segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Carta dos administradores do Museu de História Natural de Paris a Emmanuel Crétet, Ministro do Interior do Governo francês (8 de Janeiro de 1808)


Paris, 8 de Janeiro de 1808.


Monsenhor [Monseigneur]:

A proposta que Vossa Excelência nos faz, de acordo com as ordens de Sua Majestade Imperial e Real, de enviar um naturalista a Portugal, para aí recolher objectos e informações úteis à ciência e à nossa instituição, é [para] nós uma nova prova da atenção esclarecida do Governo por tudo o que possa ser vantajoso para o país.
Pensamos que esta medida seria tão útil para Portugal como para nós. Ao seleccionar o que que nos interessa, o comissário assegurará que o país conserve o resto, pois a experiência prova que, por não terem existido precauções semelhantes, já se perderam completamente colecções preciosas para todo o mundo.
É indubitável que o nosso estabelecimento pode aproveitar-se muito desta viagem. Sabemos que existem em Portugal muitos gabinetes públicos, ricos em produções dos três reinos [animal, vegetal e mineral] da Índia e do Brasil, dos quais estamos privados, devido à falta de relações com esses países longínquos. Inclusive Portugal produz muitos objectos que será interessante obter para a França, e, como tudo isto se deve aí achar em grande abundância, é possível que, com moderação,  enriqueceremos muito sem empobrecer sensivelmente o país.
Propomos que Vossa Excelência confie essa missão ao  senhor Geoffroy, um de nós, que está disposto a aceitá-la, fazendo-se acompanhar pelo senhor Delalande filho, um dos preparadores empregados nos nossos laboratórios, cujo auxílio será muito útil para as embalagens e outras operações manuais*. Também podereis autorizá-lo, em caso necessário, a chamar junto a si o senhor Tondi, um dos nossos assistentes de naturalista, que neste momento está de licença numa viagem pela Espanha, e que poderá ajudá-lo no que diga respeito à mineralogia**.
Em relação à parte económica desta viagem, poderia-se fazer o que se praticou nas primeiras campanhas da Holanda e da Itália. Os comissários eram enviados às custas do Ministério do Interior até ao país conquistado. Uma vez que aí chegavam, eram mantidos às custas do exército, que lhes fornecia também tudo o que era necessário para as suas operações e, sobretudo, para os seus transportes. Quando regressavam, as despesas de transporte eram novamente custeadas pelo Ministério do Interior, contando a partir da fronteira.
Não temos necessidade de dizer a Vossa Excelência que será necessário que todas estas disposições sejam fixadas e ordenadas antecipadamente, para que o comissário nunca possa ficar embaraçado. Em relação à sua pessoa, Vossa Excelência pode regular as suas despesas de viagem e de estadia de acordo com o que é habitual, e remunerá-lo conforme alguma graduação.
Vossa Excelência pode recordar-se que, no Egipto, os membros do Instituto estavam ao mesmo nível do posto de Coronel, e essa determinação poderia servir de regra para o futuro.
Seria bom fixar também a remuneração do seu assistente, adiantando-lhe uma parte dos fundos necessários. Vossa Excelência conhece bem demais o estado das nossas finanças para que tenhamos necessidade de vos dizer que não podemos suportar nenhuma dessas despesas.
Da nossa parte, vamos ocuparmo-nos de redigir, cada um na parte que lhe cabe, as instruções detalhadas, a fim de que o comissário não perca de vista nenhuma das vantagens que poderão ser obtidas pelas suas operações.
Temos a honra, etc.


[Fonte: E.-T. Hamy, "La mission de Geoffroy Saint-Hilaire en Espagne et en Portugal (1808). Histoire et documents", in Nouvelles Archives du Muséum d'Histoire Naturelle, Quatrième série - Tome dixième, Paris, Masson et C. Éditeurs, 1908, pp. 1-66, pp. 4-5].


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Notas:



Por "embalagens" [emballages, no original] e "outras operações manuais" entenda-se não tanto o encaixotamento mas sim os processos e técnicas de conservação (secagem de plantas, embalsamento de animais, etc.) necessários para a boa preservação do material que seria recolhidos em Portugal. O "preparador" Pierre Antoine Delalande (noutras versões grafado como de Lalande) era especialista nestas técnicas e trabalhava então como assistente de naturalista [aide-naturaliste] no Museu de História Natural de Paris. Já depois da abdicação de Napoleão, tornou-se bastante conhecido, em virtude de viagens que fez ao Brasil e à África, tendo regressado à França com vastas colecções de materiais de interesse científico. 

** O mineralogista napolitano Matteo Tondi, que desde 1799 estava exilado na França, por motivos políticos, exercia a função, como Lalande, de assistente de naturalista no Museu de História de Natural. Pouco antes da redacção desta carta, tinha recebido licença para viajar à Espanha. Como Geoffroy Saint-Hilaire não chegou a recorrer ao seu auxílio, Tondi manteve-se na Espanha, onde recolheu muito material mineralógico, mas ao ser surpreendido pela sublevação geral que começou a alastrar-se naquele país em Maio de 1808, viu-se forçado a regressar a Paris, despojado dessa ricas colecções. Escreveu a este propósito uma Viaggio in Spagna, que contudo permaneceu manuscrita, talvez devido ao fiasco desta viagem.

Ordens de Napoleão e respostas de Junot


Ao alcançar Lisboa no dia 30 de Novembro de 1807, Junot viu os principais objectivos da sua missão partirem para o Brasil. Desde então, ficou esperando por novas ordens de Napoleão, mas como estas nunca mais chegavam, Junot foi tentando administrar a parte que lhe correspondia do país como podia... Finalmente, mais de um mês depois de ocupada a capital portuguesa, chegam as primeiras ordens de Napoleão. Algumas das suas determinações já tinham, entretanto, sido realizadas por Junot. Não nos esqueçamos que existia um desfasamento de mais ou menos quarenta dias para esta troca de correspondência (vinte para chegar a correspondência de Milão, onde se encontrava o Imperador, e outros vinte para lhe chegarem as respostas remetidas de Lisboa), desfasamento esse que irá provocar, à medida que o tempo passa, grandes mal entendidos entre Junot e Napoleão...


Possível trajecto da correspondência entre Napoleão e Junot
(mais de dois mil quilómetros)



Vejamos então a primeira carta que Junot recebe da parte do Imperador, à meia-noite do dia 8 de Janeiro de 1808 [atrás foi publicado o texto original, agora publica-se uma tradução do mesmo]:



Ao General Junot, comandante do 1.º Corpo de Observação da Gironda

Milão, 20 de Dezembro de 1807.


Recebi as vossas cartas de 29 e 30 de Novembro, e de 1 e 2 de Dezembro. Dei ordem para que todos os destacamentos que pertencerem ao vosso exército continuem as suas movimentações por Bayonne, e que os três batalhões de corpos que vos pertencem, e que já chegaram a Bayonne, se ponham em marcha para se juntarem a vós. Não percais tempo a desfazer-vos do exército português. O que é fácil no primeiro mês torna-se muito difícil posteriormente. Depois de o ter feito prestar-vos juramento, fazei-o partir em batalhões para Bayonne; deixai retirar-se quem quiser; depois de apreendidas as armas, dai o licenciamento a todos os que o requerem, sem no entanto inundar o país de vagabundos; e enviai-me, como vos propus, quatro bons regimentos. Não há qualquer inconveniente em manter algumas companhias de artilharia portuguesa; mas é preciso misturá-las com oficiais franceses. Desarmai o melhor possível qualquer local que seja. Estabelecei um comandante de armas e uma polícia severa, e, sobretudo, desarmai todos: seja certo que, se não cumpris com grande rigor as instruções que vos dou, vos arrependerás.
Urge ocupar a praça-forte de Almeida e outras, a fim que a vossa comunicação seja bem estabelecida com o General Dupont, que já estabeleceu o seu quartel-general em Vitória e a sua primeira divisão em Badajoz. Ele tem ordens para se dirigir até vós se necessário, mas não empregueis tal medida a não ser que vos seja útil.
Fazei partir sem demoras os dois parentes do rei em direcção para Bordéus. É bem importante, nestes primeiros momentos, que não se mantenha em Lisboa nenhum príncipe da família. Fazei ainda partir umas sessenta pessoas das mais ligadas ao príncipe regente e aos ingleses, que se suspeitem serem os maiores opositores, e envie-os também para Bordéus.
A esperança que concebeis no comércio e na prosperidade é uma ilusão com a qual se amolece. Vereis a miséria, a fome, os ingleses desembarcando, todas as intrigas agitando o país, o próprio fantasma do príncipe regente lançado nas vossas costas. Que comércio fazer num país que está bloqueado e nas circunstâncias de guerra assim incertas como aquelas onde se encontra Portugal?
Que devereis, assim, sabiamente fazer?

1.º Remover do país os príncipes da Casa [de Bragança], os generais portugueses de terra ou de mar, e os ministros ou pessoas que tenham suficiente consideração para poderem servir de pontos de coesão [contra os franceses];
2.º Desarmar inteiramente o país e não deixar nele nenhuma de linha;
3.º Distribuir as vossas tropas em boas posições e reunidas; estando sãs e em segurança, cumprirão o objectivo. É este o meio de ser senhor de Portugal e de fazer o que quiser.

Dou ordens para que oficiais de artilharia e de engenharia vos sejam enviados.
Em relação à marinha, fazei aprontar a embarcação que está em construção [o navio Vasco da Gama]. Ordenai também a construção de outras, dos nossos modelos de 74 e de 80 [peças de artilharia]. 
Fazei preparar e armar as embarcações que restam, com os oficiais que vos enviei, com os artilheiros e as guarnições portuguesas, francesas, dinamarquesas e de todas as nações.
Envio-vos o meu decreto de 17 de Dezembro [Decreto de Milão], que vos fará conhecer a nossa nova situação com a Inglaterra. Será necessário que o apliqueis aí.
Para além de ordenardes o pagamento de todas as imposições, estabelecei também uma contribuição extraordinária, de maneira que não vos falte de nada. Escuso de vos recomendar para cuidardes das vossas tropas, porque é necessário que o vosso exército esteja numa situação tal que possa, pelo menos parcialmente, deslocar-se para qualquer lado, e [se necessário] dar meia volta ou mesmo uma volta inteira.
Chamareis a vós o General Dupont, se achardes necessário. Mesmo que não o achardes necessário, podereis sempre chamá-lo a Salamanca. Ele estará aí para socorrer qualquer ocorrência.
Suponho que me enviareis a cavalaria portuguesa a pé e que, com os seus cavalos e arneses, prepareis a vossa cavalaria. Contribuireis assim para com a cavalaria do General Dupont. Aproveitai o momento para sequestrar todas as propriedades inglesas, tais como casas, vinhas, lojas. Confiscai por todo o lado as mercadorias inglesas e apropriai-vos de tudo o que pertence ao comércio deles.
Suponho que não tardarei em ter um relatório detalhado sobre as rotas, as praças-fortes, e sobre o que me possa dar a conhecer o país.
Fazei remover em todo o lado as armas da Casa de Bragança, e explicai-vos dizendo que essa Casa cessou de reinar.


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[Decreto apenso:]



Palácio Real de Milão, 17 de Dezembro de 1807

Napoleão, Imperador dos Franceses, Rei da Itália, Protetor da Confederação do Reno:

Tendo em vista as disposições tomadas pelo governo britânico a 11 de Novembro passado, que sujeitam as embarcações das potências neutras, amigas e até aliadas da Inglaterra, não só a uma vistoria pelos cruzadores ingleses, mas ainda a uma paragem obrigatória na Inglaterra e a um imposto arbitrário de tanto por cento sobre sua carga, que deve ser regulado pela legislação inglesa; 
Considerando que, por estes actos, o governo inglês desnacionalizou as embarcações de todas as nações da Europa; que não está no poder de nenhum governo transigir, sob a sua independência e seus direitos, todos os soberanos da Europa, solidários com a soberania e independência da sua bandeira; que, se por uma fraqueza indesculpável, que seria uma mancha indelével aos olhos da posteridade, deixássemos infringir os princípios e consagrar pelo uso uma tal tirania, os ingleses aproveitariam-se para a estabelecer no direito, como se aproveitaram da tolerância dos governos para estabelecer o infame princípio de que a bandeira não protege as mercadorias, e para dar ao seu direito de bloqueio uma extensão arbitrária e atentatória à soberania de todos os estados; 
Havemos decretado e decretamos o seguinte:


Artigo 1.º Toda a embarcação, de qualquer nação que seja, que tenha sofrido a vistoria de um navio inglês, ou que se tenha sujeitado a uma viagem à Inglaterra, ou que tenha pago um imposto qualquer ao governo inglês, fica, por si só, declarada desnacionalizada, perdendo a garantia do seu pavilhão e tornando-se propriedade inglesa.
Art. 2.º As ditas embarcações, assim desnacionalizadas pelas medidas arbitrárias do governo inglês, entrando nos nossos portos ou nos dos nossos aliados, seja por que caíram em poder das nossas embarcações de guerra ou dos nossos corsários, são consideradas boas e legítimas presas.
Art. 3º. Declaramos as Ilhas Britânicas em estado de bloqueio por mar e por terra.
Toda a embarcação, de qualquer nação que seja, qualquer que seja a sua carga, expedida dos portos da Inglaterra, das colónias inglesas ou de países ocupados pelas tropas inglesas, que se dirija para a Inglaterra, para as colónias inglesas ou para países ocupados por tropas inglesas, é considerada como presa legitima, como transgressora do presente decreto; ela será apresada pelas nossas embarcações de guerra ou pelas dos nossos corsários, e entregue ao captor.
Art. 4.º Estas medidas, que não são mais do que uma justa reciprocidade ao sistema bárbaro adoptado pelo governo inglês, que iguala a sua legislação à de Alger, cessarão de ter efeito para todas as nações que sabiamente obriguem o governo inglês a respeitar as suas bandeiras. Elas continuarão a estar em vigor enquanto esse governo não regressar aos princípios dos direitos dos povos que regulam as relações dos estados civilizados nos períodos de guerra. As disposições do presente decreto serão revogadas e anuladas assim que o governo inglês retorne aos princípios do direito dos povos, que são também o da justiça e o da honra. 
Art. 5.º Todos os ministros ficam encarregados da execução do presente decreto, que será impresso no Bulletin des Lois.


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No dia seguinte, possivelmente logo pela manhã, Junot responde a Napoleão da seguinte forma: 



Lisboa, 9 de Janeiro de 1808


A Sua Majestade

Sire,
Recebi ontem pelo senhor ajudante de campo Battaglia a carta que V.M. [Vossa Majestade] me deu a honra de escrever-me de Milão a 20 de Dezembro. V.M. dignar-se-á recordar que eu só governo três províncias, a Beira, Trás-os-Montes e a Estremadura portuguesa, e que, por conseguinte, me são tirados 2/3 dos recursos do país, ao passo que conservo mais de 2/3 dos encargos por ter a cidade de Lisboa.
Mandei agora [na verdade, foi a 22 de Dezembro] dar ao exército português licenças e reformas para todos os soldados com mais de 8 anos ou menos de 6 meses de serviço ou que não estejam em condições de prestar serviço; o que ficar será organizado como V.M. deseja e enviado para França.
A cavalaria [portuguesa] remontará a do meu exército e a do General Dupont, se for possível; os Regimentos [portugueses] seguirão a pé para França; conservarei algumas companhias de artilharia que empregarei a bordo dos navios. As milícias estão licenciadas e vão ser desarmadas.
A praça de Almeida estará ocupada por uma guarnição francesa quando V.M. receber esta carta, pois há já 12 dias que foram tomadas disposições para isso; Abrantes e Santarém serão ocupadas por um batalhão cada uma, e igualmente Viseu, se valer a pena.
Se o General Dupont se encontrasse em Salamanca e Ciudad Rodrigo, estaria, seguramente, mais ao alcance para nos descobrir [=ajudar], se assim fosse preciso, mas não acredito nisso.
Não estava em Lisboa nenhum príncipe da família real além do Duque do Cadaval, que era já de outro ramo; o irmão dele, que ficou mas não goza de qualquer consideração, será apesar disso enviado para Bordéus, bem como o Marquês de Abrantes e uns cinquenta homens mais salientes das primeiras classes, conforme V.M. ordena.
Ao desarmar as milícias, desarmei o país; e afastarei as tropas de linha.
Mandei traçar entre Lisboa e Queluz um acampamento para 6000 homens que ali ficarão abarracados e bem tratados; a dificuldade dos mantimentos e dos transportes obriga-nos a calcular melhor as nossas posições; as mais importantes serão sempre as que defendem a costa e que manterão as nossas comunicações com o General Dupont. 
Para garantir a tranquilidade do interior, precisaria ainda de uns 50 gendarmes, aos quais reuniria alguns soldados de cavalaria, portugueses e franceses. A estrada de Coimbra já está guardada desta maneira, o que produziu o melhor efeito.
Não temos no nosso arsenal de marinha as madeiras necessárias para acabar o navio que está em construção, mas nada descuidarei para aumentar os nossos recursos de marinha.
Há já muito tempo que mandei sequestrar todas as mercadorias desta nação; mas, para me apoderar de tudo o que pertence à Coroa, precisava de ter poderes para sequestrar o que está nas províncias ocupadas pelas divisões espanholas, que perfaz mais de 2/3 desses bens.
Trabalha-se constantemente na planta e no levantamento dos terrenos que percorremos; mandei reunir, na medida do possível, as plantas das praças-fortes, dos fortes de Lisboa, da costa, das pontes e das estradas de Portugal; dentro em breve enviarei a V.M. tudo quanto puder recolher e que possa dar-lhe a conhecer este país.

De Vossa Majestade Imperial e Real,
Sire,

&c.

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[Fonte: Jean-Andoche JunotDiário da I Invasão Francesa, Lisboa, Livros Horizonte, 2008, pp. 126-128].







Apesar das dificuldades sentidas por Junot e explicadas na carta que se acabou de transcrever, no mesmo dia 9, ao meio-dia, o General em Chefe recebia uma nova carta de Napoleão, que impunha medidas ainda mais graves e pesadas sobre Portugal (o que, por consequência, piorava as condições para a estabilidade dos franceses em Portugal):





Milão, 23 de Dezembro de 1807.


Recebi as vossas cartas de 6 e de 7 de Dezembro. Um Ajudante de Campo do Vice-Rei [de Itália, Eugène de Beauharnais], que partiu há dois dias, leva-vos cartas minhas. Vejo com prazer que as minhas tropas ocuparam Peniche; mas vós não me indicais se a praça de Almeida e as outras praças do reino estão ocupadas pelas minhas tropas. Não tenho necessidade de vos reiterar a urgência de ocupar todas essas praças com guarnições francesas. 
Vejo que o caminho que seguistes [até Portugal] não é bom, mas isso não era previsível. 
Como os homens que não têm qualquer experiência de conquistas, tentais equilibrar-vos em vãs ilusões: todo o povo que está diante de vós é vosso inimigo. No momento em que o mar o permitir, vereis os ingleses sobre as vossas costas e as intrigas nas vossas províncias. Portanto, todos os meios que se mantenham em Portugal se voltarão contra vós; porque, enfim, a nação portuguesa é brava.  
Reitero-vos portanto que a minha intenção positiva é:

1.º que o país seja ocupado pelas minhas tropas; 
2.º que o país seja desarmado;
3.º que todas as tropas portuguesas se dirijam para a França, em colunas de 800 homens, licenciando todos os que não sirvam; não é que necessite ter muitos desses homens, mas preciso desembaraçar o país;
4.º que todos os príncipes, ministros e outros homens que se possam reunir [contra os franceses] sejam enviados para a França.

Vejo com pena que vós colocastes a primeira Divisão em Lisboa. Tendes homens suficientes para guardarem os fortes. Todas as tropas devem estar acampadas segundo a técnica do quadrado e estarem disponíveis ao primeiro aviso. Fizestes acampar a vossa segunda Divisão, que é a pior; é justamente o contrário [que deve ser feito]. Não é suficiente ter tropas que se possam mover à volta de Lisboa; é preciso que elas estejam disponíveis para se transportarem para todo o lado sem que ninguém se aperceba. Essa é a vantagem dos campos.
No projecto que elaborais sobre a nova organização das tropas portuguesas, vejo que as vossas companhias são inúteis. O que são 80 homens? Chegando à França, essas companhias estarão reduzidas a 50 homens e mal terão oficiais. É preferível que se enviem companhias maiores, com efectivos de 140 homens.
Deveis ter mais de 2.000 homens de cavalaria. Aprontai bem a vossa artilharia para que ela esteja completamente disponível para se levar para qualquer lado onde seja necessária. Repito-vos que não se mantenha a tropa portuguesa. A legião da polícia [portuguesa], para o policiamento dos locais, é muitíssimo forte; mas podeis misturar nela alguns franceses, a fim de serem instruídos sobre o que se passa. É necessário recolher todos os canhões e espingardas, seja dos arsenais, seja donde estiverem ao alcance do povo. 
Penso que é necessário armar uma pequena divisão num navio e nalgumas fragatas para obrigar o inimigo [inglês] a se afastar de Lisboa. Os oficiais da marinha e os canhoneiros franceses já vos devem ter chegado. Escrevendo à corte de Espanha para que vos envie todos os membros da marinha francesa que ali se encontram, obtereis brevemente cerca de 300 homens. De resto, tendes dinamarqueses, holandeses, espanhóis e até mesmo portugueses, e com eles ireis compor a vossa equipa, que acompanhareis duma guarnição francesa.
Não vejo inconveniente algum em que deixeis a Divisão espanhola [de Taranco] sobre o Douro; mas tende convosco alguns destacamentos da sua cavalaria e artilharia.
Não há qualquer dúvida que deveis confiscar todas as mercadorias inglesas, independentemente do que sejam. Tudo isto é mais fácil [de realizar] num primeiro momento do que posteriormente. Não procureis a popularidade em Lisboa, nem os meios de agradar o país; assim descurais os vossos objectivos, encorajais as pessoas e preparai-vos para os infortúnios. De momento, não se pode fazer nada que se traduza num estado de paz e comércio; os portugueses reclamarão, mas é preciso, antes de tudo, que o vosso exército não tenha falta de nada. 
Envio-vos um decreto que vos fará conhecer as diferentes disposições que ordenei.
Jamais pretendi que os vinte cêntimos para pagamento da massa ordinária [em Itália] devessem ter equivalência em pé de guerra. As tropas que estão em Itália recebem vinte cêntimos, pela razão que elas não são tratadas em pé de guerra; mas, em Portugal, é necessário que o soldado disponha de vinho e conhaque. Suponho que as minhas tropas tenham em Lisboa víveres de campanha e sejam muito bem nutridas. O vosso primeiro dever é que não lhes falte de nada. Desejo que possais pagar o soldo e as massas do 2.º Corpo da Gironda, que recebeu a ordem de ir para Valladolid, a fim de ser sustentado por vós.
O grande número de tropas que sou obrigado a deslocar provoca-me despesas enormes. Fixei a contribuição extraordinária em cem milhões; todos os locais devem pagar em função dos seus meios, e com isso não lhe faltará o que for necessário; mas, repeti-vos, é preciso enviar as tropas portuguesas [para a França] e desarmar o país.
Dou ordem a Paris para que vos sejam enviados auditores e algumas pessoas da administração que vos serão úteis. Verás que dei ordem ao ministro das finanças [Molien] para vos enviar agentes de alfândega, dos registos e dos correios, e empregados acostumados a imposições territoriais. O ministro da polícia enviar-vos-á também um agente para colocar à testa da vossa polícia [trata-se de Lagarde]. Penso que Molien vos enviará um pagador geral capaz. 




[Decreto incluso na carta:]

Palácio Real de Milão, 23 de Dezembro de 1807.

Napoleão, Imperador dos Franceses, Rei de Itália, etc., havemos decretado e decretamos o seguinte:

Título I

Artigo 1.º Uma contribuição extraordinária de Guerra de cem milhões de francos será imposta sobre o Reino de Portugal, para servir de resgate de todas as propriedades, sob quaisquer denominações que tenham, que possam ser pertencentes a particulares.
Art. 2.º. Esta contribuição será repartida por províncias e cidades, segundo as posses de cada uma, pelos cuidados do General em Chefe [Junot] do nosso exército; e tomar-se-ão as medidas necessárias para a sua pronta arrecadação.
Art. 3.º Todos os bens pertencentes à rainha de Portugal, ao príncipe regente e aos príncipes que desfrutem de apanágios, serão sequestrados. Todos os bens dos fidalgos que acompanharam o Príncipe quando este abandonou o país, e que não se tiverem recolhido ao reino até ao dia 1 de Fevereiro de 1808, serão igualmente sequestrados.
Art. 4.º Todos os rendimentos provenientes da contribuição extraordinária de guerra, da entrada nas caixas, dos bens sequestrados e das contribuições vulgares do país, serão vertidas na caixa do recebedor general nomeado pelo ministro do tesouro público.


Título II


Art. 5.º O Primeiro Corpo de Observação da Gironda tomará o nome de Exército de Portugal [Armée de Portugal].
Art. 6.º O soldo e as massas do Exército de Portugal, desde o 1.º de Novembro deste ano, serão pagos pela caixa do dito exército. O soldo e as massas do Segundo Corpo de Observação da Gironda serão pagos pela mesma caixa, a partir do 1.º de Dezembro do presente ano.
Art. 7.º Será dada em gratificação ao Exército de Portugal um fardamento completo para cada homem, uma blusa de trabalho, um par de polainas, uma camisa, um par de meias e dois pares de sapatos, sem que nenhum destes objectos sejam retirados da massa da roupa ou do calçado.
Art. 8.º A partir do 1.º de Dezembro do presente ano, será dada a cada homem do nosso Exército de Portugal uma garrafa de vinho, independentemente dos víveres de campanha destinados pelas nossas ordens.
Art. 9.º Os Generais e Oficiais de todos os graus receberão, além dos seus vencimentos, uma gratificação igual a metade dos mesmos vencimentos que lhes será paga todos os meses.


Título III

Art. 10.º O nosso ministro das finanças enviará a Lisboa, dentro do menor tempo possível, um agente superior da alfândega, um agente superior do registo, um dos correios e outro das contribuições, com o número de empregados necessários para os ajudarem nas suas operações.
Art. 11.º O nosso ministro da polícia enviará para Lisboa um homem inteligente para ficar à frente da polícia.
Art. 12.º Os nossos ministros da guerra, da administração da guerra, das finanças, do tesouro público e da polícia, ficam encarregados da execução do presente decreto, que não será impresso.


Napoleão









A resposta de Junot não tardou: 



Lisboa, 9 de Janeiro de 1808.

A Sua Majestade:

Recebi hoje ao meio-dia a carta com que V.M. [Vossa Majestade] me honrou, datada de 23 de Dezembro. O senhor ajudante de campo Battaglia, que chegou ontem à meia-noite, só me entregou uma carta de V.M., à qual vinha apenso o decreto [de Milão] relativo aos navios que tenham tocado em Inglaterra.
Agradeço a V.M. os bons conselhos que deseja dar-me, mas peço que acredite que eu não durmo e estou a vigiar o comportamento do país. As intenções de V.M. serão positivamente postas em execução; as praças serão ocupadas pelas vossas tropas, e Almeida deve estar agora a sê-lo; o país será desarmado; as tropas portuguesas serão enviadas para França em colunas de 800 homens, bem como todos os homens que possam servir de focos de adesão. 
Por causa da sua extensão, é muito mais difícil guardar a cidade de Lisboa que o que V.M. supõe. Os fortes não a dominam. Vou mandar fechar o castelo, que poderá conter um bom batalhão. As distâncias são enormes: do castelo de Lisboa ao forte de S. Julião vão cinco léguas francesas, e é indispensável ter guarnições em todos os fortes intermédios que defendem o porto. Mandei apressar a colocação dos morteiros que estão no arsenal: serão indispensáveis para a defesa da passagem. 
Não julgo possível mandar sair do porto de Lisboa um navio e algumas fragatas para obrigar o inimigo a afastar-se, pois temos constantemente a poucas léguas da barra uma esquadra que nunca tem menos de 8 navios, 2 fragatas e 1 brigue, e que já chegou a ter 14 navios. A aproximação da costa de Portugal é muito perigosa e, por pouco vento de oeste que haja, não se pode estacionar a menos de 10 ou 12 léguas no alto mar, por causa das correntes; a essa distância, a flotilha que saísse de Lisboa correria grande perigo. Os oficiais de marinha já aqui chegaram, mas os canhoneiros ainda não; de resto, não temos tripulações e é preciso tempo para as arranjar; nada descuidarei para isso, e vou escrever para Espanha para que me enviem os marinheiros franceses que lá se encontram; de resto, receberei todos os que se apresentarem, seja de que nação forem.
O meu exército recebe os mantimentos de campanha em Lisboa e em todo o Portugal; mandei pôr na ordem [do dia] o decreto pelo qual V.M. dá ao primeiro Corpo de Observação da Gironda o nome de Exército de Portugal e lhe concede uma garrafa de vinho e um fardamento completo por homem; nada faltará ao exército, mas os nossos recursos são muito menos consideráveis que o que se pode supor, e se eu ficar só com as 3 províncias [Estremadura, Beira e Trás-os-Montes] não haverá possibilidade de pagar o soldo e as massas ao segundo Corpo da Gironda nem cobrar a contribuição extraordinária de 100 milhões ordenada pelo decreto de 23 de Dezembro.
O Artigo 9.º do Título II diz: 
"Os Generais e Oficiais de todos os graus receberão, além dos seus vencimentos, uma gratificação igual a metade dos mesmos vencimentos que lhes será paga todos os meses".
Esta disposição não derroga, sem dúvida, as ordens que V.M. tinha dado para que o seu exército de Portugal recebesse o emolumento extraordinário, como o grande exército na Polónia, e esta nova gratificação deve, sem dúvida, ser independente do emolumento extraordinário. Tenho a honra de fazer esta observação a V.M. no receio de que seja feito alguma interpretação contrária aos interesses dos oficiais do meu exército, que tão bem merecem as bondades com que V.M. os honra.
V.M. julgará, sem dúvida, que para eu poder tomar as necessárias disposições me será indispensável cobrar a contribuição de 100 milhões ordenada pelo decreto de V.M. de 23 de Dezembro, tomar posse dos rendimentos dos bens da Coroa e das comendas, bem como dos fidalgos que seguiram com o Príncipe, e receber prontamente as suas ordens relativamente às províncias ocupadas pelos espanhóis, sem as quais não terei nem um terço das receitas de Portugal.
Se V.M. tivesse a bondade de, entre os empregados que ordenou que me fossem enviados, designar o senhor Permon para Intendente-Geral da Polícia de Portugal, isso seria uma graça muito feliz que me deixaria e da qual o bem público, assim como o particular serviço de V.M., recolheria benefícios; a polícia é uma coisa difícil aqui, pois em parte alguma houve já uma mais mal feita; só já não há assassínios nas ruas em pleno dia depois de ter sido estabelecida a Legião Real de Polícia, comandada pelo senhor de Novion, com que sempre estive muito contente no tempo da minha embaixada [em 1805] e desde que entrei em Lisboa.

De Vossa Majestade Imperial e Real,

Sire,
&c.


________________________________________
[Fonte: Jean-Andoche JunotDiário da I Invasão Francesa, Lisboa, Livros Horizonte, 2008, pp. 125-126].