sexta-feira, 1 de abril de 2011

A ode Napoleão o Grande (1808) e outros poemas laudatórios de Luís Rafael Soyé (apontamento bio-bliográfico)





Segundo Inocêncio da Silva, Luís Rafael Soyé "nasceu em Madrid a 15 de Abril de 1760, filho de pais estrangeiros, sem contudo constar precisamente a que nação pertencessem. [...] Seja o que for, é certo que Soyé veio para Lisboa trazido ainda na primeira infância por seus pais, que em breve faleceram, correndo a sua educação, ao que posso julgar, por conta do morgado da Oliveira João de Saldanha Oliveira e Sousa, depois primeiro conde de Rio Maior, que parece haver sido o seu protector durante muitos anos. Consta que fizera os estudos de humanidades no seminário de Rilhafoles, dos padres da congregação de S. Vicente de Paulo, e que aprendera também as artes da pintura e gravura a buril, do que nos deixou documento em algumas estampas das suas Noites Josefinas.
Aos 29 de Outubro de 1777 professou a regra franciscana no convento de Nosso Senhor de Jesus da terceira Ordem da Penitência, e passando a seguir os estudos maiores na Universidade de Coimbra, aí fez alguns actos em teologia, com desembaraço e aceitação de seus mestres, que muito o distinguiram. Mas tenho para mim que não chegou a graduar-se naquela faculdade, embora pelo tempo adiante ele se inculcasse como «doutor» nos rostos de alguns opúsculos que em França deu à luz. Ou porque tivesse abraçado constragido a vida monástica, ou porque a sua vocação para ela se desvanecesse, é facto que resolveu voltar para o século, impetrando de Roma um breve pelo qual lhe foram anulados os votos claustrais, e passou ao estado de clérigo secular em 1791. Já anteriormente, a contar de 1786, havia publicado algumas obras poéticas, composições dos seus primeiros anos, as quais foram muito aplaudidas por uns e censuradas por outros, como acontece quase sempre. 
Pelos anos de 1802, saiu de Portugal para França, incumbido (segundo dizem) pelo ministro D. Rodrigo de Sousa Coutinho, de escolher e comprar livros para a Biblioteca Pública de Lisboa, então recentemente organizada. Terminada esta comissão, resolveu ficar em Paris, onde parece [que] se estabeleceu com loja de livreiro" [Fonte: Innocencio Francisco da Silva, Diccionario Bibliographico Portuguez - Tomo Quinto, Lisboa, Imprensa Nacional, 1860, p. 316].


Seis anos depois de se estabelecer em Paris, Soyé chamou a atenção do Imperador da França ao publicar uma ode intitulada Napoleão o Grande. Emperador dos Francezes, Rei D'Itália - Ode Pindarica, na qual se podia ler, entre outras passagens laudatórias:

D'Hércules, de Jasão, de Grécia e Roma
Que são os vãos triunfos,
Comparados c'os feitos espantosos,
Que dos Galos intrépidos à frente
Dá meu Herói à Fama:
Qual homem nunca obteve
Arrebato ser à glória tanta
[Fonte: Luis Rafael Soyé, Napoleão o Grande. Emperador dos Francezes, Rei D'Itália - Ode Pindarica, Paris, Imprensa de P. Didot Primo Genito, 1808, p. 37].



Esta ode saiu à estampa em edição bilingue, cuja tradução foi elaborada por Simon de Troyes, um médico, bibliotecário, escritor e membro da Academia dos Árcades de Roma (que curiosamente era pai do General Édouard-François Simon, que viria a ser ferido e capturado na batalha do Buçaco, a 27 de Setembro de 1810).



Frontispício da primeira e única edição da ode Napoleão o Grande de Luís Rafael Soyé.


O conteúdo desta ode, praticamente "inédita" até aos nossos dias, é resumido pelo próprio autor da seguinte maneira:






Ainda que no frontispício desta obra conste, como acima se pode ver, que a mesma podia ser comprada (para além de na própria cidade de Paris) em Lisboa, na casa de Borel, uma das várias famílias de livreiros franceses estabelecidas em Portugal desde a primeira metade do século XVIII, julgamos que este texto não chegou a ser posto à venda na capital portuguesa durante o tempo que Junot governou o país. De facto, se esta ode chegou a ser vendida em Portugal, é no mínimo bastante estranho que o Intendente da Polícia do Reino e redactor da Gazeta de Lisboa, o próprio Lagarde, não tenha aproveitado a ocasião para fazer no dito periódico qualquer tipo de alusão a este poema, que certamente mereceria o "brilhantismo" da sua pena, pois enquadrava-se completamente naquele tipo de discurso vanglorioso e elogiador de Napoleão, tão habitual nas páginas do referido órgão de imprensa, durante o tempo em que este esteve debaixo da alçada do Governo francês (veja-se a este respeito, entre muitos outros números, o de 22 de Abril de 1808). Por outro lado, a obra parece ter sido publicada por volta de início de Abril de 1808, pois uma das primeiras referências da publicação desta ode aparece estampada, precisamente a 18 de Abril, na secção das novidades bibliográficas do Journal Typographique et Bibliographique, publicado, como a ode, em Paris (11.º ano, n.º XVI, pp. 116-117). Logo em Maio surgem também referências a esta obra em pelo menos dois periódicos alemães (Politisches Journal nebst Anzeige von gelehrten und andern Sachen, Hamburg, n.º5, Mai 1808, p. 519; Morgenblatt für gebildete Stände, Tübingen, n.º 122, 21 Mai 1808, p. 488). Ora, é sabido que as comunicações marítimas entre Portugal e a França estavam sujeitas a um rigoroso bloqueio das frotas britânicas à costa portuguesa (o que impediria a distribuição dos livros por mar), enquanto que as comunicações terrestres começaram a ser embargadas e cortadas pelos rebeldes espanhóis a partir de Maio de 1808. Estes factos podem talvez ter contribuído (se não foram mesmo a causa) para que os exemplares da ode destinados à livraria de Borel nunca tivessem alcançado o seu destino. 
Seja como for, mesmo que alguns exemplares tenham realmente chegado a Lisboa ainda durante o tempo em que Junot governava o país, a sua venda teria sido obviamente censurada e proibida logo depois da retirada do exército francês, em Setembro de 1808 (como já referimos em relação ao poema O Hissope, de António Diniz da Cruz e Silva). Não será assim por acaso que o referido Inocêncio da Silva, apesar de afirmar (em 1860) que possuía um exemplar desta ode, anotava que a mesma era "opúsculo muito raro em Portugal" [Fonte: Innocencio Francisco da Silva, Diccionario Bibliographico Portuguez - Tomo Quinto, Lisboa, Imprensa Nacional, 1860, p. 318]. De facto, pode-se comprovar através duma consulta no catálogo da Porbase (Base Nacional de Dados Bibliográficos) que não existe qualquer exemplar desta ode de Luís Rafael Soyé nas bibliotecas públicas portuguesas (bem como dos outros dois poemas que se referirão de seguida). Contudo, os interessados poderão ter acesso a uma digitalização disponível on-line de um exemplar proveniente da Biblioteca Pública do Estado da Baviera.

A 20 de Março de 1811, nascia Napoléon François Joseph Charles Bonaparte (intitulado Príncipe Imperial e Rei de Itália à nascença, embora viesse a ficar mais conhecido como Napoleão II), filho do Imperador da França e da sua segunda esposa, Maria Luísa da Áustria. Luís Rafael Soyé não perdeu a oportunidade para compor uma nova homenagem, intitulada Hino ao Ser Supremo, por ocasião do feliz nascimento do Rei de Roma, traduzido para francês pelo mesmo Simon de Troyes com o título Hymne à l'Etre Suprême, à l'occasion de l'heureuse naissance du Roi de Rome (ed. bilingue, Paris, Impr. de Moreau, 1811, 7 pp.). 

Um ano depois, Soyé publicou ainda umas Profesias de Proteo no primeiro aniversario d'el Rey de Roma, traduzidas para francês por J. P. de Plombières (membro, como Soyé, do antigo Ateneu de Paris), com o título Prédictions de Protée à l'occasion du premier anniversaire de la naissance du Roi de Rome (Paris, D. Colas, 1812, 15 pp.). Tanto os versos originais como a sua tradução tiveram a honra de ser apresentados no Mercure de France, n.º DLXI, 18 Avril 1812, pp. 98-107.


Segundo Inocêncio da Silva, parece que todos estes versos "agradaram ao Imperador e foram por ele remunerados generosamente" [Fonte: Innocencio Francisco da Silva, Diccionario Bibliographico Portuguez - Tomo Quinto, Lisboa, Imprensa Nacional, 1860, p. 316].

Contudo, tudo se alteraria em breve: em Abril de 1814, com os exército aliados da sexta coligação a penetrar por vários pontos do Império francês, Napoleão vê-se obrigado a abdicar nos termos estipulados pelo tratado de Fontainebleau, pouco mais de um mês depois de ter assinado a paz no tratado de Paris. Menos de um ano depois, Napoleão atraiçoa os tratados que tinha assinado, deixando a ilha de Elba, onde estava exilado, para regressar a Paris em Março de 1815. A resposta dos aliados ao chamado Governo dos 100 dias não se fez esperar: começa então uma nova campanha que acaba com a definitiva derrota do Imperador da França a 18 de Junho do mesmo ano, na batalha de Waterloo. Um mês depois, Napoleão é levado a bordo dum navio britânico para a remota ilha de Santa Helena, onde viria a morrer cinco anos depois. 


Perante este cenário, Luís Rafael Soyé, possivelmente logo depois da paz geral e da restauração dos Bourbons, mandou publicar trinta e nove Oitavas oferecidas ao Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor D. Pedro de Sousa e Holstein, Conde de Palmela. D. Pedro de Sousa e Holstein era nada mais que o principal membro da embaixada de plenipotenciários portugueses que participara nas negociações do chamado Congresso de Viena (cuja acta final redefiniu as fronteiras dos países europeus que tinham sido alteradas directa ou indirectamente pelas guerras napoleónicas, prevendo-se, entre muitos outros pontos, a restituição de Olivença a Portugal, o que nunca se chegou a cumprir). Tentando, através da benevolência do conde, obter permissão régia para regressar a Portugal, Soyé, desiludido, anunciava então que


Com ele [=Napoleão] m'enganei, como iludidas
As colossais Coroas s'enganaram;
Na lista está dos monstros cujas vidas 
No começo esperanças derramaram;
Das convulsões cruentas, homicidas,
O remédio os Anciãos lhe confiaram;
Mas ébrio co'a ambição, que o cega e engoda,
Gargantua engolir quis a Europa toda.
[...]

Cansado já de tanto desvario,
Pelos dentes dos anos maltratado;
Quero tornar ao Tejo, augusto rio;
Qual torna à choça o lavrador cansado:
Da existência sentindo o débil fio
Desatar-se; qual cisne desasado
Quero aos meus em lugar de mortal pranto
Grato morrendo tributar meu canto.
[...]

Ilustre Conde, já que seu desvelo
À pátria conseguiu abandonadas
Ameias [=Olivença]; já que seu sapiente zelo
Intrigas destruiu já sancionadas:
De Vulcano co' rígido martelo
Quebre as duras cadeias, que obstinadas
Me separam da pátria, e grato Apolo
Por mim vos cantará de pólo a pólo.

Quando assanhada a destruição ruinosa
Armando o seu furor de fogo, e ferro;
De Atenas a Deidade pavorosa
Deixa os Liceus pelo deserto cerro:
Só a alma dum Mecenas vigorosa
Das Musas evitar pode o desterro:
Desde o Olimpo, Senhor, Jove potente
Os olhos em vós fita providente.
[Fonte: Luís Rafael Soyé, Oitavas oferecidas ao Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor D. Pedro de Sousa e Holstein, Conde de Palmela, Paris, Impr. de Lefebvre, 1815 (16 pp.), apud Andreia Amaral, «A Josefinada» de Manuel Rodrigues Maia: Um poema joco-sério sobre um caso de plágio no final de Setecentos, Porto, 2007, pp. 91-92 (Dissertação de Doutoramento em Literatura apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto)].


Apesar de ter ficado malquisto em Portugal pelos poemas que dedicou a Napoleão e ao seu filho, parece que o engano de Luís Rafael Soyé foi desculpado pelo Príncipe Regente, que inclusive lhe atribuiu uma renda de 240 contos de réis, segundo se percebe duma lista das pensões atribuídas por Sua Alteza Real até ao ano de 1819 [Fonte: A. J. de Mello Moraes, Corographia Historica, Chronographica, Genealogica, Nobiliaria e Politica do Imperio do Brasil - Tomo I. Segunda Parte, Rio de Janeiro, Typographia Brasileira, 1863, pp. 88-92, p.89].


Em data incerta, partiu para o Brasil, e segundo Inocêncio da Silva, "ali conseguiu enfim que por ele se interessassem algumas pessoas influentes, e obteve [a 23 de Novembro de 1820] a nomeação de Secretário da Academia das Belas Artes, lugar que pouco tempo desfrutou" [Fonte: Innocencio Francisco da Silva, Diccionario Bibliographico Portuguez - Tomo Quinto, Lisboa, Imprensa Nacional, 1860, p. 316]


No final dessa década, já após a independência do Brasil, Soyé volta a cair em desgraça, sendo condenado a três anos de degredo na ilha de Santa Catarina "por excessos de liberdade da imprensa cometidos contra a Câmara de Deputados". Depois de ter feito um requerimento ao Conselho de Estado, os membros deste, unanimemente, perdoaram-lhe  o degredo, a 11 de Abril de 1829, "em atenção à sua idade de mais de setenta anos, e outras circunstâncias que o tornavam digno da Imperial Comiseração [...], subsistindo todavia a multa pecuniária que devia satisfazer", na quantia de 400 mil réis [Fonte: Sessão 26.ª do Conselho de Estado (11 de Abril de 1829), in Segundo Livro de Atas do Conselho de Estado (1822-1834)]

Dois anos depois, Luís Rafael Soyé tem uma morte trágica: "atacado de paralisia [...], e fugindo-lhe de casa um preto, única pessoa que consigo tinha, permaneceu assim em total abandono durante alguns dias, até perecer miseravelmente de fome, como se reconheceu pela achada do cadáver já putrefacto, quando a falta de notícias suas despertou nos vizinhos a curiosidade de se informarem do acontecido!" [Fonte: Innocencio Francisco da Silva, Diccionario Bibliographico Portuguez - Tomo Quinto, Lisboa, Imprensa Nacional, 1860, p. 317]. Teixeira de Mello aclara que foi no dia 12 de Novembro de 1831 que o cadáver de Soyé foi encontrado, sendo no mesmo dia "sepultado no convento de Santo António, na corte [do Rio de Janeiro], na capela de Nossa Senhora da Conceição, na sepultura n.º 9" [Fonte: J. A. Teixeira de Mello, Ephemerides Nacionaes - Tomo II (Julho - Dezembro), Rio de Janeiro, Typographia da Gazeta de Noticias, 1881, p. 241]


Como escrevera o próprio Soyé quatro décadas antes:

Quanto é vário o Destino! Quão volúvel
Dos homens distribui as várias sortes!
A uns castiga com eternos loiros,
Premeia a outros com infaustas mortes.
[Fonte: Luís Rafael Soyé, Noites Jozephinas de Mirtilo sobre a Infausta Morte do Sereníssimo Senhor D. Joze Principe do Brazil, Lisboa, Regia Officina Typografica, 1790, p. 214].