domingo, 8 de maio de 2011

Carta particular de Bayonne sobre os encontros de Napoleão com a família real espanhola (8 de Maio de 1808)




Bayonne, 8 de Maio


Esta vila ainda não se recuperou do espanto com que viu a forma como foi concluído um negócio que apresentava à primeira vista um aspecto tão favorável, devido à chegada de Fernando VII, e como se passaram as sucessivas sessões até ao memorável Congresso do dia 5. Quando o novo Soberano aqui chegou, foi recebido à distância de uma légua de Bayonne pelo Príncipe de Neufchâtel, pelo Mordomo mor Duroc e por outros personalidades de alta distinção, o General Ajudante de Campo e uma brilhante assembleia, que acompanharam o Rei de Espanha aos aposentos que lhe foram destinados, ficando na residência de Sua Majestade uma Guarda Imperial de Honra. Meia hora depois, chegou o Imperador Napoleão, vindo do seu Palácio de Marracq, acompanhado por um numeroso séquito de personalidades, para visitar Fernando VII, que imediatamente se dirigiu ao portão para receber o seu visitante Imperial. Napoleão desmontou do seu cavalo, lançou os seus braços à volta do seu augusto convidado, saudou-o, deu-lhe um passou-bem e assegurou-lhe a sua sincera amizade. Depois deste primeiro encontro, Napoleão convidou Fernando a jantar consigo às cinco horas, enviando antes um coche do Estado, puxado pelos cavalos mais bonitos, dando-lhe então, e depois, toda a atenção possível. Assim, os três primeiros dias depois da sua chegada a Bayonne foram dias de regozijo; e o povo realmente acreditou que se pretendia de facto honrar e respeitar o visitante real. 
Depois disto, realizaram-se algumas algumas entrevistas privadas entre Fernando e Napoleão; logo na primeira, Napoleão ofereceu-lhe a coroa da Etrúria e a sua sobrinha em casamento. Algumas destas conferências decorreram na presença do Primeiro-Ministro, o sr. Cevallos, que se distinguiu numa ocasião, como abaixo se comentará, na Junta de 5 de Maio; mas nestas conferências houve muitas altercações. Posteriormente, Fernando viu-se privado do seu coche e da sua guarda de honra, permanecendo unicamente o Comandante da sua guarda privada, um oficial judeu da Guarda Nacional de Bayonne. A partir deste momento, as circunstâncias alteraram-se, e Napoleão passou a exibir um semblante diferente e furioso na presença do Príncipe; e intimou os nobres que tinham acompanhado Fernando, dizendo-lhes que responderiam com as suas cabeças pela segurança da sua pessoa, o que produziu entre eles um desânimo repentino. 
Parece que estas conferências tinham como fim ganhar tempo até à chegada de Godoy, do Rei e da Rainha. Porém, entretanto, Napoleão intimou Fernando com a proposição de que o reino dos Borbons tinha chegado ao fim, acrescentando que os interesses de ambos estavam em desacordo, e que a continuação do ceptro nas suas mãos já não podia contribuir para a execução dos seus planos e para os vastos objectivos políticos que tinha em mente. Não obstante isto, Napoleão pressionou Fernando a aceitar o reino da Etrúria, e ordenou aos Grandes de Espanha para que aconselhassem o seu Príncipe a aceitar a sua proposta. 
Fernando respondeu audaciosamente: Não aceitarei a Coroa da Etrúria ou qualquer outra Coroa do mundo enquanto a natureza me permitir reivindicar legitimamente a da Espanha. A minha única ambição é tornar o meu povo feliz; e preferirei morrer no meio dos meus fiéis espanhóis, ainda que o meu destino seja pôr as correntes da servidão, e renunciar a tudo o que mais me prende à vida. Censurando depois Napoleão por o ter enganado com este convite para visitar a França, respondeu o Imperador que se não tivesse vindo voluntariamente, que ele o teria feito vir à força.
Quando chegou Godoy, o Rei e a Rainha, que foram recebidos e acolhidos com a maior magnificência, decorreu a Sessão ou Congresso de 5 de Maio, presidido por Napoleão I e Carlos IV, onde estiveram presentes a Rainha María Luísa, o Infante D. Carlos, Godoy, os Grandes da Espanha e o Primeiro-Ministro Cevallos. A Rainha, num ataque de raiva, dirigiu-se ao seu filho Fernando: Traidor e desgraçado, há anos que vínheis imaginando e maquinando a morte do Rei vosso pai, mas devido à vigilância do Príncipe da Paz, por zelo e lealdade, não atingistes o vosso objectivo. Nem vós, nem aqueles traidores que serviram e cooperaram convosco no vosso principal plano. Digo-vos cara a cara que sois meu filho, mas não do Rei. Sim, sem terdes outro direito à Coroa que aquele que deriva da vossa mãe, procurastes arrancá-la de nós à força; mas eu quero e consinto que o Grande Napoleão seja o árbitro entre nós, a favor do qual renunciamos e cedemos os nossos direitos, excluindo a nossa família [do direito ao trono da Espanha]. Apelei a ele para vos punir, bem como aos vossos associados, como traidores, e confio toda a nação a Napoleão.
Napoleão pôs um fim a esta cólera, dizendo: Não! Eu dou a Fernando a Coroa de Nápoles, e ao Infante Carlos a da Etrúria, juntamente com duas das minhas sobrinhas em casamento. Deixai-os dizer se concordam com esta proposta. O Infante D. Carlos respondeu audaciosamente: Imperador, eu não nasci para ser um Rei, mas sim um Infante de Espanha. E dirigindo-se ao seu irmão: E vós, meu irmão e rei, falai, não vos alarmeis, defendei o vosso direito, sois espanhol; o vosso país estará pronto para sacrificar o seu sangue por vós e pela sua independência. Não vos alarmeis, mas vamo-nos daqui, mesmo que seja para o cadafalso ou para um aprisionamento perpétuo; para que a Providência que dirige uma nação fiel lance no devido tempo a sua vingança sobre um Imperador infiel, que desconsiderou desta forma a sua própria promessa, e que pôs de lado qualquer aparência de direito e razão. Ah! Fernando, quem vos rouba a Coroa de Espanha? Um pai ignorante, uma mãe infame, o conspirador da morte do vosso pai, o usurpador dos direitos legítimos da vossa família, o autor das calúnias, e um apóstata na religião. Quem sustenta estas maquinações? O tirano da Europa, em cuja protecção confiámos. E acabou, dizendo: Napoleão, não sou mais um Infante da Espanha, mas nasci sendo-o! O Ministro Cevallos começou então a falar, e, com uma eloquência fluída, apostrofando Godoy, disse: Homem infame, que não mereceis ser chamado espanhol, haveis vendido o vosso país e o vosso Príncipe! Mas o próprio Imperador que agora parece proteger-vos, decretou por si mesmo a vossa punição e a do Rei pai. Não vedes, traidor, como ele está ganhando vantagem a cada momento destas discórdias? Ah! como haveis podido influenciar as mentes destes miseráveis pais em relação aos seus próprios filhos? Tínheis como obrigação cumprirdes o vosso dever em relação a eles, mesmo que fosse somente como retribuição por vos terem salvo a vida da fúria da populaça [em Aranjuez]: Eis o vosso erro - os vossos crimes. Respondei! Mas julgo que seja impossível. Não é assim comigo, que sou um espanhol leal, a segunda pessoa da nação e o primeiro vassalo do Rei. Mas Cevallos cumpriu religiosamente o seu dever; e sempre tremestes diante de Cevallos. Continuou falando assim à volta de uma hora e um quarto; e então o Imperador não soube o que responder para refutar os argumentos de Cevallos. Recorrendo então à sua autoridade, ordenou que este fenómeno fosse removido da sua presença, dizendo: É impossível que a terra permita viver um homem com tanta liberdade diante do Imperador dos franceses. Contudo, recompensar-vos-ei por isto. O sr. Cevallos saiu e o sr. Gomez falou depois. Mas por último foi decretado por Napoleão I e Carlos IV que Fernando VII deveria renunciar à Coroa, a favor do seu pai, no espaço de seis horas. Debaixo desta violência, Fernando foi compelido a fazê-lo, embora com algumas restrições, as quais Napoleão estava disposto a admitir, e com as quais concordou com Carlos IV. Finalmente, este último consentiu em abdicar e em ceder a sua Coroa a Napoleão; que por sua vez a transferiu para o seu irmão José I, que se encontra em Nápoles; ficando entretanto nomeado o Grão-Duque de Berg como Tenente do Reino.


[Fonte: The National Register, n.º 27, July 3, 1808, p. 419; The Scots Magazine, and Edinburgh Literary Miscellany, July 1808, pp. 529-531].

Renúncia oficial de D. Carlos IV à coroa espanhola, a favor de Napoleão (8 de Maio de 1808)



[Fonte: Suplemento Extraordinário à Gazeta de Lisboa, n.º 21, 27 de Maio].