domingo, 3 de janeiro de 2010

Pastoral do Bispo Inquisidor favorável aos franceses (22 de Dezembro de 1807)





No "dia 22 de Dezembro afixou-se nas igrejas de Lisboa uma Carta Pastoral do Bispo Inquisidor Geral, que sendo substanciada com o mesmo espírito ou como um eco da que expediu o Cardeal Patriarca, foi ainda mais mal recebida pelos habitantes da leal cidade de Lisboa, porque sobre a primeira ainda alguns diziam que o General Mr. Junot tinha iludido o velho Patriarca para que se esquecesse da constância dos Apóstolos, mas para a segunda não tinha precedido persuasão alguma, pois que até a visita que o Bispo Inquisidor fez ao General em Chefe foi em dia que ele não lhe pôde falar, e a segunda que repetiu entrou na chusma com outros que tinham esperado na sala vaga duas horas" [Domingos Alves Branco Muniz Barreto, Memoria dos Successos acontecidos na cidade de Lisboa, fls. 40-40v]


D. José Maria de Melo (1756-1818), filho de Francisco de Melo (Monteiro mor do Reino) e tio materno do futuro Marquês de Olhão, confessor da rainha D. Maria I e por esta nomeado de Bispo do Algarve em 1787, abandonara este último cargo apenas um ano depois, por ter sido elevado pela mesma monarca a Inquisidor Geral do Tribunal do Santo Ofício, instituição que tinha perdido muita da sua força durante o governo de Sebastião José de Carvalho e Melo. À frente dos destinos da diocese algarvia sucedeu-lhe D. Gomes de Avelar, mas não obstante, como se pode ver na seguinte Pastoral, D. José Francisco de Melo continuava a designar-se como “bispo titular do Algarve”. 
Para que se perceba outro dos motivos pelos quais esta Pastoral foi também mal recebida, é necessário compreender que o Bispo Inquisidor era pessoa muito mal afamada, sobretudo por correr a notícia que tinha sido ele o principal responsável pelo agravamento da saúde mental da rainha D. Maria I (ao ponto de lhe terem ordenado para que nunca mais se aproximasse da corte), como se refere no seguinte trecho: 

"Dominada a rainha a cada instante por escrúpulos religiosos, só deveu a temporária conservação do juízo aos cuidados verdadeiramente paternais do arcebispo de Tessalónica, seu confessor, homem probo, e, conquanto frade, mais votado ao soberano e à pátria do que aos interesses da superstição. A morte deste venerando prelado privou a desditosa rainha da sua direcção espiritual, sempre prudente e consoladora, despertando-se-lhe de novo com mais energia do que dantes, os vãos terrores que ele sempre com bom êxito combatera. Nestas circunstâncias, foi pela influência de muitos grandes do reino escolhido para substituir aquele digno confessor, D. José Maria de Melo, bispo do Algarve, que, além de fanático e ambicioso, sendo ademais o mais próximo parente de muitas famílias ligadas com as de Aveiro, Távora e Atouguia, que haviam subido ao cadafalso como cúmplices no atentado contra a vida d'el-rei D. José, tinha a peito fazer reabilitar a memória daqueles fidalgos, cuja punição os parentes acoimavam de injusta; e sobretudo obter a restituição de seus imensos bens, confiscados para a coroa. Com estas vistas, facilmente conseguiu perturbar a consciência de sua real penitente, a quem intimidou com as penas eternas, se não reparasse as pretendidas injustiças de seu pai. Desde então nunca mais a infeliz senhora teve tranquillidade de espírito, porque havendo consultado sobre este importante objecto os magistrados mais respeitáveis, e cujas luzes e inteireza lhe eram conhecidas, estes lhe declararam, da maneira mais formal e solene, que o acto que de sua majestade se exigia, era impraticável, injusto e ilegal, e mancharia a memória de um pai e soberano que só tinha punido grandes criminosos, cuja culpabilidade havia sido levada à evidência. Colocada na cruel alternativa — ou de trair os seus deveres como rainha, ou de desobedecer ao que se lhe anunciava como vontades do céu —, entregou-se esta virtuosa princesa à mais terrível desesperação; julgou-se condenada às penas eternas, e a cada instante parecia-lhe ver o inferno a abrir-se, como para a tragar. Ao mesmo tempo, contava com o seu triunfo aquele detestável fanático, filiado na Companhia de Jesus — digno émulo de Torquemada —; e sendo pouco depois nomeado Inquisidor Geral, tratou de mandar fazer imensos cárceres, que prestes esperava encher de vítimas que deviam expiar em autos-de-fé o crime de haver cultivado a razão e combatido as doutrinas da superstição, assim como o poder usurpado pelo sacerdócio: estava pois Portugal condenado a ver de novo acender as fogueiras da atroz inquisição, e a ser entregue à mercê de Jesuítas disfarçados, se a rainha houvera conservado um vislumbre de razão por alguns meses mais. Já no principio do seu reinado tinham aparecido num auto-de-fé a flor dos literatos e sábios portugueses, entre outros o celebre matemático José Anastácio da Cunha; e conquanto então nenhum fosse condenado à morte, era contudo já muito fazer reviver tão horrível espectáculo, e ser restituído aos ferozes Domínicos o poder de abafar as vozes da razão humana e de perseguir quem quer que da sua infalibilidade ousasse duvidar. Porém, o Inquisidor Geral, alvo da execração pública, tido e havido geralmente pelo assassino da rainha, precipitando-se em seus horríveis planos, teve ordem para nunca mais aparecer na corte; e só tempos depois — 1808 — é que tornou a figurar na cena politica, fazendo parte da chamada deputação da nobreza, que foi a França pedir um rei a Bonaparte, postergando os inauferíveis direitos da casa de Bragança, refugiada no Brasil" [S. L.: História de el-rei D. João VI, Primeiro rei constitucional de Portugal e do Brazil, em que se referem os principaes actos e occorrencias do seu governo, bem como algumas particularidades da sua vida privada, Lisboa, Typographia Universal, 1866, pp. 15-17].



Vejamos agora a sua pastoral de 22 de Dezembro de 1807 (que repete vários parágrafos da já citada Pastoral do Cardeal Patriarca), e note-se que, anos antes, este mesmo Bispo Inquisidor “queria que o episcopado português excomungasse em massa a França revolucionária” [Oliveira Martins, História de Portugal – Tomo II, Lisboa, Livraria Bertrand, 1882 (3.ª ed.), p. 228].


Pastoral do Bispo Inquisidor

D. José Maria de Melo, Bispo titular do Algarve, Inquisidor Geral neste Reino e seus domínios, do Conselho de Sua Majestade e seu confessor, etc. 

A todos os fiéis da Santa Igreja Lusitana, a cuja notícia vier esta nossa carta, saúde e paz, e a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, Nosso Salvador e Nosso Deus.

O lugar de Inquisidor Geral nestes Reinos, que sem méritos ocupamos; o carácter e ordem episcopal de que nos achamos revestidos; o zelo exemplar com que o eminentíssimo e por tantos títulos mui venerável cardeal patriarca acaba de promover tão eficazmente com a sua moderna carta pastoral o sossego, a paz, a união cristã particular e pública, sempre necessária e muito mais nas circunstâncias presentes: Tudo isto nos faz lembrar que também da nossa parte devíamos concorrer para um fim tão importante e tão indispensavelmente necessário, não só para o bem e felicidade temporal, mas também para a eterna, que é o que mais importa, dirigindo-nos aos fiéis todos da Santa Igreja Lusitana, e exortando-os também nós.
Aos desta cidade [Lisboa] e patriarcado nada temos que dizer senão rogar-lhes muito que atendam às zelosas vozes do seu tão venerável pai e pastor, como devemos sempre e em tudo, porém muito mais em matéria tão importante para o bem de todos, para o bem de cada um, para a felicidade temporal e para a felicidade eterna.
Ao resto dos fiéis desta Lusitana Igreja, que outra coisa também lhes poderemos lembrar mais própria do que o que às suas ovelhas ensina e encomenda aquele tão insigne prelado? Que bem sabem pela própria experiência a situação em que nos achamos; mas também que não ignoram o quanto a divina clemência no meio de tantas tribulações nos favorece: benditos sejam sempre os seus altíssimos juízos!

Que é muito necessário ser fiel aos imutáveis decretos da sua divina providência, e para o ser devemos primeiro que tudo, com coração contrito e humilhado, agradecer-lhe tantos e tão contínuos benefícios, que da sua liberal  mão temos recebido, sendo um deles a boa ordem e quietação com que neste reino tem sido recebido um grande exército, o qual, vindo em nosso socorro, nos dá bem fundadas esperanças de felicidade; que este benefício igualmente o devemos à actividade e boa direcção do General em Chefe que o comanda , cujas virtudes são por ele há muito conhecidas; que não temam, que vivam seguros em suas casas e fora delas; que se lembrem que este exército é de Sua Majestade o Imperador dos Franceses e Rei de Itália, Napoleão o Grande, que Deus tem destinado para amparar e proteger a religião e fazer a felicidade dos povos; que o sabem, que o mundo todo o sabe; que confiem com segurança inalterável neste homem prodigioso, desconhecido de todos os séculos; que ele derramará sobre nós a felicidade da paz, se respeitarem as suas determinações, e se se amarem todos mutuamente, nacionais e estrangeiros, com fraterna caridade; que deste modo a religião e os seus ministros serão sempre respeitados; não serão violadas as clausuras das esposas do Senhor; o povo todo será feliz, merecendo tão alta protecção; que o façam assim para cumprirem fielmente com o que Nosso Salvador Jesus Cristo nos recomenda; que vivam sujeitos aos que os governam, não só pelo respeito que se lhes deve, mas porque a própria consciência os obriga.
Eis aqui o que tantas vezes respeitável pastor desta cidade e diocese ensina e encomenda às suas ovelhas, para as unir em caridade cristã, para conseguirem o sossego e  a paz que todos necessitamos nas presentes circunstâncias. Eis aqui o que nós, querendo concorrer como tanto devemos para os mesmos fins, lembramos ao resto dos fiéis desta Igreja Lusitana.
E porquanto esta matéria é uma das de maior importância, mesmo para a conservação da pureza da nossa santa fé e religião, pois tanto concorrerá sempre para ela o sossego, a paz, a união particular e pública; não contentes nós com esta diligência que nós mesmos fazemos nesta nossa carta, encarregamos mui encarecidamente aos deputados do Conselho Geral, aos inquisidores e mais ministros do Santo Ofício, que com todo o desvelo, aplicação e eficácia, concorram com a admoestação, com a exortação, com a persuasão, assim como concorrem sem dúvida e hão de concorrer sempre com o exemplo, para que o mesmo sossego, paz e união não tenham quebra ou míngua alguma, mas antes aumento sólido e constante.
Encomendamos também, e muito especialmente a todos os [clérigos] regulares deste reino em geral e a cada um deles em particular, que além do exemplo que sem dúvida hão de dar, como aqueles que são não só ministros de um Deus de paz e lhe oferecem quotidianamente o sacrifício de propiciação e pacificação, mas seguidores por instituto e profissão da perfeição evangélica, se empenhem em não perder ocasião de lembrar aos fiéis o quanto é da sua obrigação como tais, o quanto lhes é proveitoso, o quanto lhes é necessário esse sossego, essa paz, essa união, em recomendar a qual não poderá haver nunca demasia. 
Na misericórdia infinita do nosso bom Deus esperamos que se digne de abençoar todas estas diligências, e então sem dúvida hão de produzir o bom efeito a que se encaminham.
E para que esta nossa carta chegue à notícia de todos, as mesas das inquisições deste reino a façam publicar e afixar nas igrejas dos seus distritos, na forma do costume. 
Dada em Lisboa, sob nosso sinal e selo do Conselho Geral do Santo Ofício, aos 22 dias do mês de Dezembro de 1807.
Manuel Correia da Fonseca, secretário do mesmo Conselho Geral, a fiz escrever e subscrevi.

José, Bispo Inquisidor Geral

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Fonte: 

- Domingos Alves Branco Muniz Barreto, Memoria dos Successos acontecidos na cidade de Lisboa, fls. 41-42v.

Carta de Napoleão a Junot (20 de Dezembro de 1807)

Embora se tenham referido já várias vezes algumas das dificuldades de Junot em governar Portugal, o maior obstáculo era talvez não só a falta de instruções de Napoleão mas, sobretudo, a grande demora em recebê-las. Com a pressa em mobilizar o Corpo de Observação da Gironda e expedi-lo para Portugal o mais rápido possível, a fim de aprisionar o príncipe regente e a frota naval portuguesa (o que aparentemente considerava como dados adquiridos), Napoleão esquecera-se de dizer a Junot o que fazer em caso de que tais objectivos não fossem cumpridos. Em várias cartas ao Imperador, Junot queixa-se precisamente disso, e não é por acaso que, aparte duma ou doutra extravagância, o General em Chefe deixou a Regência instituída por D. João governando, aproveitando-se dela para fazer cumprir as suas ordens. Junot sabia que melhores instruções por parte do Imperador poderiam tardar algumas semanas, nada restando-lhe a fazer senão ficar à espera. 
De facto, o Imperador encontrava-se em Milão quando recebeu as primeiras cartas de Junot desde que este entrara em Lisboa (algumas delas já aqui parcialmente transcritas). No dia 17 de Dezembro, numa carta ao seu irmão mais velho, José Bonaparte (então rei de Nápoles e futuramente de Espanha), Napoleão afirmava que as últimas notícias que tinha recebido de Portugal remontavam a 28 de Novembro (ou seja, dois dias antes de Junot alcançar Lisboa), embora no final da mesma carta adiantasse que:
 .



É bem possível que este post scriptum tivesse sido escrito logo que Napoleão recebeu as ditas cartas de Junot. É interessante notar-se que foi neste mesmo dia que recebeu estas notícas que Napoleão publicou o decreto de Milão [ver o texto original ou uma tradução portuguesa], o qual reforçava e agravava o decreto de Berlim, publicado um ano antes. O facto não é de estranhar, pois até à chegada de Junot, os portos portugueses eram praticamente os únicos portos continentais europeus onde as mercadorias inglesas eram desembarcadas sem embaraço. Com a chegada das tropas franco-espanholas à costa portuguesa, finalmente se podia agora cumprir rigorosamente o bloqueio continental. Isto em teoria, pois como já indicámos, grande parte da costa portuguesa encontrava-se nesta altura sem forças francesas ou espanholas a vigiá-la (e assim continuaria durante mais algum tempo).
Será somente no dia 20 de Dezembro que o Imperador escreve a sua resposta ao General em Chefe do Corpo de Observação da Gironda. Este último ainda tinha muito que esperar, pois com aproximadamente dois mil quilómetros de distância entre Lisboa e Milão e cerca de 20 dias para a correspondência alcançar o seu destinatário, a seguinte carta só chegaria a Lisboa no dia 8 de Janeiro de 1808.










Resumindo, Napoleão garantia a Junot que mais tropas seriam enviadas para Portugal, sendo por isso e, antes de mais, necessário desfazer-se do exército português, desarmando-o e licenciando quem o desejasse. Não obstante, seria também necessário afastar quatro bons regimentos do país, mandando-os para Bayonne. Este afastamento também devia ser aplicado aos dois parentes do príncipe regente que Junot tinha referido encontrarem-se em Lisboa, bem como cerca de sessenta pessoas de consideração ligadas à corte ou aos ingleses. Napoleão entendia que a Casa de Bragança tinha acabado de reinar em Portugal, mas para isso era necessário remover qualquer tipo de interferência que pudesse embaraçar os seus planos. Também era necessário cumprir-se o decreto de Milão (na carta referido como o "decreto de 17 de Dezembro") em Portugal. 
Outro aspecto interessante desta carta é a referência ao General Dupont, que se encontrava em Salamanca, o seu Quartel-General em Vitória, e a sua primeira Divisão em Badajoz. Dupont era o General em Chefe do nomeado Segundo Corpo de Observação da Gironda, força esta que ia entrando em Espanha sob o pretexto do previsto no artigo n.º 6 da Convenção anexa ao Tratado de Fontainebleau


A porta da Espanha estava aberta para a entrada das tropas francesas, e não tardaria muito para que os espanhóis se apercebessem da ratoeira que Napoleão lhes estava aprontando...




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Fonte das cartas: 

- Carta de Napoleão a José Bonaparte (17 Dez. 1807): Correspondance de Napoléon Ier – Tome XVI,  Paris, Imprimerie Impériale, 1864, pp. 234-235 (n.º 13402).

- Carta de Napoleão a Junot (20 Dez. 1807): Correspondance de Napoléon Ier – Tome XVI,  Paris, Imprimerie Impériale, 1864, pp. 242 - 244 (n.º 13406).