segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

A escassez de géneros provocada pela entrada das tropas invasoras e pelo bloqueio naval inglês


Conta Acúrsio das Neves, referindo-se ao primeiro mês da ocupação intrusa, que "ao sentimento das calamidades presentes, ajuntavam-se as ideias de um futuro espantoso. Os víveres, e especialmente o pão, escasseavam diariamente em Lisboa, e calculava-se que antes de dois ou três meses haveria uma falta absoluta deste último género, de que nenhum povo da terra faz maior uso que o de Portugal. Que seria então de uma cidade como Lisboa, povoada de duzentos e cinquenta mil habitantes?
Tanto se receou esta falta que, ainda antes de entrarem os franceses em Lisboa, tinha sido proibida por um edital do senado a factura de todo o género de bolos e biscoitos [Edital do senado da Câmara de 16 de Novembro de 1807]. Esperava-se, como consequência necessária do bloqueio do Tejo; e Junot tanto foi com estas ideias que, para prevenir a subsistência do seu exército, mandou vir trigo de Espanha, e fez também diligências para virem algumas carnes. Taranco solicitou iguais providências a favor da província de Entre-Douro e Minho" [José Accursio das NEVES, História Geral da Invasão dos Franceses em Portugal, e da Restauração deste Reino – Tomo I, 1809, Lisboa, pp. 263-264].

De facto, logo no primeiro dia em que chegou a Lisboa, Junot escrevera a Napoleão que, "neste momento, o grande embaraço e o que mais impressiona a opinião pública são os meios de subsistência. Suplico a Vossa Majestade que se digne pensar nisto por um momento; só de França podemos receber trigo, e os portos vão ser bloqueados [pelos ingleses] com exactidão; já falta a carne em Lisboa, e só a Galiza nos pode abastecer. Vou escrever para a Espanha a este respeito, e peço a Vossa Majestade que para lá envie as suas ordens" [Jean-Andoche JUNOT, "Carta n.º 67 (30 de Novembro de 1807)", in Diário da I Invasão Francesa, Lisboa, Livros Horizonte, 2008, p. 103]. No dia 7 de Dezembro, Junot voltava a comentar ao Imperador que "um dos assuntos que mais nos embaraçam é a administração dos mantimentos. Não encontramos nenhum empreiteiro que a queira fazer sem pedir preços exorbitantes, e por meio da administração ordinária há grandes dificuldades num país onde são poucos os recursos locais" [id., p. 115]. No dia 16, Junot volta a abordar o mesmo problema. Finalmente, e só para nos limitarmos ao mês de Dezembro, depois de ter indicado brevemente no dia 2 que os russos privavam os franceses de 8.000 rações diárias, a 21 do mesmo mês escreve Junot que "a esquadra russa, que continua em Lisboa, consome-nos cerca de 10.000 rações, o que muito nos prejudica na penúria de mantimentos em que nos encontramos" [id., p. 120].

As preocupações de Junot chegaram à Regência através do Comissário do Governo francês, Mr. Hermann, que representou aos ainda chamados Governadores do Reino a necessidade de se proverem meios e providências para a subsistência das tropas francesas. Cumpridores como sempre do que os invasores lhes rogavam, mandaram os ditos Governadores publicar os seguintes editais:


Edital 1.º

Il.mo e Ex.mo Sr. 

Os Governadores deste Reino determinam que o Conselho da Fazenda passe sem perda de tempo as ordens necessárias para que os lavradores e negociantes de grãos que forem devedores à Fazenda Real possam pagar também em grãos metade da sua dívida, se assim lhes convier, remetendo-se o pagamento que assim for feito à ordem da Junta de Munições de Boca para o Exército, pelos preços correntes. O que V. Ex.ª fará presente no mesmo Conselho para que assim se execute.
Deus Guarde a V.Ex.ª
Secretaria de Estado dos Negócios do Reino, em 21 de Dezembro de 1807.

João António Salter de Mendonça
Senhor Francisco António [sicHermann 

E para assim constar se afixou o presente edital.
Lisboa, 22 de Dezembro de 1807.

Francisco José de Horta Machado
José Roberto Vidal da Gama



Edital 2.º


Il.mo e Ex.mo Sr. 



Os Governadores deste Reino determinam que o Conselho da Fazenda passe sem perda de tempo as ordens necessárias para que, pagos os filhos da folha dos Almoxarifados da Coroa da metade das suas tenças em espécie, sendo paga a outra metade a dinheiro ou no ano seguinte em espécie, remetam a metade dos grãos que ficarem à disposição da Junta das Munições de Boca para o Exército pelos preços correntes e as outras metades se venderá ao povo. O que V. Ex.ª fará presente no mesmo Conselho para que assim se execute.
Deus Guarde a V.Ex.ª
Secretaria de Estado dos Negócios do Reino, em 21 de Dezembro de 1807.

E para assim constar se afixou o presente edital.
Lisboa, 22 de Dezembro de 1807.

Francisco José de Horta Machado
José Roberto Vidal da Gama




Licenciamento das tropas portuguesas

Neste mesmo dia 22 de Dezembro, e sob o pretexto da falta de mão da obra para agricultura, Junot começou a licenciar o exército português. Porém, talvez porque esperava melhores instruções de Napoleão, Junot não tornou público o decreto promulgado a este respeito, senão somente a seguinte nota:




*

A cidade de Abrantes foi onde se começou a sentir fortemente a escassez de víveres, o que não é de estranhar, pois foi o ponto de reunião de muitas tropas francesas vindas da fronteira espanhola, que aí tomaram as primeiras refeições inteiras pela primeira vez em muitas semanas. Os vereadores da Câmara Municipal dessa cidade, que já se tinham queixado no dia 9 de Dezembro sobre a escassez que já se começava a sentir, voltam a fazê-lo no dia 26, remetendo à Regência (muito provavelmente à atenção do Conde de Sampaio) o seguinte ofício:






Senhor

Os fiéis vassalos de Abrantes têm representado a V.ª Alteza na súplica de nove do corrente mês o quanto são aflitos e oprimidos pela afluência e exigências das tropas francesas e espanholas que têm transitado e residido nesta vila e seu termo desde o dia 23 de Novembro passado, e a cujas requisições temos satisfeito com quanto tínhamos, fazendo dispêndios enormes e superiores às nossas forças; suplicando em especial a intercessão do Ex.mo General Junot, a fim de não transitarem por aqui mais tropas e ser este Povo aliviado das que residem nele.
Ao presente estão esgotados os celeiros das igrejas e dos particulares, e apenas resta uma pequena porção de pão, que não chega para a sustentação deste povo pelo tempo de dois meses; e outra separada quantidade para a tropa, a qual veio pelas requisições feitas às vilas de ao redor, e apenas chegaria para trinta ou quarenta dias; e agora somente para quinze ou vinte por ter chegado anteontem[?] um batalhão do Regimento 2 dos suíços, que estava em Santarém. Há pouco vinho, ainda menos gados vacum, e nada de entaipa[?], cujas relações já foram remetidas a V.ª Alteza em ofício do Sr. Corregedor de Tomar.
Nestas circunstâncias, este povo e a mesma tropa estamos imediatos à desgraça e fome horrível; e portanto suplicamos a V.ª Alteza as providências tão indispensáveis; e visto que as vilas circunvizinhas são inexoráveis às nossas requisições, segundo as respostas que recebemos delas, é necessária [uma] ordem superior para que nas vilas do Alentejo e Beira Baixa cumpram com as nossas requisições dos géneros de primeira necessidade. Rogamos mais a V.ª Alteza a faculdade de retermos aqui os dinheiros públicos das décimas, sisas, subsídios, bulas, etc., e destes podermos tirar os necessários para suprir as requisições da mesma tropa.
Abrantes, em Mesa da Vereação de 26 de Dezembro de 1807.

O Juiz pela Ordem[?], André[?] de Moura Castanho
O Vereador Francisco José de Paiva
O Procurador do Concelho João Ruiz[?] Albardão
O Militar João da Costa e Menna Campos 
O Militar Luís Francisco de Matos 


[Fonte: Arquivo Histórico Militar, 1.ª div., 14.ª sec., cx. 3, doc. 3, fls. 2-4]


Da resposta a este só se conhece a seguinte nota não datada:

Responda-se à Câmara de Abrantes: que a Regência fará dar prontas providências quanto às subsistências da tropa linha[?] que ali se acha aquartelada; e quanto à faculdade que pedem para poderem ali reter os dinheiros das décimas, sisas, subsídios, bulas, etc, só lhes concede que possam simplesmente reter os sobejos das sisas


[Fonte: Arquivo Histórico Militar, 1.ª div., 14.ª sec., cx. 3, doc. 3, fl. 1]


Finalmente, e segundo Domingos Alves Branco Muniz Barreto [na sua Memoria dos Successos acontecidos na cidade de Lisboa, fl. 43], "como se tinham espalhado [por Lisboa] os clamores, principalmente dos lavradores da província da Beira, que pela passagem que por ela fez o Exército francês não lhes ficou gado para lavrar as terras, nem semente para lançar nelas, querendo por isso o General em Chefe providenciar a futura sementeira, escreveu ao Governador da Regência o que se manifesta do seguinte edital":


Decreto de Napoleão referente a uma contribuição extraordinária de guerra imposta a Portugal (23 de Dezembro de 1807)




No nosso Palácio Real de Milão, aos 23 de Dezembro de 1807. 

Napoleão, Imperador dos Franceses, Rei de Itália, Protector da Confederação do Reno, havemos decretado e decretamos o seguinte:

Título 1

 Art. I. Uma contribuição extraordinária de guerra de cem milhões de francos será imposta sobre o Reino de Portugal, para servir de resgate de todas as propriedades, debaixo de quaisquer denominações, que possam ser pertencentes a particulares. 
Art. II. Esta contribuição será repartida por províncias e cidades, segundo as posses de cada uma, pelos cuidados do General em Chefe do nosso exército; e tomar-se-ão as medidas necessárias para a sua pronta arrecadação.
Art. III. Todos os bens pertencentes à Rainha de Portugal, ao Príncipe Regente e aos Príncipes que desfrutam apanágios, serão sequestrados. 
Art. IV. Todos os bens dos fidalgos que acompanharam o Príncipe quando abandonou o país, que não se tiverem recolhido ao reino até ao dia 1 de Fevereiro de 1808, serão igualmente sequestrados.

[...]

Napoleão 



[Fonte: Joaquim José Pereira de Freitas, Biblioteca Histórica, Política e Diplomática da Nação Portuguesa - Tomo 1, Londres, Casa de Sustenance e Strecht, 1830, pp. 82-95].

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Nota: A totalidade deste decreto será recebida por Junot no dia 9 de Janeiro de 1808Por sua vez, os portugueses só conhecerão este fatídico excerto (com ligeiras alterações) quando Junot o decide publicar junto com a série de editais que fará publicar no dia 1 de Fevereiro de 1808, nomeadamente no decreto sobre a contribuição extraordinária. Posteriormente, e em consequência da deputação portuguesa enviada a Bayonne, esta indemnização será reduzida para 50 milhões de francos.