quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Uma "carta americana" sobre os eventos decorridos até ao dia 14 de Dezembro

CARTA XLIII
Plácido a Venâncio



Dezembro de 1807


O nosso Protector, conhecendo quanto é violento para a alma humana o estado de dúvida, não quis que fosse incerto por mais de 24 horas, se nele ou no Conselho de Regência residia o poder supremo; e com esta benéfica tenção despachou no primeiro deste mês para comissário do Governo francês um certo Hermann, que logo nomeou no dia 3 para administrador das Finanças.
Não podia demorar-se sem grave prejuízo o segundo despacho; não só porque os negócios de maior monta para os franceses pertencem à Repartição da Fazenda, mas também porque tendo-se resolvido no mesmo dia 3 tirar aos negociantes, a título de empréstimo, dois milhões de cruzados1, pedia a boa ordem que se tivesse nomeado quem vigiasse sobre a sua arrecadação. 
Outros se contentariam de ter podido em quatro dias lançar mão das rédeas do Governo; fazer um ministro da Fazenda; e obrigar a Praça de Lisboa ao desembolso de dois milhões; mas a actividade francesa ainda fez, dentro do mesmo prazo, o chefe da Marinha2; proibiu o uso das armas de fogo e a caça; e ordenou a confiscação das manufacturas inglesas e de todos os bens móveis, e de raiz, pertencentes a vassalos da Grã-Bretanha3.
Sobre a última providência dizem alguns que, sendo já de portugueses grande parte das fazendas condenadas, sofrem eles, e não os ingleses, a confiscação dessa parte; mas provavelmente não seria atendida esta razão quando fosse representada, pois consta que os tais guerreiros invictos trazem mais fama que dinheiro.
Estes importantes Decretos formaram o assunto quase universal das conversações até ao dia 9, em que houve uma pequena diversão, motivada por nova ordem do General Junot, que esfriou de algum modo a desaforada liberdade com que os Oficiais do seu Exército exigiam nas casas em que se aboletavam, não só o necessário mas o supérfluo. Um escolhia os melhores quartos para seu aposento; outro, desdenhando a comida que se lhe oferecia, designava (como se as pagasse) as iguarias do jantar e da ceia; este apresentava a lista numerosa dos trastes que não podia dispensar no seu serviço; aquele mudava em pouco tempo de alojamento, só para conduzir ao novo os móveis de que se tinha servido no antigo.
Apenas se podem crer tantas petulâncias e vilezas praticadas por uma nação que há vinte anos blasonava de polida. De nenhuma revolução nos fala a História, que se possa comparar em resultados com a de França. Ao amor das ciências sucedeu a ignorância e o pedantismo; ao gosto apurado das artes, o apetite desordenado das inovações; ao trato urbano, e talvez excessivamente fino, as maneiras grosseiras e brutais do homem simplesmente guerreiro; e às máximas justas de humanidade e beneficência, a sede insaciável de sangue e de rapina. Terminemos porém uma digressão, cujo progresso conduziria longe desta cidade, quando quero relatar-te os sucessos do dia 13, em que a gentalha de Lisboa quis dar uma prova indubitável de pusilanimidade e loucura.
O General francês fez de manhã, no Rossio, o primeiro alardo das suas tropas, e depois duma curta fala que dirigiu aos soldados, deram estes com ele repetidos vivas ao Imperador, em cujo tempo se arvorou bandeira francesa no Castelo [de S. Jorge], com grandes salvas de artilharia. Retiradas as tropas da praça, o povo que a ficou ocupando e que era inumerável começou a mostrar os primeiros sinais de descontentamento nos altos vivas que também deu ao Marquês de Alorna, que por ali casualmente passava. De tarde já foram insultadas algumas sentinelas; e à noite, bandos mais numerosos se formaram em diversos bairros blasfemando, e ameaçando a vida de Junot. Parece que este, apesar de lhe constarem as injúrias contra ele directamente proferidas, intimou aos Comandantes dos Corpos que saíram armados, que reprimissem sem efusão de sangue o atrevimento dos levantados4, como quem estava seguro de que o motim da mosquetaria era bastante para pôr em fuga o inimigo; e com efeito, espavorido largou o campo, apenas começaram as descargas. 
No dia seguinte de manhã ainda o povo enxovalhou e feriu gravemente um Oficial francês, que encontrou desgarrado no Rossio; mas cuido que esta façanha foi a última agonia do valor lisbonense, pois o sossego foi nesse mesmo dia restituído pela actividade e vigilância das guardas da polícia, e depois felizmente conservado até hoje pelo temor que inspirou a pena de morte cominada contra os cabeças de motim, e os que nele usassem de armas5, e talvez pela força persuasiva da Pastoral do nosso Patriarca6, bem que publicada quatro dias antes deste pequeno reboliço.


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1. No dia 4 se criou para esse fim uma Junta de negociantes, da qual foi presidente o Barão de Quintela.

2. Magendie.

3. Por dois Decretos de 4 de Dezembro de 1807.

4. Talvez foi esta a única ordem boa que deu em todo o tempo do seu governo, e ainda se foi saudável nos efeitos, era muito ruim na tenção.

5. Por Decreto de 14 do mesmo mês e ano.

6. É a Pastoral de 8 de Dezembro de 1807.


In Cartas Americanas publicadas por Theodoro José Biancardi, Lisboa, na Impressão de Alcobia, 1820, pp. 134-138 [as notas são do autor; todos os documentos citados estão publicados neste blog].

"Aventura terrível e jocosa dos bravos da Gironda na Igreja do Santíssimo Sacramento em Lisboa", por Acúrsio das Neves



em Lisboa, cenário dos eventos descritos abaixo












Os primeiros motins na capital e as reações de Junot


Nota: O texto que abaixo se transcreve provém da obra manuscrita de Domingos Alves Branco Muniz, Memoria dos Successos acontecidos na Cidade de Lisboa..., fls. 32-35. A nota com a letra é do autor, as restantes (numeradas) são nossas.



"Quando o povo de Lisboa estava persuadido de que o Exército francês e o seu General em Chefe tinha entrado no Reino de Portugal para o proteger, como tinha proclamado debaixo das ordens do Governo provisional que V.A.R. [Vossa Alteza Real] deixou, pelo contrário se viu no dia 13 de Dezembro, logo ao romper do dia, içar-se [a] bandeira francesa no castelo de Lisboa, firmada com uma salva de 21 tiros, o que imitaram as torres e fortalezas, e igualmente todos os navios de guerra portugueses correspondendo com iguais salvas.
Amotinou-se o povo, como era de  [se]  esperar com este inesperado sucesso1, e por todos foi inteiramente desaprovado.
Já no dia antecedente tinha determinado o General em Chefe que se juntasse no dia seguinte de manhã toda a tropa francesa, tando de Cavalaria como de Infantaria, para se lhe passar revista no largo do Rossio, para onde se encaminhou o mesmo General em Chefe pelas onze horas da manhã, vestido de grande e rico uniforme, e acompanhado por todos os Generais seus imediatos; pelos Generais de Divisão, e Oficiais maiores, e pelo Conde de Novion, que era inseparável do lado do General em Chefe.
A guarda que nesta ocasião o acompanhou era composta de um Esquadrão de Cavalaria francesa e outro Esquadrão do Corpo da Polícia. Eu fui assistir a esta revista pela curiosidade de orçar o número de tropa de que ela se compunha, e achei ser de oito mil homens pouco mais ou menos, inclusive o Corpo de Artilhariaa.
Logo que o General em Chefe chegou ao largo do Rossio, depois de receber as continências que lhes eram devidas, ordenou ao General Delaborde que mandasse formar um quadrado, o que, executando com toda a destreza, se foi o mesmo General postar no seu centro com todo o seu Estado Maior, e aí, em nome do Imperador e Rei, fez à mesma tropa a fala seguinte:




Gravura representando Junot 
a passar revista às suas tropas no Rossio




Fala

Soldados franceses, bravo Exército de Gironda:
Da parte do Grande Napoleão vos agradeço a constância com que tendes sofrido todos os trabalhos e fadigas da nossa marcha. O céu protege o fim a que nos propusemos, de salvar a mais bela cidade da opressão dos ingleses e da desordem; finalmente temos a glória de vermos arvorada a bandeira francesa neste posto. Soldados, oficiais e Generais, eu estou contente do vosso comportamento. O Grande Imperador Napoleão 1.º saberá compensar os vossos trabalhos e conduta, e por isso é preciso que digamos todos:
Viva o Imperador Napoleão.



Assim se executou porque logo que o General em Chefe finalizou aquela fala, tirou o chapéu, e levantando-o muito acima, foi ele o primeiro que deu três vivas ao Imperador e Rei, ao que todo o Exército correspondeu com iguais vivas, concluído o que tornando à forma de batalha, se retiraram os Corpos para os seus quartéis, e igualmente o General para o da sua residência, acompanhado com a mesma pompa, a esperar as pessoas que no dia antecendente tinham sido convidadas para nesse dia jantar com ele, e para o que se preparou uma mesa de cem talheres, com muita profusão e delicadeza; e aonde jantaram os membros do Governo da Regência, o Núncio2o Almirante russo, a maior parte da grandeza do Reino e alguns tribunalistas, menos o Intendente da Polícia, que não foi convidado.
É digno de notar-se que sendo o General em Chefe hóspede do Barão de Quintela, e sendo este o que fez toda a despesa deste jantar, assim como fazia a diária dos demais dias, foi convidado por uma carta para jantar com o General Mr. Junot na sua casa. Assim o dizia a carta.

Acabando de jantar às oito horas da noite, se encaminharam alguns Generais franceses para o Teatro de S. Carlos [gravura à direita], que nessa noite estava ricamente adornado, e com grande iluminação. A tribuna de V.A.R. foi prostituída aos Generais que tiveram o desacordo de nela se assentarem. Logo que na mesma tribuna apareceu o General em Chefe, deram os franceses três vivas ao Imperador e Rei, outros três ao General em Chefe, que retumbaram porquanto o sobredito General tinha com antecipação disposto tudo, mandando comprar 400 bilhetes de plateia e 60 de camarotes, que foi tudo distribuído pelos Generais, Oficiais maiores e Oficiais subalternos do Exército.

Findo o primeiro acto da ópera, e antes de se dar princípio à dança, mandou o General em Chefe subir a [banda de] música do Regimento de que ele é Coronel ao anfiteatro que se acha por cima da real tribuna, a qual, rompendo uma sinfonia harmoníaca e análogo ao lugar, ao mesmo tempo se viu tremular por cima das Armas Reais de V.A. uma grande bandeira francesa, repetindo todos os Oficiais franceses nesta ocasião três vivas ao Imperador e Rei, e outros três ao General em Chefe, conservando-se a mesma bandeira até finalizar a ópera.
O comportamento que nesta ocasião tiveram os portugueses que desgraçadamente ali se achavam foi qual se podia esperar de uma nação sempre fiel aos seus soberanos. Não houve uma só pessoa que acompanhasse aquela vozaria, e nem que tirasse o chapéu da cabeça, ou se pusesse de pé, estando sentado, mostrando de improviso nos seus tristes semblantes a mágua que lhe ocupava o coração e os desejos de despicar semelhante afronta, contentando-se então por desabafo em saírem como sairam para fora do Teatro, deixando ficar unicamente nele aos mesmos franceses.
Se por todos aqueles anteriores acontecimentos se achava o povo indiposto e descontente, em ponto tão visível que até as prostitutas mais corruptas não lhes abriam a porta, muito mais se aumentou a indisposição pelo inesperado acontecimento de arvorarem a bandeira francesa, produzindo isto um grande ajuntamento no Terreiro do Paço e Rossio, a que se uniram muitos rapazes que gritavam em alta voz: Viva o Príncipe Regente. E como acudisse a guarda francesa a sossegar o tumulto, foram de tal modo apedrejados pelos rapazes que, deixando armas, desamparam a guarda.
Tocou-se a rebate e acudiram todas as tropas francesas a esta desordem, desfilando pelas ruas e por todas as entradas das ruas da cidade baixa um piquete de Cavalaria, e o Corpo da polícia foi encarregado de sossegar o povo, que de novo se mostrou inquieto, quando o Conde de Novion apareceu no Terreiro do Paço, o qual sofreu muitos e justos impropérios do povo, que a uma vós bradavam: Fora traidor3.

Continuou esta desordem toda a noite e parte da manhã do dia seguinte, e o povo cada vez mais cheio de entusiasmo, não era nada equívoco o que eles pretendiam: que era o sinal dum chefe que os dirigisse. E suposto que o General Mr. Junot afectou que semelhante sucesso não lhe dera cuidado, e que nem tinha merecido o trabalho dele calçar as botas; contudo, isto se desmente, porque quem não tem receio não manda dobrar as guardas; nem destaca patrulhas de Cavalaria por todas as ruas; e menos manda guarnecer a entrada do palácio da sua residência com duas peças de artilharia do calibre de 8, com destacamento de artilheiros, e com morrões efectivamente acesos, como ele pôs em prática, e por muitos dias.







Fonte: BND
Guarda da Cavalaria da Polícia de Lisboa,
comandada pelo Conde de Novion





Foram mortos nesta pequena insurreição sete pessoas, a saber: três franceses e quatro portugueses, o que tudo deu motivo à seguinte proclamação do General em Chefe:



Proclamação


O Governador de Paris, Primeiro Ajudante de Campo de S. M. o Imperador e Rei, General em Chefe:

O maior de todos os crimes é a Rebelião

Vós vos deixastes arrastar ontem por alguns maus indivíduos que para vos comprometer se atreveram a atirar às minhas tropas, estando entre vós. Eu os conheço; eles pagarão com a sua cabeça o insulto que se atreveram fazer à bandeira francesa; mas eu não confundo entre os maus os honrados habitantes de Lisboa; e pela segurança dos bons cidadãos é que eu determino o que se segue:
Todo o ajuntamento de qualquer natureza que ele seja, é proibido.
Todo o indivíduo que se encontrar armado num ajuntamento será conduzido à Comissão Militar criada pelo meu decreto da data de hoje, para ser julgado, e sentenciado a três meses de prisão, se ele se não serviu das suas armas, e no caso de ter feito uso delas, contra quem quer que for, será condenado à morte.
Todo o indivíduo que for preso num ajuntamento, convencido de ser um dos chefes, ou cabeça de motim, sofrerá a pena de morte.
Dado no Palácio do Quartel-General em Lisboa, a 14 de Dezembro de 1807.
Junot






Como em todo o tempo daquele movimento tumultuoso não tinha aparecido o Intendente Geral da Polícia [Lucas de Seabra da Silva], foi chamado à presença do General em Chefe, que depois de o fazer esperar na sala vaga perto de três horas, lhe apareceu perguntando-lhe, sem lhe fazer cortejo algum, o que tinha sucedido nos dois dias antecedentes e aonde se tinha ele achado; ao que respondeu o Intendente que «não sabia»; e Mr. Junot lhe replicou: «Logo vós sois um mau Intendente da Polícia». «Não duvido», respondeu Lucas de Seabra, «e tão mau que quanto Sua Alteza Real me quis conferir este cargo, eu lhe apresentei a minha insuficiência; e agora que o Sr. General em Chefe a reconheceu, eu peço a minha demissão». «Não aceito», respondeu Mr. Junot, «pode continuar».
Tendo o General em Chefe, havia dias, mandado chamar o Marquês de Vagos4, que por muito doente não pôde cumprir a ordem, no dia 15 de Dezembro, porém, em que se achava melhor, apresentou-se ao referido General. Foi recebido com muita atenção e benevolência, sistema que adoptam os franceses do crocodilo, que afaga quando quer engolir, e lhe propor que era melhor reunir a tropa portuguesa com a francesa, para fazerem um só corpo, e mesmo usando todos do mesmo laço do Imperador no chapéu. Ouviu o Marquês de Vagos esta proposição sisudamente e sem interromper ao General francês; ao que respondeu: que ele não considerava o Reino de Portugal conquistado, mas que se o estava, então ele e todos os militares portugueses eram prisioneiros de guerra; mas que se não era conquista, como estava claro, e sem embargo disso Sua Excelência quisesse teimar na sua proposição e constrangê-lo, que ele lembrava que o mês de Janeiro era em Portugal o mais funesto para os velhos, e que nesta consideração lhe era indiferente morrer no mês de Dezembro em que se achava, ou no outro que se lhe seguia, e com esta resposta se despediu de Mr. Junot".


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a. [Nota do autor] "O Exército francês de Portugal compunha-se de 8 mil homens em Lisboa; e 5 mil guarnecendo Mafra e seus distritos na borda d'água; as torres, fortalezas e navios".

1. O autor deste texto diz que tal acontecimento foi inesperado; mas deve estar referindo-se ao hastear da bandeira no castelo de São Jorge. De facto, Junot tinha escrito a Napoleão, no dia 2 de Dezembro, referindo-lhe que "o Pavilhão francês flutua sobre o porto de Lisboa há dois dias [ou seja, desde o dia 30 de Novembro]; foi saudado por cem tiros de canhão, e ninguém o retirará sem antes passar sobre os corpos do exército de Vossa Majestade e do seu General em Chefe" [JUNOT, Diário da I Invasão Francesa, p. 109].


2. Referência ao Arcebispo de Nisibi (actual cidade turca de Nusaybin), D. Lourenço de Caleppi (ou Callepi), que se encontrava em Lisboa na qualidade de Núncio Apostólico (cargo para o qual tinha sido nomeado em 1801). Apesar do príncipe regente tê-lo convidado para o acompanhar na viagem para o Brasil, o Núncio foi obrigado a ficar em Lisboa, pois chegando ao cais no dia do embarque, com a pressa e confusão já descritas, ninguém lhe tinha guardado um lugar nas embarcações... Mais adiante daremos algum destaque à sua atribulada evasão de Lisboa.

3. O Conde de Novion era um oficial francês que fugira à revolução francesa. Exilando-se em Portugal, o príncipe regente confiara-lhe desde 1801 o cargo de Comandante da Guarda Real da Polícia. Daí que o povo lhe chamasse traidor, por agora aparentemente estar a servir a Junot.


4. D. Nuno da Silva Telo e Menezes Côrte-Real (1746--1813). Era o  Comandante das Armas da província da Estremadura, como já baixo foi referido.