sexta-feira, 29 de julho de 2011

Évora no seu abatimento, gloriosamente exaltada: ou narração histórica do combate, saque e crueldades praticadas pelos franceses em 29, 30 e 31 de Julho de 1808 na cidade de Évora, por António Souto Galvão Pereira (excerto)


[...] 

Narração histórica do combate, saque e crueldades praticadas pelos franceses na cidade de Évora; e notícia do estado da província do Alentejo antes daqueles factos.


Geralmente sabemos a insidiosa perfídia com que as tropas francesas e o seu General, desde os fins de Novembro de 1807, com o título de nos protegerem, se assenhorearam destes Reinos. E depois, com o fim de serem mais temíveis, extinguiram os nossos Regimentos, assim de Milícias como das Tropas de Linha, de que mandaram bastantes para França.
Logo que os Regimentos foram extinguidos, se observou na província, pelos montes, estradas, uma grande chusma de ladrões e bandoleiros que, em companhias, roubavam impunemente, fazendo-se como precursores de maiores ladroeiras, depois praticadas pelos mesmos franceses, como adiante mostraremos; sendo agora bastante dizer-se que chegou a tanto a ousadia dos ladrões daquele tempo que, não contentes em roubarem nas estradas, com um mando imperioso impunham contribuições de dinheiro aos moradores de algumas vilas e aldeias. 
Os franceses, para serem mais temidos como temos visto, não só extinguiram os nossos Regimentos, mas por uma igual razão extinguiram inteiramente o uso das armas brancas e de fogo, vedando-as a todos. E esse era o motivo porque os camponeses e os passageiros ordinariamente sucumbiam nas estradas, sem defesa. 
Estes acontecimentos, o peso das contribuições chamadas de guerra e o saque praticado nas Igrejas faziam a consternação de muitas famílias honradas, maiormente espalhando-se a notícia das mortandades praticadas em Vila Viçosa e Beja, onde os franceses, sem pejo, mostraram claramente que a sua pretendida protecção era uma refinada ladroeira.
Mas esses e outros males deram motivo a que alguns cidadãos amigos da pátria, em diferentes lugares, com o exemplo que tiveram dos algarvios, conceberam ideias de sacudirem o infame jugo, servindo-lhes de estímulos a saudade e a lembrança do nosso amado Príncipe Soberano. 
A Évora, depois da mortandade sofrida em Beja, foi trazida uma carta em nome do Coronel espanhol Federico Moretti, prometendo auxílio para nos liberarmos do nosso cativeiro. E já por esse tempo o Coronel de Milícias Francisco Pereira da Silva Sousa e Meneses, cheio de zelo pela pátria e concebendo ideias de restauração, se havia deliberado a partir à sua custa para Sevilha ou para Badajoz, a fim de pedir nas Juntas daquelas cidades todos os socorros necessários. E com efeito, sendo sabedor que nos vinham auxiliar de Badajoz por aquele Coronel Moretti, lhe foi sair ao encontro, em ocasião que o mesmo já vinha com o Excelentíssimo General da província Francisco de Paula Leite, em direitura para Évora, onde chegaram na noite de 20 de Julho, para saberem o voto e a deliberação daquele povo.
Na sobredita noite de 20 de Julho foi o General recebido à Porta de Avis por gente inumerável que o conduziu às casas da Câmara, dizendo muitas vezes com entusiasmo Viva o nosso Príncipe, e morram os franceses, o que depois se repetiu com muito maior entusiasmo, quando da varanda da Câmara, entre muitas luzes, foi mostrado ao povo um excelente retrato do nosso amado Príncipe Soberano.
A essa função esplêndida concorrem os Desembargadores José Francisco Fernandes Correia, José Paulo de Carvalho, Fernando da Silva Teles, e outras muitas pessoas da principal nobreza, assistindo do corpo militar o Tenente Coronel Francisco Manuel Couceiro da Costa, Comandante da Praça; Manuel Ferreira da Costa, Sargento mor das Ordenanças, e o Coronel de Milícias Francisco Pereira da Silva, que todos na exposição daquele retrato, cheios de respeito, beijavam a Mão Real na pintura; dando isso motivo ao Coronel Moretti dizer publicamente: Já estou satisfeito, e não pretendo mais provas da fidelidade e lealdade dos eborenses.
Saíram depois da Câmara todos aqueles assistentes, e com solenidade, levando o estandarte com as Armas Reais patentes, foram à Sé Catedral dar graças ao Altíssimo, fazendo entoar um solene Te Deum, com assistência do Excelentíssimo Arcebispo Metropolitano [Frei Manuel do Cenáculo]. E essa mesma noite se determinou para o seguinte dia uma missa de acção de graças, como prelúdio da Junta que então se organizou para o governo da cidade, tendo por Presidente o mesmo Excelentíssimo Arcebispo. O Excelentíssimo General da província teve a nomeação e exercício de Vice-Presidente. E os deputados foram o Excelentíssimo Bispo do Maranhão, o Mestre-Escola António Maurício Ribeiro, o Cónego Sebastião José Barbosa Cordovil, os Coronéis Federico Moretti e Francisco Pereira da Silva Sousa e Meneses, o Doutor Joaquim José Vieira, João da Silva de Amaral, e Deputado Secretário o Doutor Desembargador José Francisco Fernandes Correia.
Esta respeitável Junta na sexta-feira 22 de Julho, num solene bando formado pelos quatorze juízes incumbidos da polícia dos bairros, com acompanhamento de tropas e ao tom de instrumentos bélicos, mandou publicar pelas ruas e praças a restauração da nossa liberdade pela suave aclamação do nosso amado Príncipe. E no mesmo dia de tarde, considerando a Junta que havia uma grande falta de armas brancas e de fogo para o armamento da tropa, determinou que os juízes da polícia nos seus bairros respectivos pedissem e logo mandassem todas as armas para o Trem público.
Na mesma sexta-feira 22 de Julho chegaram de Badajoz algumas tropas, com oito peças de artilharia de pequenos calibres. E por a Junta considerar a reorganização dos extintos Regimentos como uma das obras da maior importância, esse mesmo dia determinou que o Tenente Coronel Francisco Manuel Couceiro da Costa, já com a promessa de Coronel, organiza-se sem demora o seu Regimento de Cavalaria n.º 5. E essa mesma determinação se participou aos Chefes dos outros Regimentos. E assim se conseguiu que a reorganização fizesse progressos não só em Évora mas igualmente em Estremoz, Campo Maior e Beja, trabalhando-se nas Juntas desses povos com a maior eficácia e zelo, para conseguir-se a nossa restauração e defesa.
Continuou a Junta da cidade de Évora no grande projecto de formar um Exército, que tanto se fazia necessário por haver notícia de que uma divisão das tropas francesas de Lisboa destinava, sem demora, dar um castigo à cidade, e muito mais à Junta, em que a maior parte dos seus membros vivia sem custo, por o seu colega o Desembargador José Paulo de Carvalho inculcar que os franceses de Lisboa e todos os do Reino se achavam reduzidos a onze mil; e que sendo esses apenas bastantes para conservarem a sua dominação na corte, em Setúbal, Palmela, Elvas e noutros pontos, mal podiam entrar na província com algumas tropas causadoras de susto. 
Vendo-se a Junta naquelas circunstâncias, e ao mesmo tempo entrando na cidade outros corpos de tropas de Estremoz e espanholas, ideou com os chefes e comandantes o belo projecto de guarnecer do melhor modo possível a esquerda do Tejo, a fim de evitar-se o desembarque de alguma divisão do Exército francês concentrado em Lisboa. E em consequência, olhando-se que Montemor[-o-Novo] é o ponto central de todas as estradas que ali se separam da da corte, fez partir para essa vila o Coronel Simão Aniceto Borges com o seu Batalhão de Voluntários de Estremoz, a que se uniram outras tropas, fazendo-se por todas com pouca diferença oitocentos homens, com quatro peças de artilharia e dois obuses. E essas forças eram bastantes, se fossem sinceras as notícias que dava o Desembargador José Paulo.
Mas todos os projectos que a Junta mandava executar eram logo noticiados aos franceses de Lisboa pelos seus partidistas; e por isso, quando o Coronel Borges, com a promessa de ser feito Brigadeiro, saiu da cidade com aquelas tropas, já de Aldegalega [=actual Montijo] partia para Évora um Exército francês de cinco a seis mil homens, com quinhentos cavalos e bastante artilharia de campanha. E em tais circunstâncias, logo que o Coronel Borges chegou a Montemor, foi imediatamente atacado pelas guardas avançadas do Exército francês, que o obrigou a retirar-se, não devendo arriscar contra um grande número as suas pequenas forças. 
No dia 28 de Julho pela manhã divulgaram os partidistas dos franceses que as tropas destes existentes em Montemor não excediam a oitocentos homens. E essas notícias falsas tiveram aceitação, enchendo-se todos de gosto em vista de tão pequenas forças do inimigo. Mas esse pequeno gosto passou logo a mudar-se em consternação, quando na mesma manhã os paisanos das éguas levaram à cidade, debaixo de prisão, um caldeireiro a que se achou uma carta que aos franceses mandava o Desembargador José Paulo.
A Junta, no mesmo dia 28, para conhecer as forças da cidade, fez de tarde tocar a rebate para se verem no Rossio os cidadãos de todas as classes com as suas armas. E nessa revista observaram alguns que o Desembargador José Paulo, andando armado com clavina e pistolas, mostrava um semblante cheio de susto, e que não olhava direito a quem lhe falava. E nessa noite também se observou que ele não dormiu em sua casa.
Por cautela, no mesmo dia 28, em razão dos franceses se acharem próximos em Montemor, foi deliberado na Junta que o Tenente Coronel Francisco Manuel Couceiro da Costa, com a sua cavalaria, fosse a pernoitar no campo, junto ao sítio da Cruz da Picada. O que ele cumpriu com oitenta homens mal armados, entrando nesse número a sua oficialidade completa. E o serviço dessa noite consistiu nele mandar para todos os lados descobridores e patrulhas.
A nossa Cavalaria, além dos sobreditos oitenta homens daquele Regimento n.º 5, tinha mais um esquadrão de cem homens do Regimento espanhol de María Luisa; outro esquadrão de igual número do Regimento dos Voluntários de Castela; e um corpo de éguas com paisanos armados de chuços, paus e espadas.
A Infantaria deste pequeno exército consistia no Regimento de Estremoz, a que se uniram os Caçadores da cidade e das quintas. Do Regimento de Cavalaria n.º 5 saíram cem homens a pé, por falta de cavalos; e no dia 29 pela manhã acabou de chegar à cidade a Legião espanhola do Coronel Moretti, que se compunha pouco mais ou menos de seiscentos homens. Donde resulta podermos calcular que esse corpo combinado, em Cavalaria, Infantaria, Milicianos e Paisanos armados, não chegava bem a dois mil homens. 
A cidade, em que por cautela se haviam tapado com muros de pedra e barro quase todas as portas e buracos, ficou entregue aos cuidados do seu Governador, o Coronel Francisco Pereira da Silva, que incumbiu o comando das Milícias ao Tenenten Coronel agregado João Agostinho Couceiro da Costa; e um e outro, com todos os cidadãos zelosos, guarneceram as muralhas e as portas do Rossio e Machede, únicas que estavam destapadas; e que a todas as horas, as mesmas muralhas eram vigiadas pelos clérigos e os frades que andavam armados, cada um nos seus respectivos corpos*

Relação do Combate das tropas francesas com as combinadas.

O Excelentíssimo General da província Francisco de Paula Leite, com o Coronel Federico Moretti e outros oficiais inteligentes, no dia 28 de Julho, reconhecendo nas vizinhanças da cidade todos os terrenos e alturas, postaram as tropas nos pontos mais convenientes a uma boa defesa. No alto de S. Bento, que domina tanto a Estrada Real de Montemor, como a um atalho ou ramificação da mesma Estrada, postaram aqueles Chefes uma Companhia de cem homens a pé, de que já falámos, pertencentes ao Regimento de Cavalaria n.º 5, comandados pelo Capitão António Carlos Cary, para proteger as peças de artilharia que ali se achavam, tendo à sua vista mais duas Companhias de Granadeiros espanhóis, e outra de alternação, como também um corpo de artilharia montada para o serviço daquelas peças, também protegidas por cinquenta soldados de Cavalaria.
À esquerda da cidade, noutro lugar conveniente, foram postados os Caçadores de Vila Viçosa com algumas companhias de éguas; e o centro daqueles dois pontos foi ocupado pelo Regimento da Infantaria portuguesa de Estremoz com alguns obuses, ficando por todos os lados muitas patrulhas de Cavalaria e guardas avançadas entre a Estrada Real e as sobreditas alturas.
No dia 29 de Julho pela manhã, como acima vimos, teve a cidade o gosto de ver chegar às suas portas o resto que faltava da Legião de Moretti. E como esse reforço auxiliar partisse logo a incorporar-se no Exército, imediatamente, seriam oito horas da manhã, avistaram as nossas guardas avançadas, descendo dos altos da Abaneja, pela Estrada Real, algumas tropas francesas; em consequência, reunindo-se no Exército combinado todos os corpos, tocou-se à generala; e os nossos Comandantes, visitando todos os pontos, observaram que o centro era dominante ao outeiro de S. Caetano, onde fizeram assestar alguns obuses, comandados por um Oficial espanhol. E do mesmo centro, passado pouco tempo, começou o fogo do combate com os obuses, e com tanta violência que o inimigo fez alto mais de meia hora para diante do lugar da Machoca, em que a nossa direita o incomodava, causando-lhe uma grande mortandade com o bem dirigido fogo da artilharia, que o obrigou a formar-se em muitas colunas, protegidas com a Cavalaria na vanguarda; e assim acometeram o nosso Exército, partindo direitos ao outeiro de S. Caetano, em que foram batidos com tal vigor que, instantaneamente, sendo derrotados em colunas inteiras, chegou à cidade a notícia feliz de termos ganhada a vitória.
Mas naqueles momentos de gosto e consolação, uma granada que veio do campo inimigo pôs inteiramente em desordem a nossa Cavalaria, que, depois, tornando a reunir-se com alguma demora, observou que os franceses, na Estrada Real, tinham ainda em reserva três a quatro mil homens que caminhavam brandamente, e que logo, entrando pela sua esquerda nas alturas, deram indício de que, fiados no seu grande número, pretendiam meter-nos num cerco; e isso deu motivo a que os nossos, já bem despicados, perdendo todas as esperanças de vencerem, cuidaram em fazer uma boa retirada. 
Os inimigos, então, ou por ignorarem o terreno, ou pela sua imperícia no manejo da artilharia, ou talvez por recearem alguma emboscada, caminharam no princípio lentos e como [que] duvidosos. O que deu motivo a que os Caçadores de Évora, comandados pelo seu Capitão Manuel Inácio, mesmo fugindo, lhe[s] causassem por todos os lados um grande estrago. E a Infantaria de Estremoz fez a sua retirada com tanta glória que, muitas vezes voltando a cara aos inimigos, atirava contra eles descargas serradas. E o mesmo com pouca diferença praticaram os mais corpos, especialmente valendo-se do embaraço que divisaram nos franceses e das posições vantajosas que lhes oferecia um terreno dobrado e com muitos arvoredos.
Mas ultimamente, no fim de quatro horas de combate, seriam três da tarde, achando-se as nossas tropas muito fatigadas, a maior parte delas em jejum, especialmente a nossa Cavalaria, que pernoitara no campo, ardendo todas em sede, e já sem munições com que carregassem as suas espingardas, deram a contenda por concluída; e evitando a morte como melhor puderam, caminharam uns para Estremoz, e outros, com o Excelentíssimo General da província, foram para o Redondo e Vila Viçosa, todos verdadeiramente coroados de glória, por terem perdido no combate oito ou dez homens, matando ao inimigo perto de três mil daqueles soldados que ele quer persuadir serem os melhores do mundo.
O Coronel Moretti, que tão zelosamente se desvelara por libertar-nos do nosso cativeiro, entrou na cidade pela porta do Rossio, e, encaminhando-se à Sé, falou com o Excelentíssimo Arcebispo; e pouco depois, partindo com algumas tropas, foi a encontrar-se com o Excelentíssimo General da província, enquanto a cidade, em alguns pontos, trabalhava com a maior actividade pela sua defesa.

Saque e crueldades praticadas em Évora e nas suas vizinhanças.

Vendo-se os franceses já senhores do campo, não tiveram a lembrança de enterrarem os seus mortos, nem mesmo a de perseguirem alguns fugitivos, porque a sede do saque os fez com a Cavalaria cercarem a cidade, enquanto a Infantaria, com bastante custo, investiu as portas e as muralhas que, por muito arruinadas e mal guarnecidas, lhe deram entrada; e imediatamente aqueles vencedores, tocando à degola, foram matando gente pelas Igrejas e pelas ruas e praças.
Os corações mais bárbaros se enterneceriam com os gemidos e soluços que numa cidade grande, naquela tarde e noite, davam os seus habitantes, com especialidade as mulheres e as filhas, vendo na sua presença cruelmente assassinados os pais e os maridos.
As Igrejas foram cheias de muitas pessoas que ali se refugiaram, persuadindo-se que os franceses, por terem o nome de Católicos Romanos, lhes dessem ali um seguro asilo, pelo respeito devido aos Templos dedicados ao culto do Altíssimo. Mas, oh que horror! entrando aqueles bárbaros, quebraram desapiedadamente as Sacrossantas Formas, para roubarem as píxides, os cálices e os mais vasos de prata consagrados. E nas mesmas Igrejas, diante de povo imenso, com a mais brutal lascívia, quiseram praticar acções torpes com as mulheres honestas que ali se achavam.
Ao estrago das Igrejas seguiu-se o das casas particulares, em que os franceses entravam quebrando as portas, com cujo estrondo, com o alarido das mulheres e rapazes, e com o estampido de continuados tiros, parecia ser aquele espectáculo uma representação do dia do Juízo. 
Com o vinho das adegas e armazéns que eles arrombaram, cresceu a confusão e cresceu a fúria, passando quase todos a encherem-se de vinho e a caírem bêbados; e então praticaram outros excessos, como aquele de conduzirem nua uma mulher pelas ruas, ou como aqueloutro de se divertirem praticando tiranias com corpos mortos.
Contra os Eclesiásticos e Sacerdotes mostraram desde a sua entrada um refinado ódio. E tanto que, entre clérigos e frades, mataram trinta e oito, matando igualmente o Excelentíssimo Bispo do Maranhão, que, por suas letras e virtudes, era geralmente respeitado de todos. E daqueles clérigos, alguns foram publicamente espingardeados, como aconteceu a quatro ao chafariz dos Leões, pelo único delito de serem Eclesiásticos.
As freiras não foram mais respeitadas, vendo-se as suas clausuras rotas, sem portas e sem resguardo, por tal modo que algumas tiveram de fugir, estimando em menos serem roubadas que em terem de sucumbir a maiores violências.
É notável que em S. Mamede, entrando um francês a cavalo com a espada nua pela Igreja até ao altar-mor, gritando e ameaçando as mulheres que ali se achavam; depois no adro, quando tornou a sair, escorregou o cavalo de tal maneira, que lhe caiu em cima da perna direita, que imediatamente foi atravessada pelo bico da sua própria espada. E em consequência, como acudissem os franceses que por ali passavam, levantaram o cavalo com grande custo, e tirando a bota ao caído cheia de sangue, observaram que ele tinha rota uma veia artéria, que pretenderam vedar com água salgada. E vendo frustradas essas diligências e que o sangue continuadamente corria da ferida, levaram o francês para o Hospital, em que brevemente acabou esgotado.
E muito mais notável foi que, entre tantos franceses malvados, se achasse um que nos seus sentimentos parecia racional e católico; pois que este, vendo na Igreja do Paraíso a derrota geral e o desacato feito ao Santíssimo, clamou com lágrimas, dizendo: ah desgraçados franceses! que as vossas prosperidades desde esta hora em diante serão todas perdidas, fazendo a guerra não menos aos homens que à Religião e às Igrejas! Aquele francês pareceu ser profeta.
Numa palavra, o célebre Loison, General em Chefe daquela tropa, no Sábado 30 de Junho, pelas onze horas, fez publicar uma ordem para ter fim o saque e a mortandade, declarando que ele, com sentimentos generosos, perdoava inteiramente aos habitantes daquela cidade. Mas essa ordem foi pelos soldados escarnecida, porque no Sábado e no Domingo saquearam e mataram com a mesma fúria.
Donde resulta que facilmente não pode achar-se tropa com menos submissão, com menos disciplina. E aquele General, no chamado perdão, obrou certamente com tão pouca honra, que, no Sábado de tarde, por um dos seus Ajudantes, com soldadesca, mandou matar cem homens, e cinquenta no Domingo; cujas execuções, por não aparecerem homens, deixaram de ser inteiramente cumpridas.
A mortandade na cidade foi de duzentos e trinta e dois dos seus habitantes; e no campo, a daqueles que ficaram dentro do cerco, passou de oitocentos. E se falarmos na destruição dos bens da fortuna, muitas casas na cidade ficaram probíssimas, por os franceses lhes roubarem o dinheiro e as peças preciosas, e por lhes deixarem as portas abertas, para os portugueses ladrões imediatamente lhes roubarem as mobílias de menos valia.
Passou o estrago aos papéis, clarezas e lembranças que cada um tinha na sua casa. E no campo, não duvidavam os franceses matar a um boi ou a uma vaca, unicamente para lhes comerem uma perna. 
Ultimamente, naqueles dias de horror, ao som dos tiros e de gemidos, arvoraram os franceses numa das torres da Sé a bandeira de três cores; e organizando em seu nome uma Junta com os poderes do governo, partiram para Estremoz com o saque, levando muitos gados e quase todas as bestas maiores e menores da cidade e do campo; deixando envolvidos na maior penúria inumeráveis órfãos e viúvas.

[...]

Aqui numa nota não parece fora de propósito dizermos que o Desembargador José Paulo, antes do combate, fugiu da cidade, dando motivos a lembrarem uns que fugiu por traidor e partidista dos franceses, e a dizerem outros que ele fugiu unicamente por cautela, receando algumas tristes consequências da guerra. O certo é que ele essa noite dormiu no monte da Cabida; e no dia seguinte, com alguns seus amigos, foi para Castela; e sendo apanhado na vila da Póvoa [de São Miguel], foi imediatamente conduzido a Moura, em que a populaça, com os que o prenderam, lhe tiraram a vida lentamente, com horrorosa tiranias, sendo impossível decidir-se se era partidista dos franceses, porque a sua casa foi saqueada como as outras, e porque ele dirigiu a sua fuga para Castela, inimiga da França, salvo se já receava em Portugal ser preso.

Memorando para o desembarque das tropas britânicas na baía do Mondego, por Arthur Wellesley (29 de Julho de 1808)




29 de Julho de 1808 


No caso de se determinar o desembarque na baía do Mondego, dar-se-á sinal ao Capitão Malcolm, no momento oportuno, para os navios que têm a bordo os cavalos e a artilharia entrarem rio adentro. 
Ordenar-se-á à infantaria para desembarcar nos ancoradouros e subir o rio em barcos a remos, e saltar para terra na sua margem a sul; primeiro a brigada do General Fane, excepto o batalhão de veteranos, que continuará a bordo; depois a do General Ferguson; e finalmente a do General Crauford. 
Entretanto, serão feitas as seguintes disposições: 
1.ª Fornecer-se-ão aos homens as malas e os cantis que agora estão nas dispensas dos regimentos. 
2.ª As chaleiras de campo de latão serão entregues aos regimentos pelas dispensas do Quartel-Mestre-General. 
3.ª O Comissário deve expedir, a cargo do Pagador-geral, a soma de 1.000 libras a cada Pagador de cada regimento, bem como a devida proporção para a artilharia, dragões e companhias do regimento n.º 95, quantias estas que receberá do Donegal. O Pagador-geral também expedirá um mês de salário para os oficiais do Estado-Maior. 
4.ª O General Hill informará ao oficial comandante do regimento n.º 20 de dragões ligeiros que este receberá um número suficiente de cavalos para montar todos os seus homens; que assim se preparará para desembarcar os homens que actualmente não têm cavalos. 
5.ª Será feita a seguinte disposição em relação à bagagem: para cada homem que desembarque, uma camisa e um par de sapatos, para além dos que têm calçados, um pente, uma navalha e uma escova, que serão guardados nos seus casacos grandes. As mochilas ficarão nos navios-transportes, tal como as bagagens dos oficiais, exceptuando aqueles artigos leves que lhes forem necessários. Serão encarregados das bagagens um sargento cuidadoso no navio-quartel-general de cada regimento, e um soldado-raso cuidadoso em cada um dos outros navios; e cada oficial que deixar qualquer bagagem num navio, deve ter o cuidado de pôr o seu nome em cada pacote, numerando-os, e entregando ao soldado encarregado da bagagem uma lista do que deixar, a fim de lhe ser devolvido o que peça. 
6.ª Os homens desembarcarão com pão para três dias e carne cozinhada para dois dias. 
7.ª O oficial comandante da artilharia desembarcará as três brigadas de artilharia, cada qual com metade da proporção normal de munição, o carro da frágua, etc. Ele também desembarcará 500.000 cartuchos para mosquetes para o uso das tropas, cujo transporte será providenciado. 
8.ª Cada soldado terá consigo três pederneiras boas. 
9.ª Para além do pão acima mencionado que será transportado pelos soldados, a bordo de cada um dos navios empacotar-se-á em sacas pão para três dias, contendo cem libras [cerca de 45 quilos] cada uma, para o número de soldados que deverá desembarcar. 
10.ª O Comissário Mr. Pipon ordenará a agregação de um comissário e do número necessário de secretários, etc., a cada brigada, à cavalaria e à artilharia. Posteriormente, receberá direcções para se encarregar do pão que acima se manda preparar, e para fazer os preparativos para aprovisionar as tropas. 
11.ª Desembarcar-se-á aveia para três dias para cada um dos cavalos. 
12.ª Os cavalos do comissariado irlandês entregar-se-ão, quando desembarcados, ao oficial comandante da artilharia, que repartirá os condutores encarregados deles; e então os oficiais e comandantes pertencentes ao comissariado irlandês se disporão sob as ordens de Mr. Pipon. 
13.ª Os oficiais comandantes das companhias farão as disposições necessárias para comprar mulas para carregar o equipamento de campo, para as quais terão recebido um adiantamento do dinheiro embarcado. 

Arthur Wellesley 

[Fonte: Lieut. Colonel Gurwood (org.), The Dispatches of Field Marshal the Duke of Wellington, K. G. during his various campaigns in India, Denmark, Portugal, Spain, the Low Countries, and France, from 1799 to 1818 – Volume Fourth, London, John Murray, 1835, pp. 37-38].

Comentário de Leite de Vasconcelos a um edital da Junta da comarca de Moncorvo datado de 29 de Julho de 1808



"Num edital impresso da Junta de segurança e administração pública da comarca de Moncorvo, de 29 de Julho de 1808, lê-se o seguinte: 

Qualquer habitante que … usar doestar alguma pessoa de qualquer estado e condição que seja com o detestável nome de Junot, ou outro semelhante, seja preso… (etc.).

À palavra Junot acrescentou-se esta nota: 

Termo adoptado nesta província (Trás-os-Montes) para injuriar qualquer pessoa de opiniões e costumes franceses. 

O povo vingava-se das prepotências do general francês, incluindo-lhe o nome no vocabulário dos doestos. Sobre assunto análogo vide Revista Lusitana, II, pp. 68 e ss. Tenho ideia de ter ouvido em criança, na Beira, empregar jinó também como palavra de escárnio; jinó está para Junot, como titor para tutor: as formas intermédias foram respectivamente *jenó e *tetor (dissimulação de u…o)". 

[Fonte: J. Leite de Vasconcelos, “Notícias filológicas”, in Revista Lusitana - Vol. IV, Lisboa, Antiga Casa Bertrand, 1896, pp. 272-278, p. 276].

Decreto da Junta do Porto sobre um empréstimo de dois milhões de cruzados (29 de Julho de 1808)