quinta-feira, 17 de março de 2011

Do processo do Escorial ao motim de Aranjuez, segundo Ronald Fraser


A INFÂMIA DOS BORBONS: O PROCESSO DO ESCORIAL

Os projectos de Napoleão em relação à Espanha e o lento mas implacável avanço do seu exército em direcção a Madrid, em Março de 1808, desencadearam uma crise no seio da monarquia absolutista. O Imperador continuava a manter os seus planos em segredo. Ninguém, nem sequer o Marechal Murat, seu cunhado e Tenente-General na Espanha, sabia a contas certas o que planeava Napoleão. Ainda que tarde, somente um espanhol compreendeu o verdadeiro alcance do perigo que se ameaçava: Godoy. E esse conhecimento custou-lhe a queda. 

Para regozijo popular, o favorito do casal Real tinha sido sofrido um revés no Outono anterior pelo herdeiro ao trono, Fernando, cuja popularidade, em consequência, tinha aumentado vertiginosamente. Uma carta anónima dirigida ao Rei, escrita provavelmente por Godoy ou por algum dos seus sequazes, levou Carlos IV a revistar os aposentos do seu filho, onde encontrou documentos comprometedores. A 30 de Outubro de 1807, o Rei proclamou oficialmente à nação que Fernando tinha conspirado para usurpar o trono, que estava em prisão domiciliária, e que uma série de conspiradores tinham sido encarcerados. 

Na verdade, a conspiração do herdeiro da coroa, que então contava com vinte e cinco anos, era uma  conjuração para desfazer-se de Godoy. O ódio que sentia Fernando por Godoy remontava-se à sua adolescência. O que não é de estranhar, pois viu como o suposto amante da sua mãe escalava postos no poder e nos graus de nobreza até se converter em Príncipe, título habitualmente reservado somente para o herdeiro do trono. E ainda que não se tivesse precatado da situação, o seu anterior sacerdote preceptor, Juan Escoiquiz, um intrigante, astuto e servil sem escrúpulos, tinha insinuado-lhe os perigos que o aguardavam. Mas provavelmente não foi necessário: Fernando era de natureza demasiado suspeita, cobarde, rancorosa e pouco dada ao perdão, para precisar de lições de vingança. A sua própria mãe considerava-o taimado e pusilâmine, e para a sua primeira sogra, a Rainha Carolina de Nápoles, era um marido tonto, ocioso, mentiroso, envilecido, solapado.... Entre 1804 e 1806, tinha financiado uma série de caluniosas gravuras populares [...], acompanhadas de versos lascivos que representavam Godoy e a sua mãe, e que repartiu entre a aristocracia e os seus parasitas. Também os clérigos e nobres tinham contribuído com versos satíricos (às vezes em latim), e muitas vezes ordinários, para esta campanha anti-Godoy.  

Fernando temia que a Rainha e Godoy estivessem planeando negar-lhe o trono aquando da morte do seu pai, que nos últimos tempos parecia iminente; na Corte corriam estes rumores e inclusive o de que Godoy podia ser nomeado regente. Por sua parte, Godoy temia, e com razão, que quando Fernando acedesse ao trono privar-lhe-ia do seu poder supremo. 

Se o assunto tivesse permanecido a este nível pessoal, nada tinha sucedido. No entanto, alcançou grandes dimensões porque a facção cortesã anti-Godoy encontrou em Fernando, como futuro Rei, o perfeito procurador para propiciar a queda do favorito. Esta facção, o partido fernandista, era partidária de restaurar a importância da nobreza no Governo do país, do qual os Borbons tinha-na excluído. Em relação aos assuntos exteriores, era puramente oportunista, oscilando no apoio à Inglaterra ou à França para se opor às predilecções de Godoy em cada momento. Deste modo, durante a passageira atracção do favorito pela aliança anti-napoleónica em 1806, os fernandistas optaram por Napoleão, e, por conseguinte, pelo matrimónio do viúvo Fernando com uma princesa Bonaparte. Tentando conseguir este propósito, Fernando escreveu uma servil carta a Napoleão em Outubro de 1807, na qual criticava abertamente a atitude do Governo espanhol em relação ao Imperador. Naquelas datas, tanto Godoy como os fernandistas cortejavam o Imperador. 

Entre os papéis apreendidos nos aposentos de Fernando, havia um decreto, com a data em branco, nomeando um seu partidário, o Duque del Infantado, de Grande de Espanha, Capitão-General de Castela e Comandante das forças para derrotar Godoy no caso de que o Rei morresse. Também se encontrou uma extensa carta escrita por Fernando e dirigida ao seu pai, na qual declarava que esse homem perverso é o que tendo já desprezado todo o respeito, aspira claramente a despojar-nos do Trono e a acabar com todos nós. Atacava também a moral do favorito, acusando-lhe de bigamia, e fazia fincapé nos temores do Rei acerca da Revolução francesa. A missiva, escrita pelo seu ex-preceptor [Escoiquiz] e copiada pelo punho de Fernando, dizia uma coisa que era bem certa: que o respeito dos espanhóis pelo casal Real tinha-se esfriado, não pelas pessoas em si, mas sim pela dor que lhes causa verem elevado um monstro... 

Naqueles dias, a oposição a Godoy era praticamente universal. Para além dos fernandistas e da nobreza da Corte, que sempre tinha considerado o favorito real como um adventício, uniram-se-lhes os oligarcas regionais, que estavam incomodados pelas tentativas de Godoy em aumentar o controlo central das suas despesas; o clero, que se opunha à venda das propriedades da Igreja; os comerciantes e fabricantes, que se viam na ruína por causa da sua política exterior; sectores de profissionais liberais, que experimentavam no seu corpo as nomeações arbitrárias de membros da sua família, aduladores e mentirosos, para cargos por ele acariciados, às vezes acompanhados pela sua própria deslocação a regiões longínquas; sectores de literatos ilustrados que abominavam em privado o despotismo; e as classes inferiores em geral, que sofriam a descida dos salários e o aumento dos preços, e que estavam escandalizadas pela relaxação moral de Godoy. 

Uma semana depois da sua prisão, Fernando fez uma confissão completa, delatando todo os seus cúmplices e admitindo ter mantido correspondência directa com Napoleão e com o embaixador francês. Depois de ter confessado, escreveu uma carta abjecta a seu pai, suplicando-lhe o perdão, que lhe foi concedido. O seu arrependimento, escreveu Fernando, ficava demonstrado pela sua denúncia dos outros conspiradores que tinham sido presos. Algures alguém se deu conta disto e escreveu: 
O segredo revelei 
honra e fama perdi 
ao vil traidor perdoei 
e meus amigos vendi 
perdão, papá, que pequei.

Mas esta voz perspicaz, que compreendeu que Fernando venderia quem fosse necessário para salvar a pele, foi uma nota discordante entre a grande maioria dos espanhóis que acreditavam que as tribulações do herdeiro do trono se deviam a uma conspiração maquinada por Godoy e pela Rainha. E quando o Conselho de Castela, constituído em qualidade de Tribunal Supremo, não achou provas de culpabilidade suficientes contra o acusado, todavia houve mais regozijo. A conspiração de Godoy tinha voltado-se contra ele. Apesar de Napoleão estar enojado porque tinham saído à luz as suas intrigas com Fernando, todo o país acreditava que o herdeiro do trono gozava agora da protecção do Imperador e, em consequência, a popularidade daquele viu-se acrescentada. Entretanto, Carlos IV tratava pela sua parte de obter o favor de Napoleão, que se ergueu em árbitro do pleito familiar e, por extensão, do destino da Espanha.  

Com posterioridade, muitos espanhóis acabaram vendo no processo do Escorial, chamado assim pelo palácio onde a família real residia naqueles momentos, o detonante da guerra napoleónica. 



A DESTITUIÇÃO DO FAVORITO REAL: O MOTIM DOS GRANDES

Em Aranjuez, onde estava residindo a Corte em Março de 1808, muita gente julgava que o lento avance de Murat em direcção à capital não tinha outro propósito senão pressionar a família real, e que com vários pretextos ia retardando a sua vinda, com o fim de conseguir que a Real família partisse como a de Portugal, como escreveu então o arcebispo Félix Amat, confessor do Rei e membro do Conselho de Sua Majestade. 

Não obstante, as suposições dos cortesãos espanhóis eram incorrectas. Esta opção já não figurava entre as alternativas baralhadas por Napoleão, dado que numa data tão antecipada como o dia 21 de Fevereiro, tinha enviado ordens urgentes ao seu Almirante da frota retida em Cádis pela marinha britânica desde Trafalgar, três anos antes, para que não permitisse a saída do porto de nenhum barco espanhol. Foi justamente um dia depois de ter nomeado Murat Tenente-General e chefe de todas as forças francesas na Espanha. Com a eleição do seu exaltado e vaidoso cunhado, é provável que Napoleão tivesse em mente um marechal com suficiente ambição como que para impedir qualquer tentativa de fuga por parte da família real. 

Um dos enviados privados de Napoleão, o conde de Tournon, advertiu por duas vezes o seu senhor, durante o mês de Março, acerca da irritação dos espanhóis contra os franceses, e aconselhou-o a que não tomasse nenhuma decisão final sobre o destino do país até que tivesse julgado por si mesmo a situação. 

Os espanhóis têm um carácter nobre e generoso, mas tendem à ferocidade e não suportarão ser tratados como nação conquistada. Reduzidos ao desespero, serão capazes das maiores e mais valentes revoluções e dos mais violentos excessos... (Os espanhóis) fazem os mais calorosos votos para que o Imperador tenha por bem dar-lhes para Rainha uma Princesa do seu sangue... 

Inclusive Murat, que tinha enviado ofícios bastante optimistas acerca da entusiasta recepção durante a sua marcha, viu-se obrigado a reconhecer que a tomada da fortaleza de Pamplona tinha causado consternação geral e que podia desembocar num possível levantamento em Navarra. Mas enganou-se a si mesmo e por sua vez a Napoleão, quando lhe informou que as danças, os gritos de Viva Napoleão! sucedido de aldeia em aldeia, desde Irun até Vitória... a sua alegria era como um delírio... Em todas as partes esperavam Vossa Majestade, e com Vossa Majestade, a felicidade; a menos que ambos compreendessem que estas expressões de felicidade dependiam da destituição de Godoy por parte do Imperador e da garantia do apoio imperial e concessão duma esposa Bonaparte a Fernando. O objectivo de Napoleão era que os partidários daquele acreditassem firmemente em tudo isto e se alegrassem abertamente perante a sua perspectiva; também estes enganaram-se a si próprios e ao público. 
Quase completamente isolado, Godoy fez tudo o que estava à sua mão para convencer o Rei a pôr-se a salvo com a sua família fora do alcance imediato do exército francês, trasladando-se a Sevilha. A chegada a Aranjuez de Izquierdo, o agente privado do favorito em Paris, com um memorando imperial para o Rei, que continha uma série de meias verdades relativas aos motivos da intervenção militar de Napoleão na Espanha e exigências em relação à região situada a norte do Ebro, aparentemente acabou por reter a atenção do Rei. A 13 de Março aceitou a decisão de Godoy de partir. Entretanto, uma vintena de grandes de Espanha tinha sido convocada apressadamente em Madrid pelo conde de Teba (posteriormente do Montijo), que, disfarçado de lavrador, tinha cavalgado a toda a pressa desde a Andaluzia, a pedido do duque del Infantado, para tentar travar a todo o custo a fuga da família real. Tal como mais tarde escreveu um membro da Guarda Real que presenciou estes acontecimentos e os seguintes, os grandes
combinaram e comprometeram-se todos com as suas rendas e pessoas não só a impedir a saída dos Reis, mas também a aniquilar o traidor Godoy...


Apesar dos seus obstinados esforços, o plano de Godoy continuou de pé e passou a ser prioritário, devido à notícia de que duas das divisões de Murat avançavam a marchas forçadas em direcção a Madrid. Finalmente, fixou-se a data da partida: a noite de 17 de Março. [O conde de] Teba, agora em Aranjuez, conhecia a data tal como todos os palacianos. Também sabia como criar as condições para que os propósitos dos grandes se cumprissem.  
Teba, disfarçado, dirigiu-se a todas as povoações da comarca, fingindo ser uma vez de tal parte, e noutras vezes de outra, e que vinha pedir que os leais manchegos [naturais de La Mancha] o acompanhassem para impedir que os Reis fugissem e os deixassem desamparados; com estas proposições, trouxe consigo até os velhos, determinados a morrer antes de permitirem que Suas Majestades se fossem embora. 
Entretanto, como explicou o Guarda Real, aos grandes, que tinham previsto todos os pontos, nada se lhes escapava. Dos dois a três mil membros da criadagem do Palácio e funcionários menores e seus familiares, todos tinham um interesse pessoal em que o Rei permanecesse. Em muitos casos, deviam-se-lhes muitos meses de salário, e se a família real partia, esperariam muito tempo para recebê-los. 
Mas segundo palavras de um alto funcionário, testemunha ocular, eles e as suas famílias, que compunham uma boa parte dos quatro mil habitantes de Aranjuez, estavam também
alarmados como se inquietam os filhos ternos que temem a ausência do seu pai, (e) rondavam aquela noite, sem outras vistas senão as de obstruir os caminhos com as suas pessoas apinhadas sem armas, e abrandar o Rei com os seus gemidos e com as suas lágrimas... Era tão inocente o objectivo, que um criado pediu-me licença francamente para fazer o seu quarto de ronda, e concedi-a, porque declarou-me que se o Rei podia escapar clandestinamente, o povo podia pretender que não o abandonasse. 

Para evitar qualquer contratempo, Godoy tinha tido a precaução de ordenar à cavalaria e à Guarda Real que se deslocassem de Madrid para Aranjuez. Mas [o conde de] Teba, de volta a Aranjuez depois da sua missão pelas povoações, e outro grande, o marquês de Castelar, exigiram que os oficiais da guarda jurassem formalmente não obedecer a Godoy, e o prendessem. Esta tarefa não lhe resultou difícil porque ambos eram oficiais do exército de alta graduação, e, ademais, aqueles oficiais, todos eles nobres, não sentiam apego por Godoy por este ter permitido que os franceses se apoderassem das fortificações do norte, e eram contrários à fuga da família real. A partir da noite de 15 de Março, os membros da guarda, na realidade rompendo todos os vínculos de subordinação, começaram a vigiar o mais pequeno indício de fuga. No Palácio, a facção fernandista tinha um aliado muito poderoso, o ministro da Graça e da Justiça, o marquês de Caballero, talvez o pior personagem entre tantos maus que continha naquela hora a Corte de Espanha, tirano cruel como ninguém e adulador. Argumentou de forma convincente contra o plano de Godoy e despertou no Rei o temor de que poderia produzir-se uma insurreição e revolução se a família tentava fugir. No dia 16, o Rei tornou pública uma proclamação aos seus amados vassalos, na qual tal como um pai terno que vos amo, assegurava ao povo de Aranjuez e de Madrid que não tinha a menor intenção de abandoná-los, como a malícia os fez supor como necessário. Voltou a tranquilizar-lhes assegurando que os franceses vinham como aliados e amigos. 
De qualquer modo, o Rei tinha perdido a confiança do povo, e apesar da sua promessa, todos acreditavam que estava disposto a fugir. Esta era a impressão duma testemunha anónima de Madrid, possivelmente um comerciante, escrita durante as primeiras horas de 17 de Março. Não há dúvida que a suspeita popular acerca das intenções do Rei facilitou o recrutamento da população (as mulheres acompanhavam os homens) por parte da nobreza com propriedades em volta da capital para reforçar os que já se encontravam em Aranjuez. Com este propósito, o ouro fluía das mãos [do conde] de Teba, das de algum outro grande, e das dum confidente de D. António, o irmão do Rei, que apoiava o seu sobrinho Fernando. 
Outro personagem que se pôs a caminho da capital até Aranjuez, em carruagem, claro está, não a pé como as classes populares, foi o embaixador francês, François de Beauharnais, um fernandista cuja presença entre o povo disfarçado o bastante para não comprometer o seu carácter diplomático, mas não para não ser reconhecido, pôs de manifesto que a tentativa de impedir o plano de Godoy contava com a aprovação do Imperador. [O conde de] Teba, ainda no seu disfarce de lavrador, e conhecido como tio Pedro, actuava de cabecilha do povo nas suas rondas. 
A primeira insurreição anti-Godoy, à uma da manhã do dia 17 de Março, desencadeou-se acidentalmente, pelo som dum disparo de pistola, mas o terreno tinha sido previamente bem adubado. Por conseguinte, o motim foi na sua origem o tradicional tumulto do Antigo Regime, em que a nobreza ou os habitantes que ostentavam o poder fomentavam e utilizavam o descontentamento popular para desencadear um distúrbio contra as autoridades em seu próprio benefício. Não obstante, no levantamento de Aranjuez interveio também uma série de factores excepcionais que o dotaram com uma potência inusitada: a primeira intervenção directa do exército espanhol para influenciar os assuntos políticos ou de Estado, pois sem o apoio da Guarda Real o êxito da revolta teria sido duvidoso. A tudo isto há que acrescentar a unanimidade de propósito dos conspiradores, do povo e dos militares para impedir a fuga da família real e para derrubar o próprio chefe de Estado; a participação activa do povo foi crucial, dado que o que mais temia o regime dos Borbons era uma revolta popular. Outro factor nada desprezível foi a crise nacional em que se produziu o motim e o lugar onde aconteceu: no Palácio Real, sede do poder absolutista.

O som do disparo de pistola electrificou a noite, e um clarim militar deu o alarme. De repente estalou a confusão, tudo eram vozes e alarmes. Os soldados, o povo e os conspiradores corriam e gritavam Viva o Rei e morra o tirano!. Os amotinados agitavam archotes na escuridão. O tio Pedro, a cavalo, conduziu um grupo de insurrectos até à casa de Godoy, e centenas de homens e mulheres seguiram-nos. A Guarda negou-se a disparar sobre a multidão. Derrubaram a porta e entraram arrasando como uma enorme onda. A esposa de Godoy, a condessa de Chinchón, que era sobrinha do casal Real, foi surpreendida em roupa interior enquanto se preparava para se deitar, sendo conduzida por uma horda de mulheres ao Palácio Real, onde esteve a salvo sem sofrer dano algum. Mas Godoy tinha desaparecido. Procuraram-no por todos os cantos e depois saquearam a casa, fizeram uma fogueira e queimaram muitos dos seus pertences, ainda que as testemunhas coincidam em geral que não se roubou nada. 
As cinco da manhã, um Rei aterrorizado relevava o desaparecido Godoy de todos os seus cargos oficiais. Ao saque da residência de Godoy seguiu-se outra altercação no interior do palácio, e fora, entre os amotinados: 
... houve um alvoroço no Palácio e o público pedia a sua cabeça, e o Príncipe (Fernando) teve de se assomar à varanda para lhes dizer que já havia decreto, e era o da exoneração dos empregos e seu retiro. Não contente o povo de Aranjuez e o de Madrid com este decreto, começou este a procurar a sua pessoa, e aqueles a dispor a conjuração. 
No entanto, parece que a destituição surtiu efeito, porque no dia 18 Aranjuez estava apaziguado. Mas, tal como escreveu António Alcalá Galiano, outro perspicaz observador, apesar das aclamações ao Rei,
... ninguém pensava em cumprir os seus mandamentos em relação à sorte do privado destituído, pois a Real vontade, solenemente declarada, era que saísse em paz, para o seu retiro, enquanto a ocupação dos oficiais, soldados e paisanos era procurá-lo para o prender.  
No Sábado, 19 de Março, de manhã cedo, terminava o primeiro acto do drama e começava o segundo quando uns soldados encontraram Godoy num desvão da sua própria casa.
Levou-o o povo como um judeu, golpeando-lhe e ferindo-lhe, pedindo aos gritos a sua morte todo o povo, dizendo ao mesmo tempo Viva o Rei, morra o traidor, e proclamando o Príncipe das Astúrias. 
... era um objecto digno de compaixão, ver um homem que na quarta-feira, dia 16, mandava sobre toda a monarquia, fazia-se-lhe guarda com bandeira e saía com batedores, e vê-lo hoje indefeso, preso e humilhado; e apesar de vê-lo tão abatido o povo queria beber-lhe o sangue. 
Sem dúvida alguma, aquela turba teria-o matado se não estivesse protegido pela cavalaria real, e se o Rei não tivesse mandado Fernando para que contivesse o povo. Ainda assim, teve sorte em chegar vivo ao quartel da guarda. Ali Fernando voltou a vê-lo, perdoou-lhe a vida e ordenou que lhe curassem as feridas, mas advertiu que seria julgado pelas leis da Espanha. O herdeiro ao trono conseguiu apaziguar a multidão que se tinha congregado em volta do quartel e que pedia a cabeça de Godoy, assegurando-lhes que o prisioneiro seria julgado. 
Quase imediatamente depois, produziu-se um daqueles erros fatais que puseram um fim no drama.
Mas qual foi a surpresa, quando naquele instante mandou o Rei que Godoy fosse num coche custodiado por duzentos carabineiros reais até ao castelo de Alhambra de Granada. O povo soube disto, e já tendo chegado o coche, desfizeram-no em muitos bocados, e comoveram-se, pedindo a sua vida; tal foi a confusão, que vendo que não se continha, o Rei abdicou a Coroa em seu filho: este foi a cavalo ao quartel da guarda, para dispersar o povo, e conseguiu-o aclamando-lhe todos. 
Não se tinha derramado nem uma só gota de sangue no motim, excepto as poucas feridas de Godoy; e o Rei não se viu ameaçado nem pelo povo nem pelos soldados, que não tinham deixado de gritar Viva o Rei!, e que só tinham desobedecido aos seus desejos no relativo a Godoy. Durante aqueles três difíceis dias, nem os seus conselheiros nem os seus ministros, para além de se oporem à sua fuga, sugeriam-lhe que desse um passo definitivo. Um Rei solto, decidido a conservar a coroa, não teria tido demasiado problemas para manter-se no poder. Mas Carlos IV estava velho e doente, e carecia de determinação: tinha visto cair na desgraça o homem de quem tinha dependido durante quase duas décadas, tinha visto como o exército se unia ao povo, tinha visto (e utilizado) a popularidade do seu filho e a sua influência sobre a multidão e sobretudo tinha visto o seu aliado Napoleão avançando cada vez mais depressa em direcção a Madrid. Segundo se disse, foi com prazer que assinou o decreto de abdicação; e poucas horas depois disse ao seu confessor, o arcebispo Amat:
Falemos claro: Bonaparte vem e não com boas vistas. Fernando tirará sempre melhor proveito do que eu para a nação: esta é a verdadeira causa da minha renúncia. 
Esta racionalização de homem de Estado, que não tinha demasiado fundamento objectivo, elevava um medo primitivo do povo ao grau de alta política europeia. Assim, quando Murat o exigiu, reclamou de novo a coroa ao seu filho, porque a sua abdicação tinha-lhe sido imposta. 
E que podemos dizer das classes populares que, pela primeira vez na história moderna da Espanha, tinham participado na destituição de um monarca no trono? Considerá-las unicamente como simples peões (comprados) da nobreza é supor que somente foram movidas a actuar pelo suborno, quando na realidade foi o dinheiro que lhes proporcionou os meios, isto é, a sua subsistência diária, para actuar livremente. Tinham as suas próprias razões para participar, como põem a manifesto os relatos das testemunhas. Alarmados como se inquietam os filhos ternos que temem a ausência do seu pai, se o Rei fugia ficariam abandonados e indefesos. Homens e mulheres, inclusive os mais velhos, estavam dispostos a lutar e a morrer para evitá-lo. Apesar da sua atitude condescendente e paternalista, como a de toda a elite em relação à população rural e às classes baixas urbanas, as testemunhas não estavam enganadas: o mundo daquelas pessoas continuava estruturado em torno a duas constantes: Monarquia e Igreja. Um mundo sem rei, tal como um mundo sem igreja, seria um mundo virado ao contrário, presa do caos e da conduta arbitrária em que os débeis e os pobres seriam as principais vítimas. O monarca era o pai protector dos seus vassalos, o pastor terreno do seu rebanho. Sem um monarca no seu posto, o povo sentia-se órfão, abandonado à sua sorte individual. O rei era a fonte natural de toda a justiça neste mundo, como Deus o era no outro; e se as injustiças da monarquia contradiziam por completo a justiça do monarca, então os culpados eram os ministros, administradores ou conselheiros do rei. Actuavam de forma arbitrária, não eram leais às ordens do rei. Este mistério estava profundamente arraigado na consciência colectiva da Velha Ordem, era parte dum largo processo de condicionamento cultural levado a cabo activamente por todas as instâncias do pedir para legitimar a ordem monárquica. 
Para além do plano de Godoy para privar-lhes do seu rei, tinham também outros muitos motivos de queixa mais directamente contra ele. A carestia da vida, o peso dos impostos (especialmente o que taxava o vinho), o recrutamento e os efeitos da guerra, a venda forçada do último recurso que tinham os pobres do mundo rural e urbano: as instituições de caridade da Igreja. Mas sobretudo, a sua vergonhosa e imoral conduta. Por mais imoral que fosse a sua própria conduta, esperavam que os seus governantes fossem impecavelmente morais. Ademais, Godoy fez muito pouco para ocultar as suas ânsias lascivas e de lucro; neste último aspecto, o casal Real satisfez-lhe com benesses; no primeiro, ao que parece ele próprio contribuiu para essa fama.  Para além da Rainha, tinha a sua esposa real, a sua atractiva amante andaluza, e uma infinidade de suplicantes femininas*. Imbuído constantemente dum fervor moral por parte da nobreza hostil, o povo em geral acabou por culpá-lo inclusive das catástrofes naturais: más colheitas, fomes, epidemias, terremotos... As classes populares estavam completamente contentes em participar na sua queda.
Dito isto, o profundo sentimento de abandono paternal por parte do monarca foi um dos principais motivos que moveu a população a intervir no motim de Aranjuez, e de novo em 1808 a levantar-se contra Napoleão, que sequestrou e destronou o seu novo rei Fernando.

Se alguma vez se tinha duvidado que o motim de Aranjuez foi tramado pela nobreza fernandista, os acontecimentos de Madrid confirmaram a natureza organizada da revolta. Logo que chegou à capital a notícia da captura de Godoy, na tarde do sábado 19 de Março, as casas da sua mãe, do seu irmão e da sua irmã foram saqueadas e queimadas, tal como as de uma série de ministros e ex-ministros. Levaram para a rua todos os seus móveis, carruagens, cavalos e mulas, prata e jóias, e incendiaram-nos ou mataram-nos. Mas, segundo Gil de Bernabé, a casa de Godoy foi respeitada porque na sua fachada tinha sido colocado o escudo das armas reais, em sinal de que tinha sido expropriada em nome do novo rei.  
Na noite de sábado, ainda em revolução, houve ordem, pois parece que levavam os amotinados quem os governasse: «Viva o Rei», diziam, e «Morra o traidor, o Chouriceiro**»,  e a quem não o dizia, atiravam-no ao chão, (exigindo) publicamente em alta voz a exterminação destas gentes; a noite passou-se bem pois não se meteram com ninguém.
No seu ódio cego ao favorito do Rei, uma vintena de grandes de Espanha tinha obtido um triunfo maior do que poderiam ter esperado. Esperavam extrair recompensas políticas, e a elevação do duque del Infantado à presidência do Conselho de Castela, feita por Fernando, anunciava o que parecia ser o começo do seu regresso ao poder e à influência política. Dois meses depois, tinham deitado tudo a perder num cego e humilhante erro de cálculo em relação às intenções de Napoleão. Mas durante este intervalo, corroeram ainda mais profundamente a Velha Ordem.


UM NOVO REI BORBÓN  

A notícia de que a Espanha tinha um novo rei chegou a Madrid durante as últimas horas da noite de 19 de Março, e o regozijo geral começou bem cedo na manhã seguinte. O porteiro da Academia de San Fernando encontrou à sua chegada uma enorme multidão, portando umas bandeiras de regimento e ao som de rufares de tambor, que se tinha congregado dentro e fora do edifício. Várias pessoas tinham partido a fechadura da biblioteca e desfeito em bocados o busto de Godoy que havia no interior.
Em seguida pediram um retrato do nosso príncipe o Rei, dizendo que sabiam que havia um na Academia e que se não se lhes entregasse pegariam fogo ao edifício. 
O porteiro informou-lhes que não havia nenhum retrato de Fernando na Academia. Vamos, disse um, mas entretanto outros tinham retirado da parede o retrato do rei. 
Procurei aproximar-me dizendo-lhes que não era o do Príncipe Nosso Senhor, mas sim o do Rei Carlos IV quando era jovem, ao que me responderam: ao rei queremos; e saíram com ele.  
Naquela mesma noite, o porteiro viu depois os fernandistas que saíam em procissão ondeando bandeiras e transportando o retrato real debaixo dum pálio. Deste modo, o seu novo e jovem rei, no qual o povo tinha depositado as suas esperanças, foi reconhecido popularmente e aclamado na imagem juvenil do seu rechaçado pai. Não importava: representava o rei 
Cenas de júbilo, retratos de Godoy queimados publicamente, bustos e placas derrubadas e destruídas repetiram-se por todo o país. O desmantelamento daqueles símbolos de poder, que grande parte da população tinha reverenciado no dia anterior como fonte de cargos públicos e honras, ia muitas vezes dirigido, directa ou indirectamente, às autoridades locais carentes de popularidade. Um caso particularmente apelativo foi o de Sanlúcar de Barrameda, onde os insurrectos exigiram a destituição e prisão do subdelegado das rendas do lugar e do intendente da província. [...] 
Em Valladolid, o conselho municipal mostrou-se contrário a entregar à população o retrato oficial de tamanho natural de Godoy que estava pendurado na Câmara, até que a ameaça dum levantamento fez-lhe mudar de opinião. Então, o povo arrastou o retrato até ao centro da praça grande, onde foi rasgado e os bocados queimados numa fogueira, maldizendo Godoy e acusando-lhe de traidor. Outros dirigiram-se ao Palácio Real e tiraram a carruagem triunfal, na qual originalmente tinha passeado o retrato pelas ruas, observados por uma multidão, entre eles um procurador da Chancelaria: 
Trazido pelo povo, foi conduzido com muito escárnio e ignomínia até à praça grande, e pelo caminho atiravam-lhe muitas pedras, talos de hortaliças e bolas de barro; puseram dentro dele um penico grande com porcaria, e aos lados dois vadios descamisados, sujos e embriagados, com escovas velhas nas mãos... presidindo um montado a cavalo que dizia Viva o Rei e morra o traidor! Chegaram ao sítio da forca, e ali o queimaram; recolheram as cinzas e fragmentos e atiraram-nas ao rio, dizendo que de homem tão infame não devia restar o menor vestígio. 

Esta invertida repetição carnavalesca da procissão inaugural do retrato reproduziu-se de certo modo em Salamanca. Depois de apedrejarem o brasão de Godoy, que o governador militar, o marquês de Zayas, tinha colocado com grande pompa e majestade dezoito meses atrás, os estudantes da Universidade de Salamanca obrigaram-no a chamar um canteiro para que fizesse desaparecer a imagem. Depois fizeram com que o governador, que aparentemente era o objectivo principal do ataque, repetisse os festejos que tinha organizado pelo motivo da inauguração do medalhão. 
Foi a maior afronta que se podia fazer a um homem, o fazer-lhe retirar o que ele mesmo tinha posto e com as mesmas festas que houve para pô-lo. Se bem que o geral regozijo que houve para retirá-lo, não houve para pô-lo... Ó inconstância das coisas humanas!

Isto foi o que escreveu um fidalgo pensionário, Joaquín Zaonero, que vivia na cidade.



Humilhado e injuriado, Godoy foi derrubado por ter perseguido a política mais correcta; até alguns dos seus mais acérrimos inimigos acabaram por o reconhecer. A viagem à Andaluzia, onde os exércitos espanhóis podiam reunir-se sem dificuldade, e onde o Rei podia explicar abertamente ao povo as intenções de Napoleão, era 
a única medida prudente nas circunstâncias; mas sendo proposta pelo Príncipe da Paz, não houve um só partidário. 
(A medida era) conveniente e acertada... D. Manuel Godoy, ao aconselhar a viajem, agiu atinadamente e a posterioridade não poderá nesta parte censurar a sua conduta. 
Estas foram as reflexões maduras e imediatas de dois anti-godoyistas, José de Arango e o conde de Toreno, respectivamente, que participaram no bando patriota durante a guerra. Ainda que a política exterior de Godoy tinha estado presidida tanto pela sua ambição pessoal como por razões de Estado, a sua política interior tinha seguido a linha dos reformistas ilustrados e, completando algumas das tarefas inacabadas daqueles, tinha iniciado outras. Durante o seu reinado [sic] fundou-se o Real Colégio de Medicina, o Observatório Astronómico, a Escola de Veterinária, estendeu-se ao campo a escola primária, e levou-se a cabo uma campanha nacional para vacinar as crianças contra a varíola. Muitas destas reformas careceram do tempo suficiente para chegarem a ser operativas. Em questões de censura, teve uma mente mais aberta, permitindo a primeira tradução ao espanhol da Riqueza das Nações de Adam Smith, que anteriormente tinha sido proibido pela Inquisição. [...]
[Ronald Fraser, To Die in Spain - Popular Resistence in the Peninsular War (trad. espanhola, La Maldita Guerra de España - Historia social de la guerra de la Independencia, 1808-1814, Barcelona, Ed. Crítica, 2006, p. 35-38). Todos os itálicos são citações de fontes utilizadas pelo autor. Não copiámos todas as notas do texto original, cuja leitura integral recomendamos vivamente aos interessados].
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Notas: 


* Segundo Fraser, "era do domínio público que para que um funcionário ou aspirante a um posto obtivesse o seu favor, este tinha que mandar a sua esposa ou filha a pedir audiência; em 1799 (quando Godoy esteve temporalmente afastado do poder), o Ministério da Justiça publicou uma circular proibindo que as filhas e esposas dos funcionários residissem na Corte para suplicar favores em nome dos seus pais e maridos".


** Chorizero, conforme o castelhano antigo original. Segundo Fraser, era a "alcunha popular de Godoy, por ser oriundo da Extremadura, famosa pelos seus enchidos". Deve ainda notar-se que os termos castelhanos choricero ou chorizo também têm o significado, em português, de «ladrão» ou «gatuno». 

Resposta de Junot à carta de Napoleão de 4 de Março (17 de Março de 1808)


Lisboa, 17 de Março de 1808

Sire
Recebi a carta de Vossa Majestade de 4 de Março e vou tentar responder de modo a satisfazer-vos em todos os pontos, mas não posso esperar consegui-lo se Vossa Majestade der crédito a informes de pessoas que nada viram e nãos meus, que se baseiam na verdade, no conhecimento do país e na firme resolução de servir Vossa Majestade com zelo e da maneira mais conforme com as suas intenções.
Portugal só está armado pelas milícias; ordenei a 11 de Janeiro* o licenciamento das milícias e a deposição das suas armas nos arsenais das províncias da Estremadura, da Beira e de Trás-os-Montes, nas quais comandava. Assim que assumi o comando de Portugal inteiro e o seu Governo, isto é, a 1 de Fevereiro, ordenei a 10 de Fevereiro** o licenciamento das milícias no resto do Reino e a deposição das armas nos arsenais. O desarmamento foi efectuado e as armas ficaram provisoriamente depositadas em poder dos diversos capitães ou Coronéis de milícia para depois ser feita a sua entrega nos arsenais. Grande parte delas foi já entregue, e é portanto erradamente que a Inglaterra supõe que eu não ousei tentar esse licenciamento, visto que já o ordenei e executei.
Quanto ao envio das tropas portuguesas para França, suplico a Vossa Majestade que recorde que até 1 de Fevereiro eu não tinha qualquer ordem para dar às tropas portuguesas que se encontravam nas províncias do Douro e Minho nem às do Alentejo e dos Algarves, que eram a maioria, e que, se não enviei as das províncias que comandava, foi porque, segundo o que Vossa Majestade me escrevera a 28 de Janeiro, estava certo de que elas me poderiam servir contra os espanhóis em caso de necessidade. Logo que assumi o comando de todo o Portugal, a 1 de Fevereiro, ordenei imediatamente a organização de todas as tropas portuguesas existentes nas províncias ocupadas pelos espanhóis; mas, Sire, encontrei-as num estado que fazia dó; havia um Regimento de infantaria em que só tinham ficado 40 homens, e a cavalaria chegara a tal estado que nos cem cavalos dela provenientes só encontrámos 30 capazes para o serviço. Essa cavalaria tinha passado dois meses sem receber uma única ração de aveia, a palha faltava-lhe muitas vezes e os soldados sem o soldo, pelo que houve uma grande deserção; nada disto me pode ser imputado, pois eu não comandava onde estavam os generais espanhóis; essas tropas receberam agora ordem para passar a Valladolid, onde lhes será dado novo destino; a ideia de ir fazer guerra aos espanhóis fá-los-á marchar; se eu lhes dissesse outra coisa, desertariam todos; em Valladolid, será fácil dirigi-los para mais longe; só posso mandá-los todos pelo caminho de Ciudad Rodrigo, Salamanca e Valladolid; não há outra estrada, a menos que os fizesse passar por Madrid, o que eu penso não ser intenção de Vossa Majestade. Enviei para essa estrada quem mandará preparar-lhes os mantimentos necessários; mas Vossa Majestade convencer-se-á das dificuldades que eu enfrento para essa marcha quando souber que na maior parte da região que essas tropas terão de percorrer é preciso levar a palha para a cavalaria em carroças puxadas por juntas de bois, com 80 a 100 rações cada uma, sem se poder fazer de outro modo, e que o mesmo é preciso fazer para o pão.
Vossa Majestade censura-me a precipitação com que publique o seu decreto sobre a contribuição de 100 milhões [de francos]; mas, Sire, eu já receava ter-me atrasado ao publicá-lo apenas a 1 de Fevereiro, pois Vossa Majestade tinha ficado esse prazo, depois do qual deviam ser sequestradas as propriedades dos particulares que acompanharam o príncipe, e porque tomei a iniciativa de prorrogá-lo até ao dia 15 por não ter podido estabelecer a contribuição mais cedo; eu devia esperar até estar senhor do país, mas nessa data já eu o estava, sem dúvida, pois devia contar com o exército espanhol para me secundar, se necessário, e porque já ocupávamos as praças-fortes e os pontos importantes de Portugal; agora, quando as duas divisões de Solano e de Taranco já saíram de Portugal e eu não posso fiar-me na de Carrafa, continuo senhor de Portugal, visto que ocupo Almeida desde 10 de Janeiro, Elvas, desde 12 desse mês e Setúbal e os fortes da margem esquerda do Tejo desde 4 de Março; a guarnição de Lagos e Faro chegará ali a 24 deste mês. Lisboa, com a sua cidadela e os fortes da direita, Peniche, etc., estão ocupados desde a minha entrada, e todo o Reino está tranquilo e submetido. 
Estando obrigado a ocupar muitos pontos importantes, sei que precisarei de mais tropas, e já as pedi a Vossa Majestade e ao ministro a fim de ter uma força importante reunida nas proximidades de Lisboa, pois este será sempre o ponto que interessa guardar, contra o país e contra um desembarque; penso, pois, que são precisos cerca de 12.000 homens além dos que já tenho, e com isso respondo por Portugal desde que tenhamos pão.
A contribuição causou, sem dúvida, grande impressão, mas, Sire, é por ser evidentemente muitíssimo forte; o receio geral é não poder pagá-la, o que é seguro; mas eles estão a fazer tudo quanto é possível para pagar o primeiro terço, coisa que não poderão fazer sem vender parte dos seus haveres e as suas jóias; as pratas das igrejas estão a entrar sem a mínima dificuldade, e sem esse contributo estaríamos sem dinheiro, pois as contribuições são muito pouca coisa e os rendimentos dos domínios não se encontram em dia. Se Vossa Majestade se dignasse a reduzir a contribuição a metade, faria um grande benefício a este país; essa metade entraria facilmente até ao fim do ano, o serviço do exército de Vossa Majestade estaria bem assegurado e o vosso nome seria bendito; perdoai-me repetir que é impossível cobrar esta contribuição na totalidade.
Deixei as praças de Portugal nas mãos dos portugueses durante meses inteiros; mas, Sire, o estado em que as minhas tropas chegaram a Lisboa não lhes permitia pôr-se a caminho antes de 20 dias; para chegar daqui a Almeida são precisos cerca de 15, e eu sabia que me deviam chegar tropas que passariam por essa praça; estava certo de que não encontrariam obstáculos para ali substituir a guarnição portuguesa e, com efeito, as tropas de Vossa Majestade estavam lá de guarnição a 10 de Janeiro. Enviei depois um batalhão suíço para render essa guarnição, que era apenas de destacamentos; há um comandante de praça francês. Elvas estava ocupada pelos espanhóis. Enviei para lá um batalhão suíço com um coronel francês por comandante. Se Vossa Majestade ordenar que o General Dupont me envie tropas, porei em Almeida um batalhão francês e mandarei regressar para aqui o batalhão suíço, e porei em Elvas um segundo batalhão francês porque dois batalhões estarão ali bem e não serão demais naquela fronteira.
Vossa Majestade censura-me também por ter concentrado em Lisboa todas as suas tropas; mas, Sire, em Lisboa há apenas um batalhão do 15.º Regimento, na cidadela, um batalhão de escol para o Quartel-General, e os 86.º e 70.º Regimentos de linha e a Cavalaria, menos um Regimento que está em Setúbal, e posso assegurar a Vossa Majestade que não é muito; apesar disso, vou retirar um Regimento, o 70.º, e um Regimento de Dragões, que mandarei acampar numa boa posição acima de Lisboa, com um Regimento da 2.ª Divisão e alguns espanhóis; digo acampar por não ser possível fazer barracas de tábuas por causa da escassez de madeira, do elevado preço das tábuas e do calor; as tendas serão, pois, no dizer dos médicos e das pessoas da terra, o que há de mais saudável; ainda não o pude fazer por causa da estação da chuva, que cai tão forte durante 3 meses que não há qualquer possibilidade de acampar; se o fizesse, teria mais de metade do meu exército no hospital. Vossa Majestade permitirá que lhe faça uma observação acerca da cidade de Lisboa no que respeita à sua guarnição: esta cidade é extremamente extensa e está dividida por vales e colinas; um ajuntamento rebelde é aqui mais difícil que noutros locais, e é mais fácil reprimi-lo tendo em diversos pontos aquartelamentos bem guardados dos quais possam rapidamente sair batalhões armados que, combinando os seus movimentos, depressa dispersarão qualquer espécie de ajuntamento. Estou persuadido de que Vossa Majestade, se conhecesse o país, compreenderia que mais vale ter as tropas em Lisboa, onde têm melhores alojamentos e melhor abrigo, que num acampamento no qual não teria nenhuma sombra por não haver árvores no campo, e onde o ardor do sol, que nos meses de Junho, Julho e Agosto é insuportável, até para os animais, causaria, decerto, muitas doenças; mas assim desejais, e sereis obedecido; o meu atraso no cumprimento desta ordem de Vossa Majestade sobre o acampamento resultou apenas da impossibilidade de fazer um abarracamento por falta de madeira e pelo meu receio de mandar acampar durante as chuvas, o que arruinaria a saúde do soldado, porque em dois meses e meio chovem aqui mais 3 polegadas que em Paris durante todo o ano. Durante os meses de Abril e Maio, as tropas estarão bem num acampamento, mas não poderão resistir ao sol depois dessa época.
Ao conceder uma garrafa de vinho a cada homem***, Vossa Majestade fez um grande bem a este exército durante o Inverno, para o recompor das suas fadigas; durante o Verão, contudo, seria uma grande desgraça manter essa ração de vinho. A força deste vinho com o calor já se faz sentir, e os médicos consideram-na extremamente perniciosa à medida que a estação avançar. Suplico a Vossa Majestade que me autorize a aproveitar a benfeitoria do vosso decreto, ordenarei que lhe sejam pagos dois soldos que serão empregados para completar as suas massas; o Tesouro Público ainda ganhará com isso cerca de 2 soldos por cada ração, e todos ficarão contentes. Não quis ordenar nada a este respeito sem receber ordem de Vossa Majestade, mas o assunto é muito importante e eu suplico a Vossa Majestade que se digne responder a isto.
Não falarei a Vossa Majestade do desgosto que sinto quando recebo uma carta como a que Vossa Majestade me deu a honra de escrever-me a 4 de Março; o meu desejo de bem vos servir é tão puro e a minha vontade e dedicação às vossas ordens são tão verdadeiras que creio merecer a vossa indulgência, se me engano, e a vossa confiança, quando vos falo da situação do país e do meu exército; tenho estado numa posição difícil e diz tudo quanto pude; que não daria eu para ter feito tudo quanto Vossa Majestade desejava? Mas, Sire, talvez outro não pudesse fazer melhor.

[Fonte: Junot, Diário da Invasão Francesa, Lisboa, Livros Horizonte, 2008, pp. 153-156 (n.º 101)].
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Notas:

* A referência a 11 de Janeiro deve tratar-se de alguma gralha, dado de que na verdade os referidos Regimentos tinham sido licenciados no dia 1 de Janeiro.


*** Conforme o art. 8.º do Título II do decreto de Napoleão de 23 de Dezembro de 1807.


Decreto de Junot permitindo a entrada das moedas espanholas e francesas para o pagamento da contribuição extraordinária de 40 milhões de cruzados (17 de Março de 1808)




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Reprodução das moedas francesas e espanholas aludidas no decreto (entre outras), com o respectivo valor em réis (inscritos entre ambas as faces de cada moeda):


Moedas francesas


Moedas espanholas



Novo edital da Real Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação sobre o pagamento do decreto de 1 de Fevereiro (17 de Março de 1808)



A Real Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação destes Reinos e seus domínios manda advertir a todas as pessoas por ela colectadas que, sendo escandalosa a falta de cumprimento aos avisos que se expediram para as respectivas entradas, de Segunda-feira em diante (21 do corrente) todas as pessoas anteriormente avisadas que não comparecerem, sofrerão execução fiscal, na forma anunciada no edital de 3 do corrente, que devia fazer desnecessário este, que por equidade se manda afixar a benefício dos que já estão em comisso. 
Lisboa, 17 de Março de 1808


[Fonte: Gazeta de Lisboa, n.º 12, 22 de Março de 1808].

Edital da Real Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação sobre o pagamento do decreto de 1 de Fevereiro (17 de Março de 1808)


A Real Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação destes Reinos e seus domínios, encarregada de fornecer, para a contribuição extraordinária de guerra, 6 milhões de cruzados, que devia derramar na forma do artigo 2.º do decreto do 1.º de Fevereiro; sendo a avaliação das fortunas de cada um sempre incerta, e tornando-se agora impossível pela complicação de tantas e tão extraordinárias causas que influíram no estado público, como no dos particulares; o Tribunal, desejando achar ao menos probabilidades que aproximem quanto for possível às regras da justiça operações difíceis que não podem deixar de ser arbitrárias, resolveu ouvir a praça, chamando diariamente os negociantes em turmas de dez e doze, para se taxarem reciprocamente, discutindo entre si as suas actuais circunstâncias e os fundamentos das reclamações que aparecem, as quais não são julgadas sem serem antes conferidas em duas e três sessões diferentes, o que dá um juízo de mais de quarenta vogais, em que entram três e quatro negociantes de probidade dos mais conhecedores da praça, e que, por se mostrarem mais adictos à causa pública, se fizeram ficar permanentes nas sessões, a fim de que, transmitindo aos outros as ideias do sistema que se adoptou, fizessem uniformes pela confrontação das respectivas taxas as últimas operações com as primeiras. E para generalizar e subdividir nesta repartição o encargo do resgate geral, se mandaram vir à colação, na forma do costume, os mercadores de loja aberta e oficiais mecânicos que, obtendo as competentes licenças para abrirem lojas de seus tráficos, debaixo dele mesmo negociem em grosso; os capitalistas que por si ou por interpostas pessoas fazem qualquer operação cambial de juros, riscos, descontos de letras ou de papel-moeda; os herdeiros de comerciantes que, entrando na fruição de grandes cabedais provenientes do comércio, sem lhes haverem concorrido os riscos, perdas e fadigas que dele são inseparáveis, continuaram algumas transacções comerciais, e devem por isso vir em auxílio do comércio, o qual, tendo feito a fortuna de que gozam, faz agora a desgraça dos que o estavam sustentando, fornecendo-lhe fundos que já estão perdidos ou muito longe de tornarem ao seu poder. 
Explicado assim o método que se tem seguido para evitar tropeços infalíveis no meio de trevas tão espessas, fica evidente que sendo o único objecto repartir os incómodos com aquela igualdade que está ao alcance da prudência humana, qualquer pessoa que em boa fé se mostrar lesada há de ser atendida nas suas representações (como o têm já sido as que pareceram dignas disso), ainda antes de se levarem à presença do chefe que nos governa, na forma do seu decreto de 9 do corrente; do mesmo modo que também será aumentada a imposição aos que forem convencidos de má fé nas suas pretensões. 
E para constar se mandaram afixar editais. 
Lisboa, 17 de Março de 1808. 

Francisco Soares de Araújo e Silva 


[Fonte: Gazeta de Lisboa, n.º 12, 22 de Março de 1808; Simão José da Luz Soriano, História da Guerra Civil e do Estabelecimento do Governo Parlamentar em Portugal. Compreendendo a História Diplomática, Militar e Política deste Reino, desde 1777 até 1834 – Segunda Época - Tomo V – Parte I, Lisboa, Imprensa Nacional, 1893, pp. 36-37].