segunda-feira, 14 de março de 2011

As preocupantes comunicações de D. María Luísa em Aranjuez, segundo Godoy



Como atrás vimos, no início de Dezembro de 1807, D. María Luísa, filha dos Reis espanhóis, tinha sido convidada a abandonar o Reino da Etrúria, que regia em nome do seu filho primogénito, menor de idade. D. María Luísa, apanhada de surpresa (pois não tinha conhecimento dos acordos que Napoleão tinha feito com o seu pai), resignou-se com a intimação e regressou à Península Ibérica, onde supostamente lhe seria entregue o Reino da Lusitânia Setentrional (apesar do tratado de Fontainebleau somente prever, explicitamente, a sua entrega ao seu filho). 
Finalmente, no início de Março de 1808 (mais ou menos ao mesmo tempo que a Corte espanhola recebia as primeiras notícias do que se tinha passado em Roma), chegava a Aranjuez D. María Luísa com os seus dois filhos menores. Foi então que esta ex-monarca revelou as observações que tinha feito pelo caminho, bem como pormenores dum encontro que tinha tido em Milão com o Imperador (que como vimos tinha estado na Itália entre o final de Novembro e o final de Dezembro de 1807), logo nos primeiros dias da sua viagem. Godoy, nas suas memórias apologéticas, publicadas quase trinta anos depois destes acontecimentos e já depois de todos os intervenientes citados estarem mortos, assentou da seguinte maneira as revelações de D. María Luísa:



As novidades da infanta D. María Luísa não foram menos inquietantes [do que a chegada das notícias sobre o que se tinha passado em Roma], apesar de muito tardias, porque durante a sua marcha, julgando-se espiada por todas as partes, não se atreveu a escrever coisa alguma de política; e o seu caminho até Madrid foi demorado e lento, em parte devido à fragilidade da sua saúde, em parte também porque temia encontrar-se no meio dos desastres que pressentia que ocorriam na nossa Corte. Vinha assombrada pela recepção, ou melhor, pela apoteose que tinham feito os povos italianos a Bonaparte, e ainda mais assombrada pela resignação dos franceses à guerra eterna e à servidão imposta por aquele guerreiro mágico, atrás de um poder inalcançável. Ainda se admirava mais de que em nenhuma classe, fosse baixa, média ou alta, ouviu alguém que lhe desse, fosse na França ou na Itália, o nome de tirano. Uns - dizia-nos ela - mais que amá-lo, adoram-no como a um génio peregrino, que há de pôr a França à testa de todos os povos da Europa; e que há de renovar a face do mundo; os outros rendem-se por temor, mas com aquela espécie de temor reverencial com que se teme a Deus sem murmurar dos seus decretos e sem ousar pedir-lhe conta das suas obras. Não tem já quem lhe replique nem que possa replicar-lhe em todo o continente; os dois Imperadores [Napoleão e Alexandre] repartiram entre si o mundo, segundo se começa a contar; poderá ser de um e do outro o domínio da terra, mas o francês apressa-se em recolher a sua parte, antes que o outro tenha o restante e possa equilibrar-se. Esta ânsia devora-lhe, e para nossa desgraça teme que, rapidamente, a Espanha se torne um obstáculo aos seus planos ou um perigo. Eu não saberei dizer se o seu desígnio será acabar com a nossa casa e arrancar os ramos com o tronco derrubado; ou se a sua intenção será subjugar-nos e pôr-nos como os seus confederados da Alemanha, buscando ademais, como faz em todas as partes, quartéis e presídios para as suas tropas; ou se quererá debilitar-nos até ao ponto de não poder temer-nos perante evento algum, tirando-nos províncias e arredondando mais o seu Império. Tudo isto poderá ser, e se calhar ainda duvida a qual destes extremos lançará a sua mão; mas nem eu o duvido, nem ninguém na França, que tenta pelo menos erguer-se entre nós como mediador, debaixo do pretexto das dissensões da Corte, que mesmo que sejam pouca coisa ou nada, fazem-se correr na França por muito graves e nocivas ao Império, sob o título forçado de intrigas da Inglaterra. Tão grande é a importância que o Imperador lhes dá ou que finge que lhes dá, que chegou a dizer-me que seria prudente da minha parte deter-me em Piamonte, e esperar o desenlace completamente inesperado que poderiam ter os negócios da Espanha. Ignoro o que possa haver nela, centro da virtude e da lealdade em relação às demais nações da Europa que se deixaram subjugar por Bonaparte; mas direi que se há algo digno de se temer, é obra ou ficção sua, como em Roma, território que presentemente lhe deu menos motivos de suspeita, e onde vocifera que há um foco de traições contra a sua coroa, tudo obra da Inglaterra, que invadiu com a sua peste o consistório; quererá ter Roma como já tem a Toscânia [região onde se encontrava o Reino da Etrúria]; quererá também ter a Espanha...! Quem poderá calcular o que deseja ele com um milhão de homens, sem ter que empregá-los, a restante Europa acorrentada, e o seu programa sempre preparado para submeter a Inglaterra, não nos mares nem nas suas ilhas, mas sim no próprio continente! 
Contou depois a infanta, o melhor que pôde, a conversação emaranhada e quase incompreensível que teve com Bonaparte, quando se viram em Milão no dia 17 de Dezembro, conversação difícil de se contar pela inconstância das ideias e dos sentimentos e pela obscuridade e confusão dos termos com que a envolveu em dúvidas, em esperanças e em temores sobre as suas intenções e desígnios. A entrada - referia a infanta - não pode ser mais obsequiosa, nem com maiores considerações a uma Rainha que ele levou ao trono pela sua mão. Havia no seu rosto pelo menos alguma coisa verdadeira, uma certa espécie de embaraço no seu olhar que não conseguiu dissimular nas suas primeiras frases com quem fazia trocar o Arno pelo Minho. "Vejo Vossa Majestade" - disse-me - "com todo o afecto que originou em mim a finura e a lealdade da sua conduta com os meus povos da França e da Itália. Causa-me um grande pesar, asseguro-lhe francamente, esta deslocação necessária pelas circunstâncias da Europa e pela tenacidade da Inglaterra. O coração e a política não estão de acordo na maior parte das vezes. Não sei se em Portugal, tão perto dos seus pais, encontrará Vossa Majestade a compensação que desejei dar-lhe pelo sacrifício que sem dúvida lhe terá custado separar-se duns povos que a amavam. O meu desejo é também que não se queixe Vossa Majestade de mim; mais de uma vez terá notado, com a sua penetração, que de alguns anos a esta parte não sou livre no que faço. Procuro a paz universal, e esta necessidade, não só dos meus povos mas de todo o mundo, obriga-me a situar-me de tal modo que, por mais ouro que derrame a Inglaterra, não encontre futuramente não só quem se atreva, mas tampouco a quem lhe seja possível vender-se aos seus furores. Vendo as suas esperanças frustradas no norte, torna ao sul para prender-me nesta parte, enquanto pode preparar novos incêndios na outra. Vossa Majestade veja Roma: quem o poderia crer? Tornada agora mesmo e quase na minha presença num foco de intrigas e numa toca de raposas, onde sob a salvaguarda de país santo, universal e neutro, os inimigos da França têm franca entrada e saída, e estadia dissimulada. O Governo romano, cúmplice ou conivente, põe-me na necessidade ou de trazer-lhe à razão, ou de reassumir uma soberania saída noutro tempo da pura graça de um Imperador francês, e reversível a qualquer momento, se abusa dela em prejuízo do Império. Não queira Deus que me levem a pôr em tal extremo; mas se Roma não se ajusta ao seu dever, deixará de ser para sempre um gabinete de malsãos ou intrigantes. Veja pois Vossa Majestade se em tal situação não foi prudente da minha parte propor ao seu augusto pai a mudança que foi feita, e querer afastá-la de um país onde poderia ver-se fortemente comprometida pelos meus inimigos, ou a reinar apenas na teoria, pela necessidade que eu tinha de manter continuamente as minhas tropas no seu Reino [da Etrúria]. Não quer isto dizer - prosseguiu depois - que em Espanha e em Portugal, teatro de guerra desejado pelos ingleses para aumentar embaraços à França, não hajam perigos deste tipo. Desgraça será que quem soube superá-los tantas vezes, se deixe agora enredar neles... e maior desgraça ainda se se trocaram papéis, e se, como receio, a amizade ou inimizade com a França se tenha convertido numa questão de pessoas, não havendo mais questão a que atender senão a do bem ou mal do continente, única que eu apresento aos meus amigos e inimigos. Eu não vejo claro ainda, madame, nem quero aventurar o meu juízo, porque necessita-se ver as coisas da Espanha por perto para não se enganar; mas não me sobram dados para não poder duvidar que há um fermento estranho que poderá prejudicar em grande maneira a nossa paz, hoje mais que nunca necessária entre os dois Estados. Os ingleses tramam muito, e fazem-no mais de noite do que dia; não sabem fazer outra coisa... Desgraçados os que fiquem presos às suas teias! As dissensões que brotaram na vossa família real são obra sua, e até a própria ideia que houve de me atribuí-las é ideia completamente inglesa, verdadeira obra-prima das suas tramóias maquiavélicas, porque com ela conseguiram transtornar a justa confiança que o vosso augusto pai deveria ter tido mais do que nunca na minha amizade, depois do último tratado tão favorável e tão glorioso quanto poderia ter-lhe sido e quanto pode ainda ser-lhe... Não, madame, não é necessário que Vossa Majestade procure desculpá-lo, eu mesmo o desculpo, fizeram-lhe conceber que eu fomentava um partido contra si para lhe obrigar a dispor-se cegamente nas minhas mãos, e abusar do seu conflito em menoscabo seu e da Espanha... Ainda direi mais que isto (veja Vossa Majestade se sou ingénuo): manejaram-se as intrigas com tal arte, que receio que mesmo ao meu próprio embaixador tenham conseguido torná-lo envolvido nos sucessos que aconteceram e levantaram tanto pó; maior razão para que seja fácil esquecer-me das injúrias recebidas, injúrias que podeis crer que seriam suficientes para me desobrigar dos empenhos contraídos. Mas nem ainda por isto me esqueci nem saberei esquecer-me de dispor os meios para impedir que essa política malvada prevaleça, ou para que, se chegar a prevalecer, não me encontre ocioso ou desprovido. Se se produzir uma explosão, tenho forças e recursos de sobra para sufocá-la, porque em relação a precauções ninguém leva vantagem diante de mim, e quando chegar o caso sei muito bem fazer com que o que existe perca a sua existência, e que o que não existe apareça e o substitua. Se este quadro, por agora tão escuro, que oferece a vossa Corte, fizesse desmaiar Vossa Majestade, que vejo com a saúde tão fragilizada, convido-a da minha parte a parar no seu caminho, onde queira, em Turim, em Nice ou na França, onde escolha, até mesmo em Paris. Mas se prefere ir para Madrid, rogo-lhe que fale com o seu pai com franqueza e lhe diga que me alegro em ser ainda seu amigo e em pensar que ele seja meu; que a desconfiança é uma bola, e dando-se-lhe impulso, gira muito e vai muito longe; que se as circunstâncias em que estamos, devendo-se vedar à Inglaterra todos os caminhos que alterem o continente, pedirem sacríficios novos, talvez grandes, espero-lhe bem confiante, como poderá estar, de que compenso com o dobro os sacrifícios dos meus aliados; que afaste do seu lado todos quantos queiram afastá-lo daquela confiança que estou acostumado a que me honrem todos os aliados do Império; que estou tão longe de querer uma guerra com a Espanha, que, para evitá-la, talvez adoptarei medidas invulgares sem aguardar o seu acordo imediato; que jamais a Inglaterra poderá ser uma amiga verdadeira da Espanha enquanto esta seja senhora da América; que somente a Inglaterra pode desejar uma guerra da França com a Espanha, e que é somente aquele país que poderia dar ocasião, ou, para melhor dizer, pôr-lhe em perigo de perder o trono, porque tenho já determinado que a Inglaterra não reinará mais no continente da Europa, quer directa quer indirectamente". 
Para além destes termos, referiu também a Infanta que Napoleão misturou algumas frases enigmáticas, certamente mal postas na sua boca para o caso, sobre Carlos Magno, tão cuidadoso com a Espanha [sic], que para estar seguro e tranquilo acerca dela enquanto domava os saxões, não duvidou em aliar-se e em firmar pactos e acordos com o caudilho maometano sem ter um contradique nas próprias províncias da Espanha fronteiriças ao seu Império, sobre a qual insistiu sempre a sua política, sem se retrair com as dificuldades; como também que um Rei de Espanha daquele tempo, reconhecendo o interesse em que as duas nações se tornassem íntimas e que a Espanha fosse poderosa, chegou ao ponto de fazer a Carlos Magno a homenagem do seu Reino e de constituir-lhe como seu herdeiro. Quando soltava estas palavras, dizia a infanta D. María Luísa que o seu rosto iluminava-se com um resplendor escuro e amedrontador como a face dum louco; mas que depois moderava e adoçava a expressão, tomava outro caminho, e parecia esforçar-se em recolher, apagar ou corrigir o que tinha dito.
 
Em conclusão, dizia a Infanta: «Não me é fácil pintar o que vi naquele rosto, nem o que senti nas suas palavras, mas de tudo infiro que a Espanha corre um grande perigo, maior ou menor segundo as circunstâncias se mostrarem favoráveis à sua ambição, talvez ainda incerta, mas com a boca aberta a tudo quanto alcance aqui, ali e em todas as partes». 
 
[Fonte: Cuenta dada de su vida política por Don Manuel Godoy, Príncipe de la Paz - Tomo V, Madrid, Imprenta de I. Sancha, 1838, pp. 382-386-396].


A chegada da notícia da ocupação de Roma à Espanha



atrás deixámos indicado que, no início de Fevereiro de 1808, um corpo de tropas napoleónicas ocupou Roma. No início de Março, a Gazeta de Madrid assentava da seguinte maneira a primeira notícia "oficial" publicada na Espanha sobre esse acontecimento: 





No entanto, para além desta notícia, começavam a chegar ao mesmo tempo à Espanha outras informações mais pormenorizadas sobre o referido episódio. Godoy, que a este tempo já tinha convencido Carlos IV a dirigir-se com a sua Real família para Sevilha ou para Cádis, para em último caso embarcar para a América (viagem contudo contrária à vontade do Príncipe herdeiro, entre muitos outros), viu reforçados no caso de Roma os maus presságios que já pairavam sobre a Espanha: também ali as tropas francesas tinham ocupado as fortificações de um território que supostamente servia apenas de passagem.
Ainda segundo Godoy, a circulação desta informação foi no entanto manipulada e desmentida pelos partidários do Príncipe das Astúrias D. Fernando, que continuavam a confiar cegamente nas boas intenções de Napoleão, dominados como estavam, directa ou indirectamente, pelo embaixador da França junto da Corte, Beauharnais (que como vimos tinha sido, pelo menos aparentemente, um dos instigadores dos acontecimentos de El Escorial):


[...] Chegaram [...] por mar [...] as agourentas notícias dos insultos e violências que o Papa sofria em Roma, precursoras das que preparava Bonaparte entre nós próprios. Poucos ignorarão ou terão esquecido de que modo se apoderou de Roma o General Miollis a 2 de Fevereiro de 1808, que depois de pedir a simples passagem inofensiva pelos Estados Pontifícios para Nápoles, e acabado de prometer, através de Mr. Alquier, embaixador francês, que não fariam estadia nenhuma na cidade, entraram as suas tropas como donas, forçaram o castelo de Sant'Angelo, ocuparam todos os postos militares, e plantaram a artilharia com as bocas viradas para o Quirinal, mansão pacífica do venerável pai dos fiéis. [...] 
Ocultamente, procurei espalhar aquelas tristes notícias, certo que seriam um meio para preparar os ânimos antes de fazer à nação o manifesto que tentaria escrever enquanto o Rei se retirasse e estivesse a salvo das tropas imperiais. Os sedutores de Fernando não tardaram em conhecer as mesmas notícias por várias outras cartas que chegaram, e especialmente as do núncio, que, na verdade, não fez mistério das suas; mas estes homens, fascinados por Beauharnais, não desistiram dos seus planos nem temeram o engano. Acreditaram em Beauharnais, que desmentiu tais notícias, e (ó maldade!) poucos dias depois a nossa Gazeta publicou um artigo de Roma concebido nestes termos: «Roma, 8 de Fevereiro. Sua Santidade se dignou hoje a dar audiência aos oficiais do corpo do exército francês, apresentados por Mr. Alquier, embaixador da França. O Santo Padre recebeu-os com a maior bondade, e o General Miollis, comandante em chefe, cumprimentou-o em nome de todos. É de admirar a boa disposição, ordem e disciplina das tropas francesas e a harmonia que reina entre elas, as de Sua Santidade e os naturais». 
Desta maneira desfizeram os meus contrários aquele último recurso que me vinha às mãos para poder tornar credíveis os desígnios ambiciosos e inimigos que Bonaparte começava a realizar entre nós, pelos mesmos meios que usava em Roma. Quem ordenou a impressão daquele artigo? Se não houve conivência na Secretaria de Estado, em cuja atribuição e dependência estava a Gazeta, houve pelo menos surpresa. O director daquele periódico declarou sob juramento ter vindo o tal artigo com os demais que se enviavam por parte do Governo; a letra, no meio disto, não era de mão conhecida. Não era já Carlos IV quem mandava; era a embaixada francesa e a facção que mandava já à sua vontade. [...]


[Fonte: Cuenta dada de su vida política por Don Manuel Godoy, Príncipe de la Paz - Tomo V, Madrid, Imprenta de I. Sancha, 1838, pp. 382-386].