sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Embarque da corte para o Brasil

Fonte: BND
Pormenor de gravura da época alusiva ao embarque do príncipe


Poucos episódios da historiografia portuguesa deram azo a tão duras críticas... O incisivo Oliveira Martins, no segundo tomo da sua História de Portugal, escreveu algumas das palavras mais citadas sobre o embarque da família real e da corte para o Brasil, mais de 70 anos depois do mesmo ter ocorrido: 

"Três séculos antes, Portugal embarcara, cheio de esperanças e cobiça, para a Índia: em 1807 (novembro, 29) embarcava um préstito fúnebre para o Brasil.  A onda da invasão varria diante de si o enxame dos parasitas imundos, desembargadores e repentistas, peraltas e sécias, frades e freiras, monsenhores e castrados.  Tudo isso, a monte, embarcava, ao romper do dia no cais de Belém.  Parecia o levantar de uma feira, e a mobília de uma barraca suja de saltimbancos falidos: porque o príncipe regente, para abarrotar o bolso com louras peças de ouro, seu enlevo, ficara a dever a todos os credores, deixando a tropa, os empregos, os criados por pagar.
Desabava tudo a pedaços; e só agora, finalmente, o terramoto começado pela natureza, continuado pelo marquês de Pombal, se tornava um facto consumado. Os cortesãos corriam pela meia-noite as ruas, ofegantes, batendo às lojas, para comprarem o necessário; as mulheres entrouxavam a roupa e os pós, as banhas, o gesso com que caiavam a cara, o carmim com que pintavam os beiços, as perucas e rabichos, os sapatos e fivelas, toda a frandulagem do vestuário. Era um afã, como quando há fogo; e não havia choro nem imprecações: havia apenas uma desordem surda. Embarcavam promiscuamente, no cais, os criados e os monsenhores, as freiras e os desembargadores, alfaias preciosas e móveis toscos sem valor, nem utilidade. Era escuro, nada se via, ninguém se conhecia. Os botes formigavam sobre a onda sombria, carregando, levando, vazando bocados da nação despedaçada, farrapos, estilhas, aparas, que o vento seco do fim dispersara nessa noite calada e negra.
Muita gente, por indolência, recusava ir; outros preferiam o invasor ao Bragança, que fugia miserável e cobardemente: ao herdeiro de reis, que jamais tinham sabido morrer, nem viver. Mais de um regimento desobedeceu aos chefes que o mandavam embarcar; e muitos, vendo a debandada, se dissolveram, deixando as armas, dispersando. Outros embarcavam: chegavam ao portaló dos navios já repletos e voltavam para terra, aborrecidos e enjoados de tanta desordem, de tão grande vergonha.
O príncipe-regente e o infante de Espanha chegaram ao cais na carruagem, sós: ninguém dava por eles; cada qual cuidava de si, e tratava de escapar. Dois soldados da polícia levaram-nos ao colo para o escaler. Depois veio noutro coche a princesa Carlota Joaquina com os filhos. E por fim a rainha, de Queluz, a galope. Parecia que o juízo lhe voltava com a crise. "Mais devagar! gritava ao cocheiro; diriam que fugimos!" A sua loucura proferia com juízo brados de desespero, altos gritos de raiva, estorcendo-se, debatendo-se às punhadas, com os olhos vermelhos de sangue, a boca cheia de espuma. O protesto da louca era o único vislumbre de vida. O brio, a força, a dignidade portuguesa acabavam assim nos lábios de uma rainha doida!
Tudo o mais era vergonha calada, passiva inépcia, confessada fraqueza. O príncipe decidira que o embarque se fizesse de noite, por ter a consciência da vergonha da sua fuga; mas a notícia transpirou, e o cais de Belém encheu-se de povo, que apupava os ministros, os desembargadores, toda essa ralé de ineptos figurões de lodo. E - tanto podem as ideias! - chorava ainda pelo príncipe, que nada lho merecia. D. João também soluçava, e tremiam-lhe muito as pernas que o povo de rastos abraçava.
A esquadra recebera 15 000 pessoas, e valores consideráveis, em dinheiro e alfaias. Levantou ferro na manhã de 29 [Domingo], pairando em frente da barra até o dia seguinte, às 7 horas, que foi quando Junot entrou em Lisboa. Os navios largaram o pano, na volta do mar, e fizeram proa a sudoeste, a caminho do Brasil. Enquanto a esquadra esteve à vista, pairando, os altos da cidade, donde se descobre o mar, apareciam coroados de povo mudo e aflito. As salvas dos navios ingleses que bloqueavam o Tejo troavam lugubremente ao longe. O sol baixava, a esquadra perdia-se no mar, ia-se toda a esperança, ficava um desespero, uma solidão... Soltou-se logo a anarquia da miséria, e na véspera da chegada do Anti-Cristo [Junot], Lisboa correu risco de um saque.

Napoleão estava burlado. O príncipe D. João, a bordo com as mãos nos bolsos, sentia-se bem remexendo as peças de ouro: ia contente com a sua esperteza saloia, única espécie de sabedoria aninhada no seu gordo cérebro. Bocejava ainda: mas porque o enjoo começava com os balanços do mar. É o que sucede à história, com os miseráveis balanços do tempo: vem o enjoo incómodo e a necessidade absoluta de vomitar" (Oliveira MARTINS, História de Portugal - Tomo II, 4.ª ed., Lisboa, Livraria Bertrand, 1887, pp. 237-240)..


Nos primeiros momentos, porém, se alguém pensava assim não o ousaria escrever. De facto, os primeiros documentos que se referem a este episódio falam em "transferência", "transladação", "retirada" ou "mudança" da corte. Nenhum deles fala clara e explicitamente em fuga. Acúrsio das Neves foi um dos primeiros a contornar este problema. Ao descrever este acontecimento no primeiro tomo da sua História Geral da Invasão dos Franceses em Portugal (publicado em 1809), começa por colocar em epígrafe dois versos em latim de uma Écloga (1,3) de Virgílio:     

Nós deixamos o solo da nossa pátria, e abandonamos os doces campos:
Nós fugimos da nossa pátria.                                                                                                                                                         


Nota: O segundo excerto em latim citado neste excerto é um fragmento do poema Tristia de Ovídio, obra composta no e sobre o exílio: Este era o aspecto de Tróia quando capturada.

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