir-se-ia que, de facto, existia nas colecções de animais do Príncipe Regente pelo menos um exemplar vivo de ema, então conhecida no mundo francófono por thouyou ou touyou. Ver, a este respeito, as nossas anotações às citadas instruções de Crétet a Geoffroy Saint-Hilaire

Os membros da Câmara Municipal de Faro perante as tropas invasoras

Fosse pelas razões abaixo apresentadas por Acúrsio das Neves, por simpatia ou por mero conformismo, não era só em Lisboa que as autoridades portuguesas colaboravam com os invasores. No sul do país, embora o Algarve tardasse em ser ocupado pelas tropas espanholas, de acordo com as determinações do Tratado de Fontainebleau (o que só ocorrerá definitivamente a 22 de Janeiro do ano seguinte), os membros da Câmara Municipal de Faro pareciam estar ansiosos em receber os invasores. De facto, logo no dia 9 de Outubro de 1807 (incrivelmente, cerca de 20 dias antes dos franceses penetrarem na península!) determinaram aqueles autarcas que se "passasse a averiguar de alguns armazéns mais convenientes para o aquartelamento das tropas francesas ou espanholas" [cf. Arquivo Histórico Militar, DIV 1/14/186/24].
Dois meses depois, já com os franceses instalados na capital e os espanhóis a entrarem pelo Alentejo, voltavam os membros da mesma Câmara a se reunirem. No dia seguinte, era lavrada a acta que seguidamente se transcreve. Note-se o elucidativo edital aí incluído (em itálico):



Nesta [vereação] se determinou [que] se passasse [a] averiguar alguns armazéns mais convenientes para o aquartelamento das tropas francesas ou espanholas.
Determinou-se igualmente subscrever em cartas aos Juízes e Escrivães das freguesias deste termo [de Faro] para remeterem de cada uma delas vinte e cinco cargas de lenha para aprovisionar a mesma tropa; e pela outra parte, para se averiguar a quantidade de palha de centeio que houvessem nas mesmas freguesias e ser depois conduzida para se encherem as enxergas para a mesma tropa.
Determinou-se mais que se fizesse aviso ao público para no dia onze virem a esta Câmara as pessoas da Nobreza, Eclesiásticas e Povo, mandando-se para isto [um] édito, o qual é da forma o teor seguinte:


Doutor Juiz Presidente, vereadores e mais oficiais da Câmara desta cidade de Faro e seu termo, etc.
Fazemos saber a todas as pessoas desta cidade, tanto da primeira Ordem, Nobres e Eclesiásticas, como demais pessoas do Povo, que para se tratarem Negócios que respeitam ao bem comum desta cidade e seu termo é preciso que no dia de amanhã que se contam onze do corrente mês às dez horas e meia da manhã se achem nas Casas da Câmara desta mesma cidade para aí se deliberarem os referidos Negócios, e isto com a declaração de ficarem suspeitos os que faltarem ao alarde dos demais.
Faro, 10 de Dezembro de 1807.


E eu, José Francisco de Alves Camacho, a escrevi.
Azevedo Falcão.
Barros.
Figueiredo.
Ribeiro.
Guilherme José Pargana.
Manuel da Costa.




in Alberto IRIA, A Invasão de Junot no Algarve, Lisboa, 1941, p. 347 (doc. 15). 

O comportamento da Regência durante os primeiros momentos da ocupação dos franceses, segundo Acúrsio das Neves








Reveses de Junot




Esquadra em que seguiu para o Brasil a família real portuguesa
Desenho feito a giz no quadro negro por João Braz de Oliveira 
(195 x 125 cm)



Assim que chegou a Lisboa, Junot apercebeu-se que, para sua infelicidade (e de Napoleão), restavam apenas 2 fragatas em bom estado. O resto da esquadra portuguesa que se encontrava em boas condições velejara para o Brasil...
É certo que tinham ficado quatro navios de 64 peças, mas segundo um relatório de Sidney Smith datado do dia 1 de Dezembro, três daquelas embarcações estavam ou incapazes de serviço ou não armadas, ou ainda sem concerto possível... Segundo o mesmo embaixador inglês, que acompanhara o percurso inicial da esquadra portuguesa que rumara para o Brasil, três das cinco fragatas que constavam no porto de Lisboa precisavam de total concerto, enquanto outras duas não admitiam já concerto... (Cf. Joaquim José Pereira de FREITAS, Biblioteca Histórica, Política e Diplomática da Nação Portuguesa – Tomo I, Londres, Casa de Sustenance e Strecht, 1830, pp. 50-51).

Relembre-se que Junot tinha como os principais objectivos (para além da aparência de querer proteger os portos portugueses dos ingleses) o aprisionamento da esquadra portuguesa e do príncipe regente. O primeiro objectivo, segundo o optimista Junot, podia ser parcialmente concluído, através da reparação de algumas das embarcações que ficaram em Lisboa. O segundo fim, por tudo o que já aqui foi assente, estava irremediavelmente perdido. 
Vejamos, não obstante, a resposta de Junot à carta de Napoleão abaixo inserida: "O que V.M. [Vossa Majestade] me ordenava em relação ao Príncipe poderá, como sabeis, ter execução; só há em Lisboa dois indivíduos parentes do Príncipe; um é o conde de Nuno, irmão mais novo do duque de Cadaval [que partira para o Brasil] e tenente-coronel ao serviço de Portugal; o outro é o marquês de Abrantes, parente muito afastado e que, ao partir, o Príncipe deixou encarregado de presidir ao Conselho da Regência. Esta autoridade ilegal e desestimada no país serve-me, apesar disso, nestes primeiros momentos; manda executar tudo o que nos primeiros instantes de uma invasão há de penoso para o país. [...] 
Peço a V.M. a bondade de me dar as suas ordens sobre os dois parentes do príncipe; posso conservá-los aqui sem inconvenientes até receber a resposta; o conde de Nuno é um homem nulo, sem o mínimo crédito; o marquês de Abrantes é um homem desonrado na opinião pública, sem honra e sem moral, digno cunhado do senhor de Lima; este último ficou em Lisboa e só pode aqui fazer mal, mas eu mando vigiá-lo. O marquês de Marialva, que fora enviado a V.M., é um dos fidalgos mais estimados em Portugal, e creio que bem o merece" [JUNOT, Diário da I Invasão Francesa, pp. 108-110].