domingo, 12 de dezembro de 2010

Os princípios da protecção à francesa


Antes ainda de entrar em Portugal, Junot proclamou que puniria rigorosamente qualquer militar francês que fosse apanhado a roubar. No entanto, o seu exército, esfomeado e estropeado de tantas fadigas, foi pilhando várias casas, quintas, hortas, lagares, celeiros e adegas que ia encontrando no caminho. Pão, comida, vinho, gado, sapatos, lenha, tudo era roubado, muitas vezes com o recurso à violência. Perante tal cenário, era inevitável que alguns franceses morressem às mãos da vingança popular. A 29 de Novembro, prestes a entrar em Lisboa, uma nova proclamação fazia constar que o exército que ali se ia apresentar vinha como protector dos portugueses. No entanto, os roubos e extorsões continuaram: desde tecidos ingleses (que serviriam para novos fardamentos) a celeiros e cofres públicos, móveis, loiças, pratas, seges, carruagens e tudo quanto tivesse valor nas casas dos ingleses e das várias famílias que tinham acompanhado a família real na ida para o Brasil. Os palácios de Mafra, Queluz, Ajuda, Necessidades também não escaparam à rapina dos franceses. Tudo isto, somado com o despedimento de muitos funcionários públicos e o cancelamento ou redução das rendas ou pensões de outros tantos fidalgos, dava a ideia, segundo uma testemunha coetânea, de que "Lisboa já não é a rica e pomposa Rainha do Tejo; é quase uma aldeia erma e solitária [...] Pode dizer-se que Lisboa não é mais que um cadáver descarnado pelos milhafres e carniceiros abutres" [José Caetano da Silva Coutinho, Memoria Historica da Invasão dos Francezes em Portugal no anno de 1807, Rio de Janeiro, Impressão Régia, 1808, p. 16].
Segundo o mesmo autor citado, as sentinelas francesas "principiaram a mostrar cedo um ar de altivez e ferocidade que ofendia os sujeitos mais pacatos, observando-se em algumas partes que descarregavam a coronha da arma sobre alguns indivíduos do povo, ou lhes arrumavam as baionetas ao peito por não retrocederem do caminho que as mesmas sentinelas guardavam, ou por não obedecerem a qualquer outra ordem que lhe intimavam na língua que o povo não entendia. [...] Talvez que envergonhados os soldados de não terem dinheiro, inventaram uma nova lei de polícia, que lhes foi muito rendosa e que causou muito espanto, quando inopinadamente se viu por eles praticada: e foi que em certos lugares, como no Terreiro do Paço, toda a pessoa que passava sem tirar o chapéu à sentinela, esta lho arrebatava por força, e lho rasgava uma vez que prontamente o não resgatasse por meio tostão" [op. cit., p. 21]

Mas não eram só os soldados que cometiam semelhantes afrontas. Apesar da ordem do dia do exército francês de 9 de Dezembro proibir que os oficiais continuassem a pedir refeições nas casas onde se alojavam, o certo era que Junot era o primeiro a dar o exemplo em contrário. Expulsou o Barão de Quintela do seu palácio, para onde foi viver, mas todas as festas que aí dava iam sendo pagas pelo mesmo Barão...
Outro General francês, Loison, mal chegou a Torres Vedras, a 8 de Dezembro de 1807, começou logo a fazer múltiplas e excessivas requisições aos Corregedores de Torres Vedras, de Alenquer, Ribatejo, Alcobaça e Leiria. Para se ter uma mínima ideia dos abusos que Loison cometeu, refira-se que só ao Corregedor de Alcobaça, segundo Acúrsio das Neves, era exigida no princípio de cada semana, para a mesa do General Loison, uma dúzia de garrafas de vinho do Porto e duas ou três garrafas de vinho da Madeira... [Cf. José Accursio das Neves, Historia Geral da Invasão dos francezes em Portugal - Tomo I, Lisboa, Officina de Simão Thaddeo Ferreira, p. 315]
Tais abusos iam semeando tantos atritos que, no dia 13 de Dezembro, depois de se hastear a bandeira francesa no castelo de S. Jorge (apesar desta já estar hasteada no porto de Lisboa desde o dia 30 de Novembro), rebenta um motim na capital. No dia seguinte foram proibidos os ajuntamentos, sendo então também proibidas as celebrações dos anos da Rainha D. Maria I, a 17 de Dezembro, o que mais ainda entristeceu os portugueses, que costumavam festejar com regozijo e júbilo aquele aniversário. Neste dia, aliás, o patrulhamento da cidade foi reforçado, para evitar-se qualquer tipo de tumulto. Desde então "nem um só português tem tirado o chapéu a Junot, nem feito quaisquer demonstrações de respeito nos lugares públicos por onde continuamente passa" [op. cit., p. 40]. Finalmente, foram proibidas as cerimónias religiosas da noite de Natal (e também o devem ter sido da noite de fim de ano, embora não o possamos comprovar). 
Tudo isto pesava na triste sorte dos lisboetas que, a partir de 3 de Janeiro de 1808, ainda viram ordenadas, a tiros de canhão, as horas de alvorada e de recolher obrigatório... 

Retomemos as palavras do Bispo do Rio de Janeiro, agora acerca do próprio General em Chefe francês: "Se Junot não tem respeitado as regras da justiça não é muito que tenha tratado com a mesma indiferença os magistrados executores delas; o Intendente Geral da Polícia, Lucas de Seabra, é quem tem sofrido as mais públicas repreensões e baixos tratamentos; chegando um dia a dizer-lhe na sua face e diante de várias pessoas, que ele era indigno do lugar que ocupava, por não lhe dar uma conta fiel de todas as acções e palavras que se passassem no maior recôndito das famílias e em todos os bairros da cidade; e que se os tumultos do povo continuassem , ele ficava responsável com a sua cabeça. Ainda lhe disse mais, que em Lisboa havia muita gente vadia e ociosa que era necessário espionar; muitos desembargadores sobejos e fidalgos inúteis, perigosos ao Governo, e de que era necessário desfazer-se. Não se envergonhou de dizer que quando ele era Governador de Paris, desempenhava tão bem os deveres do seu cargo, que até sabia todas as manhãs com quem tinham passado a noite as mais belas cortesãs da capital. Por estas e outras semelhantes palavras se pode concluir não só a grosseria dos Generais escolhidos por Bonaparte, mas até o espírito de espionagem e de tirania com que pretende governar a Europa; e por isso se fala já muito, e é provável, que cedo se veja em Lisboa um Tribunal de Polícia francesa, uma terrível Inquisição de Estado, insaciável de sangue e de vítimas da sua desconfiança e do seu ódio. 
Pelo mesmo espírito de altivez e atrevimento é que Junot praticou aquela acção notável do dia 14 de Janeiro, quando se apresentou no Arsenal da Fundição, montado num cavalo do Príncipe chamado o Pasteleiro, e apeando-se, entrou em todas as oficinas com gestos de furioso, atacando e descompondo quem quer que lhe aparecia, e particularmente ao Coronel Carlos Juliani, por causa de não terem já começado a gravar em todas as armas as insígnias francesas; vomitou injúrias e impropérios contra a nação em geral, dizendo entre outras parvoíces que mais valia um Sargento francês do que um General português. Fez arrancar imediatamente e lançar por terra as armas reais que viu em cada uma das Casas do Arsenal. Passou daqui à Fundição de cima, onde fez os mesmos terremotos, e tanto se esbravejou, que o mesmo Coronel francês, Prost, disse para o Intendente José Botelho: — Sacre Dieu! Monseigneur a la tête revoltée. Algumas pessoas lembraram-se de dizer que Junot estava esquentado de vinho, como costuma; outros disseram que não: que era um acesso de cólera em que o tinha posto uma espécie de vaia e de assoada que lhe deu a populaça na rua, quando o viu passar montado no Pasteleiro, que sabia mandar muito mal, dando provas de que não nascera para montar um tal cavalo, ou que o bruto não fora ensinado para um tal cavaleiro. Se este foi o incentivo de tanta raiva para o bravo General, muitas vezes se deve ele ter embravecido, porque muitas têm sido as sátiras e motejos populares por ocasiões semelhantes. Tal foi o dissabor que ele se viu obrigado a engolir com mais moderação, no dia do enterro do Marquês de Vagos, a 8 de Janeiro. Primeiramente tinha ele ordenado que não fosse de noite, por temer o ajuntamento do povo e das tropas [portuguesas], que necessariamente o haviam [de] acompanhar como General da província [da Estremadura]; quis que fosse de dia, e quis ele mesmo apresentar-se à testa de vários Batalhões franceses; mas o povo excitado com a vista das tropas nacionais não pôde conter os risos e os escarros que surdamente lhe deram quando passava" [op. cit., pp. 55-57]... 

O pior, contudo, estaria por vir...


A opinião dos portugueses em relação aos espanhóis



O enorme aparato do funeral de Taranco deve ter passado despercebido em Lisboa, segundo se deduz dos relatos coetâneos de pessoas que viviam neste tempo na capital do país. A própria Gazeta de Lisboa somente fará menção da morte de Taranco no dia 9 de Fevereiro, sem mencionar quaisquer pormenores:


O Excelentíssimo D. Francisco de Tarranco y Llano, da Ordem Militar de S. Jorge na Rússia, Padroeiro de Zaratamo em Biscaia, Tenente General dos Reais Exércitos de Sua Majestade Católica, Governador e Capitão General do Reino da Galiza, Presidente da sua Real Academia e Subdelegado da Renda de Correios e Caminhos no mesmo Reino, e General do exército de Sua dita Majestade Católica na província da Estremadura [sic] e Minho, faleceu na cidade do Porto a 26 do mês passado. [Gazeta de Lisboa, n.º 6, 9 de Fevereiro de 1808].

Junot, por outro lado, já sabia do sucedido pelo menos desde o dia 4 de Fevereiro (segundo carta remetida a Napoleão nesse dia, onde muito abreviadamente refere a morte do dito General). Mas também é importante ressaltar que, entretanto, não só a Gazeta fora apossada pelos franceses, que a transformaram no seu órgão de imprensa, como também as circunstâncias políticas e administrativas tinham mudado drasticamente desde o dia 1 de Fevereiro (como mais adiante se mostrará). De todos os modos, talvez Junot julgasse que a notícia não devia interessar aos portugueses, partindo do princípio de que os portugueses odiavam os espanhóis, como várias vezes narrou a Napoleão. 
Vejamos agora uma visão diversa destes sentimentos. O texto que abaixo se transcreve é do Bispo do Rio de Janeiro, José Caetano da Silva Coutinho, que se encontrava residindo em Lisboa nesta época (conseguindo fugir para o Brasil, provavelmente a bordo de algum navio inglês, a 4 de Março):

"Os espanhóis que entraram em Portugal em auxílio dos franceses, posto que publicamente falassem em abono da sua causa, não eram contudo muito contrários aos russos nos sentimentos [de repúdio aos franceses] que particularmente deixavam transpirar entre muitas pessoas. As proclamações impressas dos seus Generais e a conduta das tropas por todas as províncias em que passaram são os mais honrosos documentos que se podem alegar em seu abono; tiveram sempre a política e a delicadeza de não arvorarem o pavilhão espanhol senão ao lado e à esquerda do português; notava-se neles, assim como nos russos, maior facilidade e tendência a conviverem e arrancharem com portugueses do que com franceses. Em Setúbal, onde residiu o maior corpo das suas tropas, não houve uma só desavença, à excepção duma pequena rixa, que se contou ter acontecido num jogo de taberna; o que mais agradava ao povo era ver-lhes puxar por dinheiro e pagarem tudo o de que precisavam; não pareciam aqueles espanhóis que, como inimigos, tinham entrado em Portugal nas passadas campanhas, e até parecia ter-se quase extinto a velha antipatia e o ódio nacional contra Castela.
Por ocasião desta novidade lembrou a algumas pessoas dizer, por uma graciosa ironia, que com razão os lisonjeiros de Bonaparte o denominavam Omnipotente, por ter feito o grande milagre de reconciliar e fazer amigas duas nações que tinham jurado perpétua inimizade*. Para mais justificar o predicado de Omnipotente que condecora o novo ídolo, seja-nos lícito apontar mais outro milagre que se observou, feito pelas suas tropas em Portugal: e é aquele de que já todos os criados dos fidalgos não murmuram das rações que se lhes dão em casa de seus amos, antes dão graças a Deus de terem que comer na terra da fome e da miséria. Outras provas deram os espanhóis da equidade dos seus sentimentos: porque várias vezes se viu sair o Marquês del Socorro de casa de Junot, declamando, sem poder conter-se, contra o novo direito dos franceses, que já principiavam a blasonar da conquista de Portugal; conquista prodigiosa e nunca vista, que não custa uma gota de sangue, e que habilita o pérfido e o aleivoso para lançar grilhões todas as vezes que possa, ao pescoço de seus maiores amigos" [Fonte: José Caetano da Silva Coutinho, Memoria Historica da Invasão dos Francezes em Portugal no anno de 1807, Rio de Janeiro, Impressão Régia, 1808, pp. 24-25]


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* [Nota nossa]: A partir de Junho se verá que o bispo não mentia quando dizia isto. De facto, as primeiras revoltas que se iniciarão nesse mês, tanto no sul como no norte de Portugal, partirão do rastilho acendido pelos espanhóis e sempre com a sua ajuda.