segunda-feira, 18 de abril de 2011

Carta do secretário do Bispo de Coimbra, D. Francisco de Lemos de Faria Pereira Coutinho, a remetente desconhecido (18 de Abril de 1808)




Bayona, 18 de Abril de 1808 


Na [carta] que escrevi a Vossa Mercê [na] quinta-feira [dia 14], lhe dei parte de ter chegado aqui o Imperador e o Rei no mesmo dia. Na sexta-feira, passou ele revista à tropa, e no Sábado deu audiência à Deputação portuguesa. Recebeu-a com o melhor agrado e benevolência, perguntando a cada um quem era, o seu cargo e ocupação. Disse que venerava e tinha em muito bom conceito a nação portuguesa, que nada tinha contra ela; nada contra o Príncipe, senão o deixar-se enganar pelos ingleses, e nada contra a Casa de Bragança. Mostrou-se disposto a fazer quanto se lhe requeresse. Perguntou se queriam que Portugal se unisse à Espanha; mas fez esta pergunta com algum sorriso, como quem esperava resposta negativa, como com efeito se lhe deu. É pois necessário – disse o Imperador e Rei – saber se vós sois capazes de ser uma nação ([por] vós entende-se Portugal), e nesse caso é necessário um Rei. A França não pode lá ter um Exército nem Portugal [pode] sustentá-lo. Governo de vice-rei não convém nem é bom Governo. Há de ser um Rei, mas um rei que tenha espírito francês e que preserve a nação do cativeiro inglês. Que mostrou não duvidar de que seja restituída a Casa de Bragança, mas como há de voltar – disse – essa família do Brasil? Só se os ingleses que a levaram a quiserem trazer. Enfim, concluiu: fazei as vossas respostas, digo, representações por escrito; eu quero ouvir a todos e estou pronto para ouvir cada um em particular. E ele mesmo, sem se lhe falar na contribuição dos 40 milhões, dizendo que já sabia ser excessiva, mas que a modificaria quanto fosse possível. 
Está pois a Deputação muito satisfeita e bem esperançada. Trabalha nas suas sessões, são nesta casa de S.ª Ex.ª, etc., etc. A mesma Deputação é aqui muito respeitada e faz grande figura. Vai hoje jantar toda ela com Champagny, Ministro dos Negócios Estrangeiros. 


[Fonte: João Francisco Marques, "O clero nortenho e as invasões francesas - patriotismo e resistência regional", in Revista de História, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, n.º 9, 1989, pp. 165-246, p. 235].


Memória sobre a evasão do Núncio Apostólico Lorenzo Caleppi, de Lisboa para o Rio de Janeiro, escrita pelo seu Secretário Camillo Luigi de Rossi, em 1811



Entre os acontecimentos extraordinários provocados pela Revolução Francesa, que há vinte anos assola o Universo, a evasão de Lisboa de Monsenhor Caleppi, Arcebispo de Nisibi e Núncio Apostólico em Portugal, realizada no mês de Abril de 1808, quando aquele Reino se achava invadido e oprimido pela tirania do Imperador Napoleão, - assim como mereceu os elogios e os aplausos dos contemporâneos, despertará em não menor grau a justa admiração da posteridade, e nos anais da Santa Sé será incluída entre os monumentos famosos do valor apostólico, graças ao qual durante essa terrível tempestade se viram assaz frequentemente repetidos os primeiros séculos da Igreja. Quanto importa, pois, conservar para a própria posteridade todas as circunstâncias que precederam, acompanharam essa evasão, e dela resultaram! De qual interesse para a glória da Santa Sé não será em todos os tempos uma relação pormenorizada da intrépida e constante firmeza de ânimo de um Núncio Apostólico, de cerca de setenta anos de idade, de transportar-se para a América a fim de cumprir com os seus sagrados deveres, dos obstáculos e incómodos sem número afrontados para alcançar esse fim, e das demonstrações de veneração e homenagem tributadas durante a sua longa viagem, mesmo por acatólicos, à sua representação e às suas virtudes pessoais!
Para fazer ressaltar o merecimento e a importância de semelhante determinação, nada poderia ser tão próprio como as contrariedades e os obstáculos que Monsenhor Núncio teve de enfrentar para realizá-la; de modo que a sua permanência forçada em Lisboa, por ocasião da partida da Família Real, em Novembro do ano anterior de 1807, serviu admiravelmente para tornar patente a firme vontade que ele tinha de acompanhá-la ao Brasil. Disso temos as seguintes provas: Esperançoso estava o Governo português de que os muitos sacrifícios por ele feitos, e que se propunha a fazer em favor da França, poderiam desviar a tempestade que ameaçava Portugal, e tanto mais estava disso convencido quanto na verdade não parecia conveniente nem mesmo aos interesses da França que ela ocupasse naquele tempo a Península. Bonaparte, porém, sempre firme na execução de seu plano infernal de destruir sem excepção todas as soberanias legitimamente constituídas, não cessava de fazer passar muitas tropas para a Espanha, a fim também de transportar uma parte dela para Portugal, sob pretexto de proteger a Península contra as agressões e a influência da Inglaterra; e tendo conseguido iludir o débil Carlos IV, Rei de Espanha, com o vergonhoso tratado de Fontainebleau contra Portugal, chegou depois a conseguir o derrubamento por ele decretado de ambos os tronos, de Portugal e de Espanha. De facto, a rápida marcha das tropas francesas no território português mostrou claramente, no dia 24 de Novembro do mesmo ano de 1807, a inexistência das esperanças alimentadas e a inutilidade da extraordinária medida tomada pelo Governo português, no dia 20 do mês de Outubro precedente, que fora o fechamento de seus portos aos ingleses, para satisfazer a França. E como o perigo iminente que se corria com a ocupação da capital, a declaração feita no mesmo dia 24 de Novembro, pelo Almirante inglês Sir Sidney Smith, do bloqueio dos portos de Portugal, não davam ensejo a ulteriores negociações, foi preciso sem perda de tempo decidir a partida da Família Real para o Brasil, para desse modo pô-la a salvo das ferozes garras da Águia devastadora e reatar os antigos laços com a Inglaterra.
Resolução tal, que constituirá uma das épocas mais interessantes da história dos nossos tempos, se bem assaz fecunda em acontecimentos extraordinários, não tardou em tornar-se pública, depois de haver sido aprovada nos Conselhos de Estado que se realizaram na noite de 24 para 25 de Novembro, com a presença de Sua Alteza Real o Príncipe Regente. Justamente nesses dias, Monsenhor Núncio estava doente, mas a importância da notícia e a ponderação do seu dever não o fizeram hesitar na consideração de seus incómodos, e pois, cheio de coragem, apresentou-se no dia 26 de Novembro ao óptimo Príncipe, com razão acabrunhado naquele momento por tantos assuntos tão caros ao seu coração, tão religioso quanto paternal. As primeiras palavras que saíram de sua augusta boca foram: "E o Núncio me acompanhará?". E [a] essas simples palavras, que encerravam o mais puro sentimento de religião e de bondade, respondeu o Monsenhor Núncio não com frases estudadas para afastar ou para encarecer o sacrifício, mas sim com outras tantas expressões tranquilizadoras, pois que justamente era esse o seu propósito. O contentamento e a gratidão que o Príncipe se dignou de demonstrar, desejoso, como o disse, de experimentar a consolação de ter perto de si o Representante Pontifício, não puderam deixar de comover muito o ânimo de Monsenhor Núncio; e pois, com a maior presteza, perguntou ao bom Príncipe com qual dos seus Ministros devia tratar do seu embarque; e tendo recebido em resposta que se entendesse com o Visconde de Anadia, Ministro e Secretário de Estado da Marinha e Ultramar, pediu ele mesmo licença para retirar-se da real presença, para não privar, dizia, Sua Alteza Real, que pusesse a salvo o ouro, a prataria e as jóias da Igreja Patriarcal de Lisboa e de outras igrejas e capelas reais, para as não deixar expostas às habituais depredações dos franceses, dizendo-lhe que nisso interpretava o pensamento do Santo Padre, na persuasão de que Sua Alteza Real as restituiria, como disse [que] queria fazer, à Igreja; e assim Monsenhor Núncio, salvaguardando os direitos da Santa Sé e zelando pelos interesses da Igreja, praticou também coisa grata a Sua Alteza Real, que lhe ficou como tal reconhecido.
A urgência do momento, assim como o zelo de Monsenhor Núncio, não permitia dilação: deixando o Palácio Real [de Mafra], dirigiu-se à casa do Ministro e Secretário de Estado acima mencionado, e não o tendo encontrado, escreveu-lhe imediatamente um bilhete pedindo-lhe que o avisasse ao seu regresso para que pudesse ir novamente à sua casa para falar com ele. Mas esse Ministro, que já havia recebido para isso ordens directas do Príncipe Regente, foi ele próprio à casa de Monsenhor Núncio, e depois de lhe ter feito ver as grandes dificuldades do embarque naquele momento de desordem, assegurou-lhe apesar disso [que] tomaria sobre si arranjar-lhe um navio, que lhe parecesse dos menos abarrotados. De facto, pouco depois, por volta da meia-noite, entregou-lhe a ordem régia dirigida aos comandantes de dois navios, a Medusa e o Martim de Freitas, para que o recebessem a bordo de um ou de outro, com as pessoas do seu séquito; em vista disso, na manhã do dia seguinte, 27 do mês [de Novembro], o primeiro cuidado de Monsenhor Núncio foi enviar pessoa activa e de sua confiança a entender-se com os dois comandantes para aquele fim. Não obstante, porém, a supra mencionada ordem régia, não obstante ter-lhes Monsenhor Núncio assegurado que levaria consigo somente dois ou três criados, e que já tinha prontos abundantes mantimentos destinados também a outras pessoas; não obstante, por fim, as urgentes instâncias que repetidas vezes lhe fez, nada se pôde obter, pois deram como resposta definitiva que os dois navios estavam já tão cheios de damas, senhores e outras pessoas ao serviço da Corte, que não havia lugar senão para maior número de marinheiros necessários para a navegação. Vendo, portanto, Monsenhor Núncio que era inútil qualquer outra tentativa junto aos comandantes dos dois navios acima ditos, não deixou logo, na mesma tarde do dia 27, de dirigir-se de novo ao mesmo sr. Visconde de Anadia, que já se tinha embarcado, expondo-lhe tudo quanto havia sucedido com os dois comandantes mencionados, e a crítica situação em que se achava por causa disso. A resposta do sr. Visconde foi "que naquele terrível momento de confusão geral não sabia como remediar a isso"; Monsenhor Núncio, porém, não ainda satisfeito com todas as diligências que fizeram correr no dia 27, escreveu na manhã do dia seguinte, 28 (dia em que a falta de vento não havia deixado a esquadra portuguesa sair do porto), um bilhete enérgico a outra personalidade respeitável e amigo dele, que também se achava a bordo, junto com o dito Visconde de Anadia; bilhete em que amargamente se queixava da maneira por que era tratado naquela emergência; o que fez não só para não deixar de usar de qualquer tentativa de sua parte para seguir com a mesma esquadra portuguesa, mas também para que, em caso contrário, pudesse, pelo menos, declarar ao Príncipe Regente que a demora em acompanhá-lo não teria sido por certo proveniente de culpa ou negligência sua. Este bilhete foi também lido pelo mesmo Visconde de Anadia, que tornou a dizer "que não sabia o que fazer naquela difícil situação, e que Monsenhor Núncio tinha por sua vez correspondido do modo mais eficaz às diligências régias".
Depois de todos esses incessantes passos, podia o mesmo Monsenhor Núncio julgar-se isento de qualquer omissão, e tranquilizar-se da impossibilidade de acompanhar imediatamente o Príncipe Regente. De facto, foram tais a desordem e a confusão naqueles poucos dias, que nem Monsenhor Bispo do Rio de Janeiro, apesar de obrigado pelos deveres do seu ministério, e munido a bordo da esquadra portuguesa, nem mesmo ele pôde conseguir alojamento nela, e foi forçado a permanecer em Lisboa [este Bispo fugirá no dia 4 de Março de 1808], assim como foi obrigado a voltar à terra, depois de embarcar, D. Pedro de Sousa Holstein, se bem [que] fosse capitão da Guarda Real, chegando a acontecer o mesmo com várias caixas de prata e ricas alfaias sagradas, já prontas e com os coches da Corte, já acondicionados, além de quantidade considerável de outras coisas preciosas não encaixotadas ainda, que ficaram esquecidas e abandonadas em terra, em vez de serem embarcadas. Entretanto, apesar de tudo isso, Monsenhor Núncio não se deu por satisfeito com as diligências que empregara; e deposse da mesma nova resposta do Visconde de Anadia, que recebeu cerca de três horas depois do meio-dia, vendo-se completamente impossibilitado de poder embarcar na esquadra real, decidiu arranjar, caso fosse possível, um embarque em qualquer navio mercante; e de facto, tendo-se posto de acordo com Monsenhor Bispo da Madeira, D. Luís Rodrigues Vilares, seu íntimo amigo, que tinha fretado um navio para voltar à sua Diocese, combinaram embarcar juntos, e teriam logo conseguido partir no mesmo dia em que se seguiu ao da partida da esquadra portuguesa, se o capitão desta embarcação, amedrontado porventura pelos rumores espalhados entre o povo, de que as fortalezas que protegem o porto de Lisboa não permitiriam a saída de navio algum, ou por qualquer outra razão, tivesse resolvido não aparecer mais nesse dia; resultando daí ficarem na praia as mesmas caixas e os mesmos objectos que deveriam ter sido levados para bordo. Monsenhor Núncio teve, portanto de resignar-se à vontade divina, e preparar-se a enfrentar as penosas agruras que previa [que] haveria de sofrer durante [a] sua forçada permanência em Lisboa, provenientes da mudança das circunstâncias, que infelizmente se temiam, em consequência da iminente entrada das tropas francesas.
De facto, mesmo antes da entrada do exército francês em Lisboa, começaram a verificar-se os desgostos e a luta que estavam preparados para Monsenhor Núncio, nas mesmas circunstâncias. Já havia sido afixado no dia 27 do mês de Novembro a proclamação régia (n.º I), com a qual Sua Alteza Real o Príncipe Regente manifestou a seus súbditos a resolução que havia tomado de transportar-se para o Brasil com Sua Majestade a Rainha Fidelíssima e a Família Real até à paz geral, deixando, entrentanto, uma regência em Lisboa, com ordem de receber as tropas francesas com todas as atenções devidas a tropas de nação amiga, e já no dia 27, Sua Alteza Real, com a Família Real, tinha embarcado cerca do meio-dia, à vista de grande multidão do seu povo; mas a completa falta de vento não permitiu de modo algum a esquadra portuguesa sair do Tejo durante todo o correr do dia seguinte, 28 de Novembro, quando já o General Junot, com o seu quartel-general, se achava em Abrantes, lugar que dista da capital somente vinte e duas léguas. Nesse mesmo dia Monsenhor Núncio, como dissemos acima, havia perdido qualquer esperança de poder ainda embarcar a bordo da esquadra portuguesa, e só lhe restava a de poder todavia sair de Lisboa a bordo do navio fretado por Monsenhor Bispo da Madeira. Cheio, pois, de desgostos e de cuidados, no momento em que voltava à sua casa, mais ou menos às dez horas da noite, achou aí um bilhete de Mr. Hermann (ex-cônsul francês em Lisboa, que depois foi nomeado pelo Imperador Napoleão Ministro e Secretário dos Negócios Interiores [e das Finanças] de Portugal), que lhe anunciava a sua chegada secreta àquela capital, e se mostrava aflito por haver sabido que a Real Família já se tinha embarcado, motivo por que, dizia ele, não podendo fazer o bem que se tinha proposto, pedia que lhe fosse permitido ter uma entrevista com o mesmo Monsenhor Núncio na casa de um particular, onde estava hospedado. Monsenhor Núncio percebeu imediatamente a importância do convite que podia ter por objecto nada menos do que procurar o meio de fazer com que o Príncipe Regente suspendesse [a] sua partida até à chegada já iminente do General Junot.
Não perdeu, pois, um momento para realizar essa entrevista, para assim descobrir as tramas francesas, e, portanto, contribuir do modo que lhe fosse possível para a segurança da Família Real. E como a intenção do mesmo Hermann era justamente ir a bordo da nave real falar com o Príncipe Regente, mostrando-se porém, ao mesmo tempo, temeroso do povo na execução desse seu projecto. Monsenhor nùncio, para demovê-lo desse propósito, ou para ao menos lhe dificultar quanto lhe era possível, decidiu confirmá-lo na ideia desse mesmo temor, e o aconselhou a preferentemente dirigir-se ao Intendente Geral da Polícia [Lucas de Seabra da Silva], apesar deste último já estar deitado na cama; e de facto pouco demorou mr. Hermann em ir à casa deste, mas nada obteve, tendo-lhe respondido o dito Ministro que não tinha autorização para permitir a pessoa alguma ir a bordo da nau em que se achava o Príncipe Regente. A divina providência, havendo-se dignado de permitir na manhã seguinte do dia 29 de Novembro a saída feliz da esquadra portuguesa, não pôde mr. Hermann tentar outros meios para realizar sua intenção. Como continuasse a ter medo do povo, pediu a Monsenhor Núncio [que] o hospedasse em sua casa; mas como este já se tinha proposto firmemente o grande plano da delicadeza e da honra em todas as circunstâncias que se lhe apresentassem durante o tempo de sua permanência em Lisboa, respondeu-lhe francamente que no caso em que o povo suportasse mal nessa ocasião [a] sua presença ali, não podia o Núncio Apotólico hospedá-lo em sua casa sem desagradar ao mesmo povo e faltar às considerações que ele devia indispensavelmente conservar para com Sua Alteza Real o Príncipe Regente. Essa resposta não comportava réplica, nem mr. Hermann se mostrou com ela pesaroso.
A Família Real, tendo-se, pois, admiravelmente posta a salvo, no terceiro dias depois entrou em Lisboa, à frente do exército francês, o General Junot, que havia sido dois antes embaixador da França junto ao Príncipe Regente, o qual, antes de partir de Lisboa, tendo-lhe Monsenhor Núncio feito a gentileza de oferecer-lhe um banquete diplomático, tivera a temeridade de dizer em casa dele, na presença de várias pessoas, ao sr. Cavaleiro de Araújo, Ministro e Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e Guerra de Sua Alteza Real, demonstrando-se com este de mau humor por causa de certo negócio, "que passaria denro de um ano pela mesma rua, à frente de sessenta mil homens". Ao passar, pois, à sua entrada defronte da casa de moradia de Monsenhor Núncio, teve para com ele a gentileza de perguntar por notícias suas ao mordomo que se achava à porta, e na visita que lhe fez na noite do mesmo dia deu-lhe as maiores demonstrações de respeito, de estima e de amizade que costumava antigamente dar-lhe, não deixando ao mesmo tempo de recordar-lhe a ameaça acima referida, que proferira em sua casa ao Governo português antes de partir.
Não era indiferente para os franceses a presença de Monsenhor Núncio em Lisboa, não só por motivo do seu cargo, mas ainda porque bem sabiam que era ali estimado, e portanto muito lhes interessava procurar conquistá-lo, se tivesse isso sido possível, com gentilezas e atenções. Monsenhor Núncio, porém, com a maior franqueza, declarou ao General Junot que, por singular acaso, não havia podido acompanhar a Real Corte, mas que devia e queria partir na primeira ocasião que se apresentasse, para o que lhe pediria os necessários passaportes; fez-lhe além disso compreender que sua presença em Lisboa já não podia ser-lhe grata, chegando mesmo a dizer-lhe que, embora em outros tempos tivesse procurado ter para com ele todas as atenções, quando era então embaixador junto a Sua Alteza Real, não podia, entretanto, dar-lhe em sua casa nem mesmo um copo de água, pois devia ter somente em vista não fazer coisa alguma que pudesse de qualquer modo ser mal interpretado e desagradar ao Príncipe Regente de Portugal. Talvez, por motivo de declaração tão franca, o General Junot, se bem [que] retribuísse a visita do Ex.mo Patriarca, nunca foi visitar Monsenhor Núncio no espaço de quatro meses e meio, durante os quais se viu este obrigado a permanecer em Lisboa.
Seria aqui lugar oportuno para descrever quais e quantas aflições Monsenhor Núncio sofreu nesse tempo, quanto bem e quanta minoração de males ali conseguiu, e quais incessantes diligências empregou a fim de obter os passaportes para seguir viagem ao Brasil. Creio, entretanto, não poder dar melhor ideia de tudo isso senão anexando (n.º II) a estes papéis a carta que Monsenhor Núncio, em data de 15 de Fevereiro de 1809, escreveu do Rio de Janeiro ao mesmo General Junot, carta que mereceu geral aplauso, e que o Príncipe Regente quis que fosse impressa em sua Impressão Régia. Esta carta tinha por objecto eximir-se Monsenhor Núncio das imputações que se lêm na ordem do General Junot nela mencionada e dirigida, depois da partida do Monsenhor Núncio de Lisboa, ao Abade D. Vicenzo Macchi, auditor geral da Nunciatura, dando-lhe o prazo de vinte e quatro horas para deixar a capital e de quatro dias para sair do Reino. Omitindo eu, pois, de conseguir aqui o histórico desses quatro meses e meio, entrarei em pormenores dos preparativos e das disposições que Monsenhor Núncio tomou para efectuar, mesmo sem os passaportes franceses, a sua viagem ao Brasil, e de tudo o que se passou ao empreendê-la, em continuá-la e em levá-la a cabo até ao Rio de Janeiro, pois tendo-se já demonstrado a sua firme vontade de acompanhar a Corte Real ao Brasil, resta agora ver-se como conseguiu pô-la em prática, quanto isso lhe custou, e o acolhimento que lhe foi dispensado na sua passagem forçada pela Inglaterra e pela Madeira.
Da carta acima dita resulta que, sendo completamente inúteis as tentativas de Monsenhor Núncio para obter do General Junot os passaportes para o Brasil, teve-se finalmente, como resposta, que o Imperador Napoleão o havia autorizado a dá-los somente para voltar a Roma, por via de Espanha, não podendo a França, dizia, proporcionar a "um embaixador meios para transportar-se a um país, com o qual a mesma França se achava em guerra". Vendo ele a inutilidade de qualquer ulterior tentativa, pediu os passaportes para Espanha, não ocultando, porém, a pessoa alguma, nem mesmo ao próprio General Junot, a sua imutável determinação de conseguir depois em qualquer porto embarcar-se. Mas era evidente a grande dificuldade que se lhe deparava na execução desse projecto, pois a Espanha estava ocupada pelas tropas francesas, e todos os passos de Monsenhor Núncio deviam ser conhecidos dos comandantes franceses; a isso se juntava a justa apreensão sobre o intuito que poderia ter o General Junot ao fazer-lhe o oferecimento (que ele não aceitou) de uma escolta de soldados na sua viagem até Espanha, com motivo, dizia ele, da pouca segurança das estradas, em consequência dos distúrbios que ali se tinham dado.
Compenetrado, portanto, Monsenhor Núncio, da consideração de tão graves temores, viu que era indispensável achar um meio extraordinário, embora dificílimo tanto a ter bom êxito, quanto a conservar oculto. Confiou, pois, o segredo dele a um tal sr. Francisco Lorenzano, italiano que se achava em Lisboa, após haver servido muitos anos em Espanha, jovem corajoso e de confiança; e fornecendo-lhe os meios necessários, mandou-o primeiramente explorar a margem do Tejo, e achando-a inadequada ao intento, transportou-se para a estrada que conduz à Espanha, onde viu que o lugar chamado Agramonte [sic], que está na fronteira, era muito conveniente para que Monsenhor Núncio pudesse viajar no Rio Guadiana e descer dali até ao mar, a fim de conseguir um navio apropriado. Dispôs ele em consequência tudo quanto era necessário para isso, e chegou mesmo a contratar habilidosamente uma falua, enquanto nesse intervalo Monsenhor Núncio, despedindo-se de todos os seus amigos, já havia feito partir para Aldeia Galega [=actual Montijo] (localidade situada na outra banda do Tejo, de onde se passa à Espanha) o seu coche de viagem, com os muares e a criadagem, de tal modo que todos aguardavam vê-lo em qualquer dia partir do Hospício dos Capuchinhos Italianos, onde depois da mudança do Governo se havia retirado. Já estava prestes a tentar esse meio, quando a divina Providência lhe proporcionou outro, descrito na mesma carta, o qual, embora sob certo aspecto pudesse ser considerado perigoso, como era o de sair fora da barra de Lisboa sem que fosse descoberto pelos franceses, era, entretanto, sob outro ponto de vista, o mais rápido, o mais simples e o mais consentâneo com as circunstâncias, de modo a não comprometer o Santo Padre ante os franceses. Havendo, pois, combinado o contrato com o negociante, que havia obtido à força de muito dinheiro licença para poder sair do Tejo a bordo de uma navio português (chamado primeiro Nelson e depois Estrela do Norte), era preciso encontrar outra pessoa de confiança, que, arriscando-se a perder seus haveres e talvez também a vida, estivesse em condições de fornecer a Monsenhor Núncio meio pelo qual, efectuada a partida desse navio Estrela do Norte, pudesse atravessar às escondidas cerca de duas léguas do Tejo e alcançar fora da barra essa embarcação portuguesa. Foi encontrado esse homem, por certo raro, e tanto mais digno de maiores encómios quanto era pessoa rica e de grande relevo, o qual, havendo-se Monsenhor Núncio a ele confiado por completo, forneceu ao mesmo tempo o muito dinheiro que era necessário para assegurar o êxito da empresa. É, pois, mais fácil imaginar do que descrever as cautelas com que tinham de comunicar entre si o que ocorria para para tudo combinar, e com que foi preciso embarcar nesse mencionado navio algumas caixas e baús mais indispensáveis, ao mesmo tempo que devíamos partir sem mala alguma para afugentar qualquer suspeita. Enquanto isso, as palavras do General Junot, quando foi despedir-se dele, que dissera que uma pessoa, que acreditava [que] fosse seu amigo], lhe tinha afirmado que Monsenhor Núncio ia embarcar na esquadra inglesa que bloqueava o Tejo, não podiam deixar de mantê-lo no maior temor de ser vigiado pela polícia, e de que com a demora alcançassem descobrir o seu plano, apesar dele não se dirigir para a esquadra inglesa, e de ter por conseguinte de perder para sempre a esperança de transportar-se ao Brasil, o que constituía o objecto dos seus desejos, pois era o escopo da sua missão. Em consequência disso, o seu espírito, tornado inquieto, não permitia ao seu corpo nem mesmo o repouso da noite, em que, da janela de onde se descortinava o Tejo, andava procurando o navio mencionado, e na agitação em que estava, afigurava-se-lhe muitas vezes já ter partido, com o que se lhe redobravam as angústias.
Finalmente, no dia de Páscoa, 17 de Abril, zarpou do Tejo esse navio Estrela da Noite, que devia esperar durante três dias fora da barra por Monsenhor Núncio, pelo Secretário que escreve e que estava a par da empresa, e por dois criados que a ignoravam, acreditanto estes, como aliás o público, que íamos para Espanha. Eis que chega a noite do segundo dia de Páscoa (18 do [mesmo] mês), que devia decidir o êxito de tantos cuidados, de tantas despesas, e de uma tentativa tão generosa e intrépida. Eram já 9 e meia da noite, e ainda não havia aparecido o indivíduo acima mencionado, que se tinha incumbido da execução dessa tentativa, e se havia oferecido a acompanhar pessoalmente Monsenhor Núncio ao lugar determinado para o embarque. Qual tormento não dava essa temida demora a Monsenhor Núncio, já pronto havia muito, e disfarçado, sem insígnia alguma episcopal ou eucarística! Toda a importância do acto e as consequências do êxito feliz ou contrário, se apresentavam com cores ainda mais vivas ao seu espírito, e o possível perigo de ser traído, ou o pensar que era já esse o segundo dia dos três fixados para a demora do navio fora da barra, aumentavam muito as angústias daqueles momentos. Eis quando, pelas 9 horas e meia, como dissemos, se ouve bater à portaria, onde para maior cautela, sob outro pretexto, estava fazendo as vezes de porteiro um religioso virtuosíssimo, que era o confessor de Monsenhor Núncio, e se apresenta o fiel cabeça da empresa, que sem perder tempo nos disse que estavam prontas três carruagens a alguma distância do Hospício, carruagens que nos transportariam a um lugar distante dali mais ou menos quatro milhas, chamado Pedrouços, bastante próximo da praia; que ele próprio iria adiante de nós na primeira carruagem, que na segunda com intervalo de quatro ou cinco minutos o seguiria Monsenhor Núncio, acompanhado por um fâmulo, e na terceira, com o mesmo tempo de intervalo, o Secretário que escreve estas linhas com o outro criado; que, chegando-se ao lugar indicado e precisamente à vila (chamada Quinta) de Sua Alteza Real a Princesa viúva do Brasil, deviam os remadores descer da carruagem e mandá-la embora, e que continuando a pé devíamos reconhecer-nos uns aos outros na escuridão da noite com a senha de São Francisco e Santo António, sem demora, pois, depois a abraçar ao mesmo Confessor e a um criado antigo e fiel que devia ficar, Monsenhor Núncio, cheio de coragem e de confiança na assistência divina, dirigiu-se a pé do Hospício ao lugar onde estava a carrugem, e nela transportou-se, como ficara combinado, ao lugar de Pedrouços, onde se encontrou com o chefe do empreendimento, que se achava com o Secretário que iso escreve. Mas este, entrando para a carruagem com o intervalo prescrito de poucos minutos, viu logo que os cavalos dela estavam tão cansados, que só poderiam alcançar com muito esforço e demora o lugar combinado. Não havia, porém, outra alternativa a tomar, sem corrermos o risco de sermos descobertos, e, portanto, o pensar que tanta demora não só atormentaria o espírito de Monsenhor Núncio, mas também poderia fazer com que o descobrissem na estrada pública onde devia achar-se, colocou o mesmo Secretário na mais terrível angústia; e chegando por fim a um trecho já menos frequentado e arenoso, onde caíram os cavalos, resolveu arriscar percorrer a pé o resto do caminho, embora fosse bastante extenso, e assim pôde por fim encontrar-se com Monsenhor Núncio, a quem achou cheio de aflição por esse grande atraso de cerca de meia hora, e que estava, graças à Misericórdia divina, salvo da vigilância dos frnaceses, alguns dos quais chegaram a passar diante dele, pois um seu quartel achava-se não longe dali. Reunidos, pois, todos, o chefe da empresa bateu com um pau numa pedra da estrada, e a este sinal abre-se uma janela e sai de um casebre um indivíduo que nos levou a um caminho arenoso que ia ter à praia. Ali, a outro sinal do mesmo indivíduo, saem do meio da areia, onde estavam escondidos, cinco ou seis marinheiros, os quais, tendo Monsenhor Núncio apenas tempo de abraçar o fiel chefe e assegurar-lhe que jamais se esqueceria dessa prova de verdadeira amizade, nos tomaram nos braços e nos jogaram dentro de uma pequena embarcação de carga (a que em português se dá o nome de fragatinha), a qual logo se pôs em movimento com os remos de seis ou oito marinheiros, sem vela alguma, para assim tornar-se menos visível. Bem pouca era a distância de terra, quando notámos que a embarcação metia muita água, motivo por que foi necessário distribuir mais convenientemente o peso das pessoas que estavam na embarcação, e encarregar um dos marinheiros de esgotar continuamente a água, mas mesmo essa operação necessária era preciso fazê-la com o maior silêncio e com a maior atenção, e o mesmo remar devia ser efectuado com a maior cautela, para que o ruído e a refração fosfórica, que muito se verifica no Tejo, não nos fizessem descobrir ao passarmos a uma distância qualquer (procurávamos sempre [que] fosse a maior possível) dos navios ancorados no próprio Tejo e das canhoneiras expressamente escaladas pelos franceses para vigiar os que tratavam de emigrar, assim como das duas fortalezas chamadas São Julião e Bugio, que protegem a entrada da barra, e entre as quais devíamos necessariamente passar. Enfim, era-nos preciso refrear até a violência dos vómitos do enjoo a que logo se viram sujeitos o Secretário que estas linhas escreve e um dos criados. Em meio de tantos perigos, se nos depara também o receio de uma traição, pois quem isto narra descobriu por acaso que alguém se achava escondido dentro da própria embarcação; mas esse temor cessou dentro de pouco tempo, pois os marinheiros confessaram que tinham tomado a liberdade de esconder no fundo dela dois jovens, que também deixavam Lisboa, e, portanto, Monsenhor Núncio os fez sair da incomóda situação em que estavam, e os admitiu em sua companhia.
Finalmente, prouve ao Altíssimo permitir a nossa saída fora da barra, sem perigos, e que não tivessemos mais a temer os tiros das fortalezas, mesmo que nos tivessem descoberto; mas, à medida que a embarcação se adiantava no grande Oceano, crescia o perigo do mar pela maior agitação em que se punham as ondas, e pelas deploráveis condições da mesma embarcação, cheia, como se disse, da água que metia. Entretanto, nem de longe se avistava qualquer navio que nos pudesse dar a esperança de que fosse o Estrela do Norte, e já eram maios ou menos duas horas da madrugada, quando os marinheiros nos disseram que podíamos correr [o] risco de perdermo-nos, se continuássemos à procura desse navio, e que era necessário que nos dirigíssemos por essa noite à fragata inglesa, que eles sabiam [que] estava bloqueando o porto de Lisboa. Foi-nos, portanto, preciso que nos curvássemos diante dessa contingência, e depois de outro longo navegar chegámos cerca das três horas, com mar já bastante cavado, à fragata inglesa Ninfa, onde fomos logo recebidos, e pouco faltou para que o Secretário que estas linhas escreve, no saltar para bordo da fragata, não caísse ao mar. O capitão da mesma fragata, mr. Shipley, levantou-se para cumprimentar a Monsenhor Núncio, e ofereceu-lhe todas as atenções possíveis; mas ele, voltando-lhe ao ânimo a tranquilidade ao ver bem sucedida a sua empresa, que até então tinha sido [o] único objecto de todo o seu pensamento, começou a sofrer graves perturbações de estômago, e um enjoo tão forte e de tanta duração, que chegou, como dissemos em seguida, a extenuá-lo a ponto de recearmos pela sua vida.
As mesmas considerações de delicadeza expressas no bilhete deixado por Monsenhor Núncio em Lisboa, para ser entregue ao General Junot no dia seguinte ao de sua partida, e que se lê entre os documentos insertos como anexos à carta impressa n.º II, para que os franceses não agravassem mais as aflições que infligiam ao Santo Padre, de se haver o seu Núncio embarcado na esquadra inglesa, - essas considerações, disse eu, não só incitaram Monsenhor Núncio a transferir-se logo na manhã seguinte, 19 de Abril, para bordo acima mencionado navio português, até onde o acompanhava com as maiores atenções o já mencionado Capitão inglês, mr. Shipley, mas ainda o decidiram a não partir, quando esse navio Estrela do Norte foi obrigado, para ser revistado, a aproximar-se da esquadra inglesa, que se achava no cabo [da] Roca, não longe do Tejo, e que se compunha de nove navios, três fragatas e alguns cúters, e estava sob o comando do Almirante Sir Charles Cotton. Nessa ocasião, e em vista desse facto, Monsenhor Núncio decidiu enviar o Secretário que esta narração escreve, e cumprimentar a bordo do navio Hibernia o mesmo Almirante, e manifestar-lhe mesmo por escrito os ditos motivos de delicadeza que o privaram do prazer de visitá-lo pessoalmente, correspondendo a isso o Almirante com mandar logo o seu secretário cumprimentar Monsenhor Núncio, e pedir-lhe como favor que passasse para bordo da sua esquadra. Mas, não tendo ele, pelos motivos expostos, aceite esse convite, o mesmo Almirante fez-lhe a gentileza de informar de que no dia 24 de Abril devia partir uma fragata, chamada Mediador, que poderia escoltar o navio Estrela do Norte, e par aisso deu as ordens necessárias ao seu Capitão, M. Blamey, não só para comboiá-lo, como para prestar-lhe todos os auxílios de que precisasse.
Teve, pois, assim, início a viagem na tarde de 22 desse mês, e na manhã do dia seguinte começou logo o emprego de sinais propostos pelo Capitão da fragata inglesa para corresponder-se com o navio português, informando-nos primeiro, de que havia perigo, embora longíquo, e que, portanto, a toda a força de velas se aproximasse da fragata; feito isso, um oficial da fragata veio avisar-nos de que por um [avisos dum] brigue inglês havia indícios para suspeitar de que a frota francesa de Toulon se tivesse feito ao mar e atravessado o estreito de Gibraltar. Por cautela, tornando-se necessário que o navio português não saísse de perto da fragata, sobretudo à noite, resolveu amarrá-lo com um grosso cabo à fragata e trazê-lo assim a reboque.
Entretanto, Monsenhor Núncio, encerrado num pequeno aposento desse navio, este mesmo não grande, continuando a sofrer muito do estômago e de enjoo, aflito pelas contínuas discussões e pela grandíssima desordem que reinava no mesmo navio, sumamente incomodado pelo seu balanço sob a força e a constância do vento contrário, que soprava havia quatro dias, não podia deixar de se afligir também com essa notícia do perigo, que ele julgava dos maiores que pudesse enfrentar, de cair em mãos dos franceses. A tudo se acrescentava a pouca segurança em que os passageiros começavam a considerar-se, por motivo da muita água que metia o mesmo navio, e porque o barco dificilmente podia ser dirigido com a ordem e a actividade precisas, por causa de ser a metade da equipagem composta de suecos, hamburgueses e dinamarqueses, que não compreendiam as vozes de comando em português. Esse estado de apreensão tornou-se ainda muito maior, quando no dia seguinte, 24 do [mesmo] mês. se observou que o navio, por se ter porventura ressentido durante a noite em seguir a reboque de um navio muito maior, como era a fragata, e pela forte agitação do mar, chegava a meter 23 polegadas de águas por hora, devendo-se também levar em consideração a circunstância de haver por lastro no navio um grande carregamento de sal. Em meio de tanto temor, tendo o próprio capitão convocado todos os passageiros para expor-lhes as sérias condições em que julgava [que] estivesse o navio, e a necessidade, que ele admitia, de arribar ao porto que se oferecesse mais próximo, enquanto deliberávamos sobre se não fosse mais conveniente irmos até Gibraltar, que era o mais vizinho, e se se podia arriscar a prosseguir viagem até à Madeira, eis que um golpe de vento rompe a parte superior do mastro grande, e a fragata inglesa, aproximando-se para dar ajudar, abalroa o navio português e arrebata-lhe uma parte importante, chamada em português gurupés, de modo que esta segunda perda foi maior do que a primeira. Foi então que aumentou a nossa apreensão, e tendo vindo para bordo do navio vários oficiais da fragata inglesa, o capitão desta fez compreender a Monsenhor Núncio, por um bilhete, que não o julgava seguro naquela embarcação, convidando-o, em vista disso, a passar-se para bordo da fragata.
Compelido, pois, por esse apuro, levanta-se ele da cama, e não sem perigo, pela grande agitação do mar, atira-se para dentro de um pequeno bote, a fim de conseguir, embarcando na fragata, não somente a sua salvação, mas também a de diversas famílias portuguesas que estavam embarcadas no mesmo navio, e que recorreram à intervenção de Monsenhor Núncio para serem acolhidos a bordo da fragata. Molhado das ondas, conseguiu pôr-se a bordo da fragata, onde, tendo sido recebido com o maior respeito e cordialidade, começou logo a interceder em favor desses emigrados portugueses, e embora a mesma fragata Mediador tivesse já a bordo cerca de outros cem e não se achasse abastecida de abundantes mantimentos, o capitão, não obstante, atendeu com boa vontade às instâncias de Monsenhor Núncio e se propôs [a] buscar salvar também o navio português, não somente mandando para bordo dele os operários necessários para os consertos, mas ainda continuando a rebocá-lo até o porto de Plymouth, ao qual se diria a fragata. Essa condescendência do capitão inglês tranquilizou os infelizes portugueses, que se achavam a bordo do malfadado navio de carga. O Secretário que escreve estas linhas foi dos primeiros que se puseram a salvo, e alcançando a fragata, sabendo muito bem que por causa do grande balanço do navio, e na extenuação de forças em que estava pelos incómodos e temores sofridos, não teria podido, sem evidente perigo, agarrar-se às cordas da fragata para alcançar o primeiro degrau bastante alto da escada, pediu o auxílio de outra corda, com a qual, levantado por baixo dos braços, pôde sem risco apanhar essa escada e chegar com felicidade a bordo da fragata, onde foi também recebido com particular cordialidade. Se, entretanto, desse modo obtivemos a nossa salvação pessoal, aumentaram por outro os incómodos de Monsenhor Núncio, pois o aposento que lhe tinha em parte cedido o capitão inglês estava continuamente cheio de meninos e de outra gente que, abusando da sua bondade, ficavam sentados até sobre dois colchões que tinham sido colocados nesse aposento para Monsenhor Núncio e para este Secretário que escreve. E quanto à alimentação, já que eram muito limitadas as provisões de galinhas que restavam em ambos os navios, o próprio Monsenhor Núncio não permitia que lhe dessem mais de meia galinha por dia, e mesmo essa metade ele chegou a dividi-la mais tarde com uma portuguesa extremamente pobre, por ocasião de um parto dessa mulher a bordo, ordenando também que lhe fornecessem os seus lençóis. Dado o perigo, ele fez com que a criança fosse baptizada por um sacerdote português que ia a bordo, e querendo ele mesmo ser o padrinho, obteve-lhe depois da clemência do Príncipe Regente uma pensão mensal, além de muitos socorros que forneceu aos pais dela. Mas não foi só para com essa família que ele exerceu a bordo sua Caridade, pois a consagrou em geral a todos os emigrados portugueses que ali se achavam, e que ele procurava animar, dadas as suas precárias condições, e ajudar quanto possível, distribuindo entre eles uma parte dos outros mantimentos que havia mandado transportar do navio português; disso foi o próprio Príncipe Regente informado das pessoas de seu real serviço que se achavam entre eles, e por esse motivo dignou-se de manifestar a Monsenhor Núncio seus sentimentos de gratidão.
A protecção da fragata inglesa dada ao navio português Estrela do Norte, o livrou de ser pilhado por um corsário no dia 30 de Abril; mas essa própria protecção, assim como a inconstância dos ventos, prolongou a viagem até o dia 10 do mês de Maio seguinte, tendo nós sofrido não pouco por causa da agitação do mar, principalmente no golfo de Biscaia, onde na noite do dia 9 nos assaltou uma terrível ventania e corremos durante perto de dez minutos um grande perigo; mas esse perigo passou, e encontrámo-nos muito perto de outra fragata maior do que a nossa; não obstante isso foram feitos todos os preparativos para a batalha, os quais afortundamente ficaram inúteis, porque trocados que foram os sinais especiais, viu-se que ambas eram inglesas.
Prouve ao altíssimo que na tarde do mesmo dia [10] do mês de Maio pudéssemos ancorar no porto de Plymouth, e depois de termos passado ali uma noite tormentosíssima por causa das desordens que aconteceram a bordo, devidas à embriaguês de alguns marinheiros, enquanto o capitão se achava em terra, pudemos desembarcar no dia seguinte, 11 do [mesmo] mês, cerca das três horas da tarde, acompanhados pelo mesmo capitão.


Rio de Janeiro, 23 de Março de 1811.



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[Documentos anexos à memória de Camillo Luigi de Rossi]

Documento n.º I






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Documento n.º II

(Carta do Núncio Caleppi ao General Junot, 
escrita do Rio de Janeiro a 15 de Fevereiro de 1809).




Senhor General:


Não é senão nestes dias (e não deveis estranhar a demora depois dos cuidados que haveis tido para impedir o giro das nossas cartas), que nós temos conhecido a ordem aqui junta (n.º 1), passada no primeiro de Maio de 1808, do vosso Quartel-General em Lisboa, contra o Abade Macchi, Auditor Geral da Nunciatura Apostólica, para que houvesse de sair de Lisboa em 24 horas, e de Portugal em 4 dias; e porque esta ordem vem a dirigir-se principalmente contra nós, uma vez que vos permitistes de notar nela a nossa conduta de astuciosa, e de dizer que tínhamos passado a bordo da esquadra inglesa, faltando à nossa palavra de honra; é a nós que compete responder-vos e nos justificar à face do público, ainda que este, sendo-lhe já constante tudo o que temos sofrido durante a recusa que fizestes de passaportes para nos passar ao Brasil, tem aplaudido [a] nossa saída, e reconheceu nos perigos, de que temos felizmente escapado, a mão visível da Providência, que nos tinha salvado (*); ao mesmo tempo que vossos clamores contra nós, e esta ordem precipitada contra o Auditor da Nunciatura, não faziam senão mostrar a cólera que vos havia ocasionado a nossa partida. Felizmente para nós, Senhor General, não teremos precisão de outra coisa mais, que de lembrar-vos os factos, para desmentir a ordem emanada do vosso Quartel-General, e mostrar ao público qual tem sido a franqueza de nossa conduta depois da vossa chegada a Lisboa, como também a minha delicadeza em sustentar minha palavra. No meio das revoluções, quanto mais a alma é pura e elevada, mais convém de a manifestar, porque a calúnia aflige muitas vezes as pessoas de bem, e sempre os amigos daqueles que são o seu objecto. 
Passemos aos factos: forçado pelas circunstâncias (como bem sabe Sua Alteza Real o Príncipe Regente, e também o sabem [os] seus Ministros) de ficar em Lisboa no momento da sua partida, e privado de qualquer instrução do Santo Padre para acontecimentos tanto grandes, quanto imprevistos, e o que é ainda mais, até incerto da situação de Sua Santidade, nós conhecemos logo quanto [a] nossa posição se fazia difícil, e toda a responsabilidade que vínhamos a contrair. Porém, persuadidos ao mesmo tempo que a Providência, tendo-o assim permitido, Sua Alteza Real e os portugueses tinham direito de esperar de nós, quanto em iguais circunstâncias poderia fazer um Núncio Apostólico, para o serviço do Trono e da Religião; no mesmo momento em que o Príncipe Regente saía com [a] sua esquadra do porto de Lisboa, nós traçamos o plano de conduta que devíamos praticar, até que nós pudéssemos segui-lo ao Brasil. Eis aqui o plano: Suster e animar os bons portugueses, e particularmente os ministros do santuário, na sua fidelidade e acatamento à Real Casa de Bragança; conter com [o] nosso exemplo os fracos; consolar os parentes daqueles que tinham tido a honra de acompanhar a Família Real; envergonhar aos maus, se alguns houvesse; impedir o mal, e resistir quanto fosse possível aos atentados que se pretendessem fazer às instituições religiosas, e sobre[tudo] não fazer coisa alguma que pudesse indicar o mais pequeno assenso à mudança do Governo, de que se fosse ameaçado. Eis aqui a nossa regra; vejamos agora se a temos bem aplicado. 
Vós vos lembrareis, Senhor General, que desde a primeira noite da vossa chegada, nós vos dissemos que não tinha sido senão pelo mais grande azar que nós estávamos ainda em Lisboa, e que não tendo podido partir com o Príncipe Regente, nosso dever, porém, nos obrigava a segui-lo o mais breve possível, e que por isso nós vos pediríamos passaportes logo que alguma embarcação tivesse licença de sair; e vos lembrareis também que, dois dias depois, dizendo-nos sobre isso algumas proposições obsequiosas para nos empenhar não nos apressarmos, tivemos a franqueza de vos responder que em Lisboa [a] nossa residência já não podia deixar de vos ser desagradável, porque enviado pelo Santíssimo Padre junto ao Príncipe Regente de Portugal, nós não poderíamos jamais fazer a mais pequena coisa que pudesse desagradar a Sua Alteza Real. Com efeito, no dia seguinte nós tivemos em presença de monsieur Hermann uma forte questão com o Ajudante de Campo do senhor General Laborde, por causa das religiosas de Santa Engrácia, que se pretendia fazer despejar do seu Convento para nele estabelecer um Hospital Militar. Porém, a minha resistência foi igual às ameaças do Ajudante de Campo; e como nós amamos fazer justiça, temos a satisfação de confessar que, em consequência desta cena e da inquietação que isto tinha causado na cidade, vós declarastes que não se perturbariam mais as religiosas. E que conduta teria podido ser mais franca e menos astuciosa?
Contudo, vamos adiante. Vós não ignoráveis, senhor General (e que poderíeis vós ignorar com a vossa polícia?) nossa amizade com os parentes dos ausentes, e nosso vivo interesse pelos seus negócios; vós sabíeis também as sociedades que frequentávamos e aquelas que evitávamos, assim como a maneira de pensar e a boa conduta dos nossos amigos; e vós não tereis esquecido também quantas pessoas iam a nossa casa para nos fazer a honra de nos consultar sobre os acontecimentos do tempo; mas vós igualmente tereis sabido que Ministro de um Deus de verdade e de justiça, não desmentimos jamais [o] nosso carácter, nem deixámos de os confirmar em seus deveres para com o seu Soberano legítimo, e na impossibilidade em que estavam de prestar outro juramento que não fosse a ele, ou de aceitar algum outro serviço; e nós vos diremos que muitas vezes tivemos a satisfação de ver derramar suas lágrimas, e darem depois suas demissões para não servirem aos franceses, o que prova sem dúvida as disposições das suas almas, oprimidas ao depois pela força. E pouco importa se um indivíduo entre tantos belos homens que pensavam bem, abusou de nossa confiança e de nosso zelo, para ter este merecimento para convosco; ele será assaz castigado pelo seu arrependimento.
Ao mesmo tempo, senhor General, apoiando as palavras com as cartas, nós não cessávamos por nosso bilhete de 25 de Janeiro (n.º 3), de solicitarmos [os] nossos passaportes, e de vos representar que nós os reclamávamos desde o momento da vossa chegada, estando já de acordo com a Regência instituída por Sua Alteza Real o Príncipe Regente, de deixar em Lisboa o Auditor da Nunciatura para suprir nas necessidades espirituais dos fiéis, assim como dizíamos no mesmo bilhete, quando os acontecimentos do primeiro de Fevereiro vieram ainda oferecer à nossa conduta uma nova ocasião de se manifestar. Vós tínheis já recebido os cortejos, feitos assim pelos vossos títulos, como pela mudança operada no Governo, e não foi senão ao terceiro dia que nós fomos procurar-vos; mas quando parecia estardes vós esperando também [os] nossos parabéns, nós tivemos o ânimo de dizer-vos que sendo costumados outras vezes de alegrar-nos pelo que vos sucedia de agradável, nós sentimos de não poder fazer o mesmo naquela ocasião; que vós conhecíeis muito bem a delicadeza de nossa posição, e que por isto com instância requeríamos nossos passaportes; e porque vós nos respondestes que tínheis sido obrigado a escrever sobre isso a Paris, e que esperáveis brevemente a resposta, nós vos dissemos que, entretanto, nos retiraríamos para o campo, porque logo que já não existia a Regência instituída pelo Príncipe Regente, nossa presença em Lisboa seria inteiramente sem desculpa, assim para com o Santo Padre, como para com Sua Alteza Real; e nós estimamos confessar, senhor General, que vós nos parecestes ficar não muito sentido desta conduta, que vós depois haveis chamado astuciosa; nem de uma recusa que vos fizemos de uma pastoral para os [religiosos] regulares.
E que queríeis vós de mais franco e menos astucioso senão é talvez a nossa resposta à participação oficial (n.º 4), que monsieur Hermann, chamado Secretário de Estado, nos havia feito a respeito da mudança de Governo? Eis aqui esta resposta (n.º 5), tomai o trabalho de a ler, ainda uma vez, e dizei se era possível de a dar mais franca, e menos conforme à aderência que procuráveis de nós. E a nossa recusa para não assistir à vossa recepção na Academia das Ciências, e na Igreja Patriarcal de Lisboa, não foi assaz atendível?
Mas ainda (e Deus não queira que pretendamos fazer merecimento do nosso dever) lembrai-vos, senhor General, da nossa conversação com monsieur Jouffre, vosso cunhado, no dia 6 de Março, em casa e na presença de monsieur Hermann e de seus secretários. Não tivemos nós o ânimo de lhes dizer que, obrigados pela recusa de nossos passaportes, de sermos expectadores da espoliação dos altares e de tantas outras profanações, nós seríamos enfim obrigados a subir aos púlpitos das igrejas para declarar ao povo de Lisboa que só a força nos fazia ali estar presentes? Vós fostes logo sabedor, e não vos tereis esquecido das ameaças duras e violentas que nos mandastes fazer, poucos dias depois, em 10 de Março, pelo Auditor da Nunciatura, residindo nós com os Barbadinhos Italianos, para onde nos havíamos retirado, por nos ter a febre e outras indisposições impedido de ir para o campo, como havíamos projectado. Estas ameaças eram tais, que o bom Auditor que nos é afectuosamente unido, ficou assustado; porém nós, senhor General, tomámos a resolução de ir logo ter convosco, e ainda mais, porque nos tínheis mandado dizer na mesma ocasião que tínheis já recebido resposta sobre os nossos passaportes, e que no-los podíeis dar, não para o Brasil, mas sim para tornar para Roma pela volta de Espanha. Como, porém, nós não queríamos nem podíamos desdizer a conversação que tínhamos tido com monsieurs Hermann e Jouffre, nossa conversação não foi tranquila; e vós vos lembrareis que tendo-me dito que o Príncipe Regente tinha levado os diamantes e o precioso da Patriarcal, nós vos respondemos que Sua Alteza Real os tinha salvado da pilhagem para os restituir à Igreja, assim como ele nos tinha assegurado nas vésperas da sua partida.
Depois disto passámos a falar dos nossos passaportes, e não nos temos esquecido, senhor General, que tendo-nos queixado da violência que nos fazia uma tão longa jornada por terra, ainda por causa da despesa. vós tivestes a atenção de nos oferecer sege e machos; e posto que nós não aceitámos nem uma nem outra coisa, nós temos a satisfação, contudo, de vos renovar nossos agradecimentos. E não estais ainda edificado da nossa franqueza e da nossa boa fé?
Assim pois, obrigados de ir à Espanha (donde contudo esperávamos poder embarcar para o Brasil), nós tínhamos já tratado com o Contra-Almirante Greyg e alguns outros oficiais ao serviço da Rússia, que partiam para a Espanha, a fim de nos transportar com mais segurança; porém, tendo instado por isso a expedição de nossos passaportes, vossas dúvidas e vossas reflexões a respeito do Santo Padre nos fizeram renunciar [a] sua boa companhia, e privar-nos por isso do socorro que a Providência parecia nos haver enviado para nos animar numa viagem que, por então, então tanto penível como perigosa. Entretanto, pessoa prudente, e que conhecia bem as manobras da Revolução [francesa], julgou ver em vossas reflexões e em vossas dúvidas o projecto de nos desamparar em caminho para depois nos sacrificar (o que não se atreveria em Lisboa, dizia ele, por causa do povo), ou ao menos para nos impedir de não ir jamais ao Brasil; e vós perdoareis, senhor General, se abatidos como nós estávamos, pelas aflições que nos havíeis feito sofrer, nós não podendo defender-nos de acreditar, ao menos em parte, a possibilidade deste projecto, e ainda mais que os passaportes que naqueles dias acabáveis de conceder ao senhor encarregado dos negócios de Sua Majestade Sueca, a fim de poder sair por mar, posto que destinado, como nós, para o Brasil; a ocupação de Roma pelas tropas francesas; os insultos feitos à sagrada pessoa do Santo Padre, e outras tantas circunstâncias vinham aumentando o receio por nossa segurança pessoal.
Não foi, portanto, senão obrigados de razões tão fortes e tão convincentes, que nos vimos obrigado a mudar de plano e abandonar a jornada da Espanha, para a qual tínhamos já feito todas as disposições necessárias, como vós sabeis, e fretar (por três mil cruzados, com a condição que nos esperaria dois dias fora da barra de Lisboa) uma embarcação neutra, denominada a Estrela do Norte, para a qual tínheis concedido passaportes, a favor do negociante José Midosi, para ir às ilhas do Açores e ao depois ao Brasil, como vós veríeis também pela cópia do contrato, que nós tivemos a atenção de vos fazer comunicar, [n]o dia depois da nossa partida, com a nossa carta de 18 de Abril (n.º 6). E eis aqui, senhor General, que chegamos ao ponto de ver com que direito vós tendes podido acusar-nos de termos passado a bordo da esquadra ingleza, faltando (dizeis vós) de uma maneira tão revoltante à nossa palavra de honra. E que direito tínheis vós de exigir nossa palavra de honra? Vós, que faltastes a todos os direitos, recusando-nos, de um modo nunca ouvido, os nossos passaportes? E não vos tínhamos declarado a 20 do mês de Janeiro que a vossa obstinação a recusá-los nos obrigaria, enfim, a meter-nos de qualquer modo ao mar? Mas não; vede [a] nossa generosidade, e admirai ao mesmo tempo [a] nossa boa fé. Sim, lembra-nos muito bem (e é a única prova, ainda que só verbal, que vós podeis ter), lembra-nos que a última noite que fomos para despedir-mo-nos de vós, nos dissestes que uma pessoa que nós estimávamos e que acreditávamos entre [os] nossos amigos, vos havia assegurado que nós passaríamos à esquadra inglesa; sobre o que (receando também alguma surpresa) nós vos respondemos que não, e nos lembra que nós demos a nossa palavra de honra. Devíamos ou não (é bom de o repetir) mantê-la depois de tudo o que nos havíeis feito sofrer? Podíamos conservá-la como embaixador, encarregado pelo nosso Soberano de nos passar ao Brasil, sendo já quatro meses que vós nos negáveis os passaportes? Não importa; bastou o termos prometido para nos julgar obrigados. Com efeito, depois de ter ocorrido num mau barco (como temos dito no princípio) todos os riscos para sair da barra, e também ainda outros pelas ondas depois de termos saído, tendo enfim avistado a Estrela do Norte, que nos esperava, nos embarcámos nela com o Secretário da Nunciatura e dois domésticos, únicas pessoas com as quais nos pudemos salvar; e ainda que a esquadra inglesa, avistando-nos e obrigando-nos a chegar a ela, o Almirante Sir Charles Cotton nos mandasse fazer todos os oferecimentos possíveis para passar ao seu barco, nossa delicadeza não nos permitiu aceitar, e a sua nos deixou em liberdado, mandando respeitar a nossa embarcação. Assim pois, foi sobre a Estrela do Norte que nós continuámos a nossa derrota [durante] cinco dias, até que o tempo forte e os danos que já esta mesma embarcação tinha sofrido, fizeram acreditar ao nosso Capitão que estávamos em perigo, e nos obrigaram a recorrer a uma fragata inglesa, o Mediador, que quis salvar-nos, com a condição de nos conduzir a Plymouth, rebocando a Estrela do Norte. Estes factos são tão notórios e tão conhecidos dos ingleses e dos portugueses que os têm presenciado, que nós desafiamos a qualquer que seja de os poder negar ou alterar.
Ah! Senhor General, depois desta narração, que em consequência da vossa inculpação, nós devíamos mais ainda ao Santo Padre e ao Príncipe Regente, que a qualquer outro, não sentis de nos ter taxado de conduta astuciosa, e de termos faltado de modo tão revoltante à palavra de honra? E quem nas nossas circunstâncias e diante de vós teria tido mais franqueza em sua conduta, e mais delicadeza em conservar a sua palavra?
Sofredores depois de 18 anos por esta Revolução infernal (que assola o Universo), Deus, o Papa e os Soberanos, junto aos quais temos tido a honra de residir, têm sempre feito [a] nossa divisa; e nós desafiamos a qualquer [um] de poder citar uma única palavra, um só passo que tenhamos dado, declinando da grande linha traçada pela religião e pela honra. E se a força pelo decreto de 2 de Abril do ano passado tem podido despojar-nos na Romania [sic] e noutras partes da herança de nossos pais e das graças de Pio VI, esta força, contudo, não pode nem poderá jamais desunir-vos de Pio VII nem do Príncipe Regente de Portugal, a menos que Sua Santidade mesmo não aceite o sacrifício que nós lhe temos já oferecido de nos enviar à França, para aí ser vítima, se isto for do seu serviço. 

Rio de Janeiro, 15 de Fevereiro de 1809.


L. Arcebispo de Nisibi




(*) [Nota do Núncio]: Nós embarcámos no Tejo [n]o segundo dia de Páscoa [18 de Abril], às 11 horas da noite, num pequeno barco, que começou logo depois a fazer muita água, e gastámos mais de três horas para sair da barra e procurar o navio Estrela do Norte, que nós havíamos fretado por três mil cruzados, como vos é constante pelo documento n.º 2, que nós vos fizemos comunicar, pelo Auditor da Nunciatura, no dia depois da nossa partida.
A barra estava guardada por barcas canhoneiras, e em 5 de Abril vós tínheis assinado e mandado publicar [o] decreto de morte contra aqueles que ainda emigrassem ou favorecessem a emigração.





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[Documentos citados na carta anterior (doc. n.º II)]


Documento n.º 1 

(Carta de Junot a Vicente Macchi, 
Auditor da Nunciatura em Lisboa, escrita a 1 de Maio de 1808).



Quartel-General de Lisboa, primeiro de Maio de 1808.
Não conhecendo em Vossa Senhoria carácter algum polítco, queira abster-se de preencher em Lisboa algum acto do seu precedente carácter; e como a conduta astuciosa do Arcebispo de Nisibi me pode fazer julgar que ele procurará de entreter uma correspondência culpável para proteger os desígnios dos comandantes da Esquadra inglesa, a bordo da qual ele passou, faltando num modo tão impróprio à sua palavra de honra; queira aprontar-se para deixar Lisboa em 24 horas, e Portugal em 4 dias.

O Duque de Abrantes

Ao senhor Vicente Macchi, 
Ex-Auditor da Nunciatura de Roma em Lisboa.



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Documento n.º 2

(Contrato passado entre o negociante José Midosi e o Núncio, a 12 de Abril de 1808).


Eu, abaixo assinado dono e consignatário do navio denominado Estrela do Norte, de que é Capitão Francisco Benicio de Carvalho, me obrigo de receber a bordo do dito navio a Sua Excelência Monsenhor Lourenço Caleppi, com o seu secretário e dois criados, que em todos fazem quatro pessoas, pelas quais é obrigado Sua Excelência de pagar pela passagem de todos juntos um conto e duzentos mil réis em dinheiro metálico; obrigando-me também de ceder a ele e ao seu secretário o meu camarote, que está anexo à câmara do dito navio, e de dar aos dois criados outro lugar suficiente; assim como me obrigo a dar a todos mesa, durante toda a viagem até ao Rio de Janeiro, aonde será finda esta minha obrigação, mediante o sobredito pagamento, que se fará em três vezes, a saber: quatrocentos mil réis aqui em Lisboa, outros quatrocentos na ilha de S. Miguel, e os últimos quatrocentos à nossa feliz chegada ao Rio de Janeiro. Declaro outrossim que a minha primeira escala será à sobredita ilha de S. Miguel, aonde hei de ter a demora de dez dias ao mais [tardar], não obstante que podendo abreviar a sobredita demora, me será lícito fazê-lo, e mesmo no sobredito tempo da demora serei obrigado de dar-lhes mesa a bordo, como se estivessem à vela. E de mais me obrigo a esperar dois dias inteiros com o sobredito navio, logo fora da barra [de Lisboa], para receber a bordo um ou todos da sobredita comitiva, e dar-lhes lugar de chegar a meu bordo. Enfim, declaro ter já recebido o sobredito primeiro pagamento dos quatrocentos mil réis, tudo em metal. Em fé de que sobrescrevi a presente para valer em qualquer Juízo.
Lisboa, 12 de Abril de 1808.

José Midosi



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Documento n.º 3


(Carta do Núncio Apostólico ao General Junot, 
escrita a 25 de Janeiro de 1808).


Depois de ter repetido a Vossa Excelência [os] meus agradecimentos pelos passaportes que acaba de conceder aos três missionários mandados pelo Sante Padre às Índias Orientais, assim como a outros eclesiásticos, munidos com o meu certificado, venho também renovar [as] minhas instâncias, rogando a Vossa Excelência de mandar passar um também para mim, a fim de poder aproveitar-me dum dos primeiros navios aos quais Vossa Excelência já deu licênça de sairem. Não levo comigo mais de duas a três pessoas, e deixo aqui o senhor auditor [da Nunciatura de Roma em Lisboa, Vicente Macchi] para acudir às precisões dos fiéis, do modo que já preveni os senhores da Regência, e que se tem praticado mesmo em toda a parte, quando os núncios têm seguido a Corte. Enquanto a mim, enviado pelo Santo Padre junto a Sua Alteza Real o Príncipe Regente de Portugal, e empenhado com ele para o seguir ao Brasil, já teria tido a honra de o acompanhar, se a hora da sua partida não tivesse sido tão apressada, e a minha saúde naquela ocasião tão má. Mas agora que esta é melhor, todos os deveres da minha missão me obrigam a transportar-me ao Brasil, ainda mesmo independentemente dos do meu reconhecimento; e qualquer demora da minha parte faria com que eu faltasse a Sua Alteza Real o Príncipe Regente, a quem prometi de o seguir, ao Santo Padre, cujo zelo nunca me poderia perdoar o ter perdido uma tão boa ocasião de fazer bem, e à religião, que é o objecto principal. Por isso espero que tantos e tão grandes motivos que tive a honra de expor a Vossa Excelência desde os primeiros dias da sua chegada a Lisboa, justificarão a minha solicitude, e que Vossa Excelência quererá conceder-me os passaportes que novamente lhe peço e aceitar os sentimentos da alta consideração, com a qual tenho a honra de ser, etc.




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Documento n.º 4

(Carta de participação ao Núncio feita a 3 de Fevereiro de 1808 por mr. Hermann).


Senhor:
O General em Chefe do Exército francês em Portugal encarregou-me que participasse a Vossa Excelência que foi suprimido, segundo as ordens de Sua Majestade o Imperador dos franceses, Rei de Itália e Protector da Confederação do Reno, o Governo estabelecido pelo Príncipe do Brasil quando Sua Alteza Real abandonou o Reino de Portugal; que este Reino será daqui em diante inteiramente administrado por Sua Majestade o Imperador e Rei, e em seu nome; e que o General em Chefe foi investido por Sua Majestade de todos os poderes; portanto, para o futuro, queira Vossa Excelência dirigir-se ao dito General em Chefe, como Governador General deste Reino.
Eu não posso dar melhor a conhecer a natureza da mudança que houve, e o estado presente do Governo de Portugal, senão enviando a Vossa Excelência as três proclamações inclusas.
O General em Chefe manda certificar a Vossa Excelência que ele porá todo o cuidado em conservar as relações existentes entre a Santa Sé e o Reino de Portugal em toda a sua inteireza, e aproveitará com ânsia todas as ocasiões de dar a Vossa Excelência provas da estima que há muito tempo lhe consagra.
Tenho a honra de fazer a Vossa Excelência protestos da minha mais alta consideração, etc.

O Secretário de Estado encarregado da Repartição do Interno,
Hermann

Lisboa, 3 de Fevereiro de 1808.



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Documento n.º 5


(Resposta do Núncio Apostólico à carta anterior, escrita a 7 de Fevereiro de 1808).


Senhor:
Não deixarei de dar conta a Sua Santidade da participação que me fizestes, com data de 3 do corrente [mês], da parte de Sua Excelência o General em Chefe.
Quanto a mim, privado como estou de toda a sorte de instruções e ordens a este respeito, e obrigado pelos deveres mais sagrados da minha missão a ir reunir-me a Sua Alteza Real o Príncipe Regente de Portugal, não posso deixar de me empenhar ainda muito mais, se possível for, para obter do General em Chefe os passaportes que há mais de dois meses não cesso de solicitar, como todo o mundo sabe. Entretanto rogo-vos que certificareis a Sua Excelência o meu reconhecimento pela estima que vos encarregou que me manifestasseis, e aceitai vós mesmo os sentimentos da alta consideração com que tenho a honra de ser, etc.



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Documento n.º 6

(Carta do Núncio a Junot, para lhe ser entregue no dia seguinte ao da sua partida, com data de 18 de Abril de 1808).


A negação dos passaportes para poder embarcar-me, sofrida por espaço de quatro meses; os incómodos e tudo quanto tenho suportado neste intervalos, sem os poder conseguir, me têm muitas vezes feito recear que alguma calúnia tenha enganado a Vossa Excelência ou ao seu Governo sobre a minha pessoa. Digo alguma calúnia, porque ainda que ela não poderia estabelecer uma razão suficiente para me serem negados, subministraria aparências para demorar a sua expedição. Por felicidade minha, Vossa Excelência nestes últimos dias me fez o maior obséquio, certificando-me repetidas vezes pela sua honra que nada, absolutamente nada havia contra a minha pessoa, e que a negação dos passaportes para o meu embarque era somente uma medida política, não havendo a França (me dizia Vossa Excelência) facilitar aos embaixadores meios de transportar-se a um país com que estava em guerra.
Ainda que longe de reconhecer um tal princípio aplicável a mim, vendo, não obstante, que eu tinha lutado muito contra a força e que não me restava mais esperança alguma de alcançar passaportes por mar, os aceitei enfim para me retirar ao menos por terra, bem resolvido contudo, como eu mesmo disse a Vossa Excelência, a aproveitar-me da primeira ocasião oportuna para embarcar-me, onde e como eu pudesse; porque uma vez que Vossa Excelência só me recusava os passaportes por mar, para não me facilitar a passagem ao Brasil, nenhuma coisa me podia embaraçar de fazer toda a diligência para lá ir por outros meios, e com muito maior confiança, por Vossa Excelência me ter dito, e mandado dizer, que não levaria a mal o embarcar-me noutra parte se eu pudesse.
Entretanto, eu estava a ponto de partir pela Espanha, quando os acontecimentos presentes me obrigaram, como é notório, a dilatar a minha viagem para não me expor no caminho aos salteadores que haviam saído das prisões da capital. Quis depois de novo empreendê-la, e já tinha dado para isso todas as providências, porém as notícias que acabo de receber das pessoas mandadas adiante, com a minha equipagem, sobre a pouca segurança e os embaraços que se encontraram nos públicos caminhos, me aterraram no último ponto. Embaraçado, pois, desta sorte por mar, atemorizado por terra, agitado pelos gritos da minha consciência, que me representa sem cessar o Brasil, como o alvo de meus sagrados deveres (e que outro poderia eu ter com setenta anos, enfermo e abatido?) só me resta um partido; e Vossa Excelência não se admirará de eu o tomar. Penetrado contudo até o último instante de sentimentos de delicadeza, que tenho praticado na minha situação tão difícil, não irei para a Esquadra [inglesa]; pois tenho preferido um pequeno navio, mundio dos passaportes de Vossa Excelência, no qual espero poder enfim passar ao meu destino, e merecer por isto o elogio tão lisongeiro, com que Vossa Excelência mesmo me tem honrado algumas vezes, do meu acatamento para com a religião e o Santo Padre.
Tenho a honra de ser, com sentimentos da mais alta consideração, etc.


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[Fonte: Como já tivemos ocasião de referir, a memória propriamente dita (de Camillo Luigi de Rossi), foi traduzida do original italiano por Jerônimo de Avelar Figueira de Melo, que descobriu este documento no Arquivo Secreto do Vaticano (N.º 143-A: Portogallo), e o publicou nos Anais da Biblioteca Nacional - Vol. LXIRio de Janeiro, 1939, pp. 15-58. A carta do Núncio ao General Junot, datada de 15 de Fevereiro de 1809, juntamente com os outros documentos aí citados e acima também transcritos, foi publicada originalmente em 1809 pela Impressão Régia do Brasil, e em 1811 pela Impressão Régia de Lisboa, sendo ambas edições em versão bilingue (português e francês). Resta dizer que os três últimos documentos transcritos (n.os 4, 5 e 6) tinham sido previamente publicados na Gazeta do Rio de Janeiro de 21 de Setembro de 1808, que igualmente anunciava a recente chegada do Núncio ao Brasil (ocorrida no dia 8 do mesmo mês)].