segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Continuação da memória sobre a viagem do Núncio Apostólico Lorenzo Caleppi, desde a Inglaterra até à sua chegada ao Rio de Janeiro, a 8 de Setembro de 1808







Chegado à cidade de Plymouth [no dia 11 de Maio], Monsenhor Núncio foi aí acolhido do melhor modo pelo Major ou chefe da Polícia, e dali se dirigiu à vizinha cidade de Plymouth-Dock, para hospedar-se numa casa particular bastante decente, na qual noutros tempos tinha morado o Marquês de Niza, almirante português. Pouco depois da sua chegada, veio visitá-lo um sacerdote francês, Mr. Guilbert, que era pároco dos católicos naquele distrito, e o Almirante que o comandava, Mr. W. Young, mandou o seu capitão cumprimentá-lo e anunciar-lhe que o Almirante viria fazer-lhe uma visita, o que de facto fez, dando-lhe as maiores demonstrações de respeito, e convidando-o com insistência a ir na mesma manhã almoçar com algumas pessoas em sua casa. Nesse almoço, o Almirante convidou as pessoas presentes a beberem à saúde do Santo Padre, e Monsenhor Núncio, sensiblizado por essa especial atenção, correspondeu a esse gesto bebendo à saúde do Rei da Inglaterra e da Nação inglesa. Durante todo o tempo que permaneceu nessa cidade, Monsenhor Núncio recebeu as maiores demonstrações de acatamento, e as maiores atenções por parte de todas as pessoas de distinção, e particularmente da sua parte desse mesmo Almirante, que deu vários banquetes em sua honra, e no terceiro ou quarto dia depois da sua chegada a Plymouth foi à casa de Monsenhor Núncio, para declarar-lhe francamente que dali por diante todas as atenções que para com ele tivesse devia Monsenhor Núncio considerá-las a ele feitas por ordem do governo britânico, que, informado da sua chegada, acabava de mandar-lhe ordem expressa nesse sentido, por meio do telégrafo. Não omitiu Monsenhor Núncio, na manhã do dia 15, que era domingo, de ir à capela católica havia pouco construída pelo citado pároco, num lugar chamado Stonehouse, que se acha à igual distância das duas cidades de Plymouth e de Plymouth-Dock, e ali celebrou a Santa Missa, com assistência, além de católicos, de muitos protestantes, e ali assistiu depois, em hábito prelatício, à missa e ao sermão pronunciado pelo mesmo pároco. É digna de nota a observação que no mesmo dia fez à mesa o Almirante Young, já informado da missa celebrada por Monsenhor Núncio, que era ele o primeiro Núncio Pontifício que, depois das desgraças religiosas da Inglaterra, isto é, desde mais de dois séculos e meio, nela houvesse celebrado a Santa Missa, e que a havia celebrado precisamente no mesmo lugar em que os huguenotes foragidos da França tinham procurado asilo, portanto, no próprio sítio que foi o berço do protestantismo. No dia 15 desse mês de Maio, Monsenhor Núncio recebeu também uma especial distinção por parte do Lord Visconde de Strangford, que depois de ter estado em Lisboa como encarregado de negócios da Inglaterra, e que devia partir no dia seguinte para o Brasil por haver sido nomeado por Sua Majestade Britânica seu enviado extraordinário e ministro plenipotenciário junto ao Príncipe Regente, veio a cavalo a Plymouth-Dock, com dois adidos à Legação inglesa, de Forbay, distante cerca de cinquenta milhas, com o único fim de fazer a Monsenhor Núncio uma visita de cortesia. Tal, porém, foi a surpresa que causaram a Lord Strangford a magreza e o estado em que encontrou Monsenhor Núncio, em consequência dos incómodos que sofrera, como já dissemos, que o aconselhou a ficar algum tempo na Inglaterra para recuperar as forças; chegado ao Brasil, não fez dúvida em dizer que receava que Monsenhor Núncio não tivesse podido prosseguir sua viagem. A sua saúde, entretanto, foi visivelmente melhorando de dia a dia, o que lhe permitiu sem maior incómodo empreender no dia 20 de Maio a viagem por terra a Londres, a convite do Ministro Plenipotenciário do Príncipe Regente de Portugal, para celebrar na Capela Real de sua casa [um] solene Te Deum pela notícia que havia recebido nesses dias da feliz chegada da Família Real ao Brasil, e ainda para obter embarque conveniente para o Rio de Janeiro, esperançado também de que não resultasse aos católicos da Irlanda inútil a sua presença ali, pois tratava-se nessa ocasião, no Parlamento, da grande questão que lhes dizia respeito, da devolução dos seus privilégios e admissão a todos os empregos públicos, sem excepão, do mesmo modo que os outros súbditos ingleses protestantes. Mesmo antes de partir de Plymouth-Dock, Monsenhor Núncio recebeu do mesmo Almirante Young [uma] nova e inequívoca prova de sua estima e do seu afecto para com ele, pois não só por ocasião da visita de despedida chegou a prorromper em pranto, mas ainda, depois de tudo haver disposto para essa viagem até Londres, quis ele mesmo levá-lo à sua carruagem, dizendo ao mesmo tempo que essa atenção de sua parte obrigava também outros a prestarem-lhe todas as deferências no correr da viagem.
Seria longo enumerar com pormenores as homenagens, as provas de veneração e as atenções que Monsenhor Núncio recebeu em Londres (aonde chegou no dia 22 de Maio, e onde permaneceu até 30 de Junho), por parte dos Ministros de Sua Majestade Britânica, do corpo diplomático, dos senhores e damas da primeira sociedade,e de toda classe de pessoas, destacando-se entre outras o ministro plenipotenciário do Príncipe Regente de Portugal, o Sr. Cavaleiro D. Domingos de Sousa Coutinho. Bastará assinalar somente de modo particular que o Duque de Portland, chefe do ministério britânico, lhe ofereceu um lautíssimo banquete oficial, com convite prévio de vinte e tantos dias, que Sua Majestade Britância, por intermédio de Mr. Canning, seu alto Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, o presenteou com uma caixa com seu retrato rodeado de grandes brilhantes, a qual foi avaliada em cerca de 1.200 guinéus (ou sejam cinco mil e quatrocentos escudos romanos); e que o mesmo monarca se dignou de ordenar que se aprestasse um navio de guerra da sua Marinha Real, e que abastecido esse navio abundantemente com as mais delicadas provisões de boca, fosse posto à disposição de Monsenhor Núncio para transportá-lo ao Brasil. A sua estada em Londres e a alta estima que com seu procedimento e suas palavras tinha grangeado de todos os partidos, contribuiram muitíssimo para a mudança, salientada pelas próprias gazetas inglesas*, que se efectou relativamente à oposição que os católicos tinham encontrado até então, devida ao seu zelo e às esperanças concebidas pelos parlamentares amigos dos católicos a respeito dessas suas pretensões; e se a causa destes não foi no momento decidida em seu favor de modo absoluto, mas somente diferida, pôde-se, entretanto, conceber a mais fundada esperança de feliz êxito, por ocasião de ser proposta novamente mais tarde. Pondo-se nos melhores termos com Monsenhor Bispo de Cantuária, Vigário Apostólico de Londres, com Monsenhor Milner, Bispo de Castabula, Vigário Apostólico do distrito dos Middlands da Inglaterra (o qual com autorização apostólica se achava em Londres para tratar dos negócios do clero e dos católicos da Irlanda), teve a satisfação de ver por esse tempo impressa em Londres uma pastoral deles, que incitava os católicos seus subordinados a fazerem orações especiais pelo Sumo Pontífice, por motivo da perseguição que lhe fazia o Imperador dos franceses, Napoleão; esse exemplo aproveitou-o mais tarde Monsenhor Núncio para animar ainda mais o zelo dos bispos da América portuguesa, espanhola e setentrional e da Ásia a seguirem esse proceder**.
Não satisfeito com tudo isso, quis, embora lhe faltassem instruções, fazer uma tentativa para alcançar, no modo que lhe era possível, a segurança da pessoa de Sua Santidade e dos Cardeais (cuja infeliz situação era denunciada pelas gazetas públicas) e para beneficiar a Roma e ao Estado Pontifíco; e para esse fim expediu uma nota, dirigida a Mr. Canning, Secretário de Estado dos Negócios estrangeiros, a fim de induzir o governo britânico a agir nesse sentido, nas ocasiões que se apresentassem. Finalmente, após haver assistido, em 31 de Maio, missa solene cantada na Real Capela portuguesa, entoando o Te Deum a que acima aludimos; depois de haver procurado edificar os católicos, comparecendo a todas as festividades, e de celebrar a Santa Missa nessa mesma capela, onde administrou um dia o crisma; depois de ter visitado para consolação espiritual delas vários mosteiros de religiosas, e outros lugares de devoção existentes nos arredores de Londres, partiu dali para o porto de Portsmouth, onde já se achava pronto o navio de guerra de que falámos acima, chamado Stork, que devia levá-lo ao Brasil, e onde recebidas que foram ali muitas atenções de parte dos católicos e das principais autoridades inglesas, partiu ele no dia 5 de Julho para Plymouth, onde tinha ficado um fâmulo com alguns caixões. Aí chegámos no dia 7 desse mês, e depois de renovadas aí as mesmas homenagens que já haviam tributado anteriormente a Monsenhor Núncio, na noite de 10 do dito mês, após haver celebrado na manhã novamente a santa missa na capela católica de Stonehouse, de que acima falámos, tornou a embarcar, acompanhado pelo ministro de Portugal já nomeado, que lhe fez a gentileza de deixar Londres para encontrar-se com ele em Plymouth; e na manhã do seguinte, 11 do [mesmo] mês, prosseguiu a bordo do Stork a viagem em direcção à Ilha da Madeira.
Nada aconteceu que merecesse particular menção até chegar-se ao Funchal, Ilha da Madeira, o que se deu na manhã de 25 de Julho, festa de São João Apóstolo. Estava ancorada no porto uma fragata inglesa, e o capitão dela, tendo sabido pelos sinais que a bordo do mesmo navio estava o Núncio Apostólico, avisou disso na noite anterior ao governador e capitão general português da ilha, em consequência do que este na manhã seguinte mandou os seus três ajudantes de ordens, numa magnífica falua (a que chamam os portugueses escaler) a cumprimentá-lo em seu nome e para conduzi-lo à terra, assim como também vieram cumprimentá-lo três cónegos da Catedral, entre os quais o vigário geral, juntamente com o reitor do seminário, oferecendo-lhe para sua morada o palácio episcopal, de acordo com as ordens que por precaução havia Monsenhor Bispo mandado de Lisboa, de onde não tivera ainda podido partir. Ao aproximar-se Monsenhor Núncio do desembarcadouro, oito fortalezas da cidade (entre elas também a que estava ocupada pelas tropas inglesas, que em número de cerca de 2.000 homens ali se mantinham como auxiliares das tropas portuguesas) o saudaram com tiros de canhão, e chegando a esse lugar, aí encontrou uma liteira (chamada cadeirinha), mandada pelo próprio governador e levada por seus criados, uma vez que nessa ilha não se faz uso de carruagens, por motivo de sua configuração montanhosa. Monsenhor Núncio, depois de haver sido saudado sob o rufo dos tambores pelas tropas ali enfileiradas, vendo a enorme quantidade de povo que se apinhava e se prostrava à sua passagem para receber a sua benção, desceu da liteira e se dignou, apesar do calor de um sol muito ardente, de satisfazer o afecto do povo, pois todos, grandes e pequenos, sacerdotes e religiosos, queriam beijar a sua mão sagrada. Também veio ao seu encontro o deão da catedral, que governava nesse tempo a diocese por encargo de Monsenhor Bispo, apesar de, pela sua idade provecta e seus incómodos de saúde, não ter podido acompanhar as outras pessoas até a bordo do navio inglês. Dirigindo-se Monsenhor Núncio à igreja catedral, para ali dizer a santa missa, e passando na vizinhança da fortaleza em que reside o governador, quis proporcionar-lhe a surpresa de sua visita, vindo ao seu encontro o mesmo governador fora da porta da casa, e nas escadarias, com alguns fidalgos e seus ajudantes de ordens. À porta da catedral veio recebê-lo o capítulo com suas vestes, o qual o acompanhou à capela do Santíssimo Sacramento, onde o pároco celebrou a Santa Missa, ficando a igreja, apesar de bastante grande, com as suas três naves repletas de gente, que continuou sem cessar durante o tempo de sua permanência no Funchal, a acorrer para beijar-lhe a mão e receber sua benção. Não só o governador português, mas também o general das tropas inglesas, Mr. Beresford, os quais foram visitar Monsenhor Núncio no palácio episcopal, lhe ofereceram uma escolta de honra, que ele recusou aceitar, e tanto um, como outro, caprichavam em dar-lhe as maiores demonstrações de homenagem e de estima, ofertando-lhe também lautos jantares em sua honra.
Nas quatro noites da permanência de Monsenhor Núncio, houve iluminação na catedral e noutras igrejas, conventos e lugares de devoção da cidade, que Monsenhor Núncio foi em pessoa visitar, recomendando em toda parte, de modo particular, que dirigissem a Deus preces fervorosas pelo Santo Padre. Suas vestes, quando andava na cidade, foram sempre o hábito prelatício de viagem, recebendo em todas as ocasiões as honras da continência com rufos de tambores, não só da parte das tropas portuguesas, mas também por parte das tropas inglesas. Mas, em vez de proporcionarem a Monsenhor Núncio esses poucos dias algum repouso dos incómodos que sofrera na viagem por mar, e para preparar-se ele à viagem mais longa que lhe restava fazer, não podiam senão torná-los ainda mais penosos por motivo das contínuas visitas e da expedição de muitos requerimentos que lhe eram apresentados por gente que queria aproveitar a sua passagem por essa ilha. Também foi muito instado para conferir ordens sacras, dado o longo tempo decorrido desde que Monsenhor Bispo se ausentara da diocese; mas ele, apesar de possuir para isso o consentimento desse mesmo Bispo, pelas palavras que este lhe dirigira em Lisboa, dado o caso que ele tocasse na Madeira, não quis, em vista da escassez do tempo, senão dar na capela do palácio episcopal a tonsura e as ordens menores a muitos eclesiásticos e a alguns franciscanos, administrando também o crisma aos ordinandos, que não o haviam recebido. Finalmente, feitos pelo capitão da nau inglesa Stork os novos abastecimentos necessários, na tarde de 29 do mês de Julho, depois de ter celebrado a santa missa na igreja catedral, à qual assistiu o capítulo dela, tornou Monsenhor Núncio a embarcar pela tarde, ao repique dos sinos da cidade, as tropas formadas diante da mesma catedral, e com um séquito de grande número de eclesiásticos, religiosos e imenso concurso de povo, ao qual, após ter-se embarcado no escaler régio, juntamente com o governador das fortalezas, e com os ajudantes de ordens do governador da cidade, deu a sua bênção. Salvaram novamente em sua honra as fortalezas da cidade e a nau inglesa Stork, a qual na manhã seguinte, 30 do mês de Julho, retomou a sua viagem em direitura ao Brasil. Quarenta dias durou essa viagem, que, embora feliz, por não ter acontecido desgraça alguma durante o seu curso, e em vista do excelente tratamento, assim das atenções recebidas do capitão e de todos os oficiais do navio, transcorreu com os muitos incómodos e com vários perigos e receios que acompanham sempre tão longas travessias por mar.
No dia da festa da Natividade da Beatíssima Virgem, que com visível protecção nos tinha sempre ajudado de modo particular, entrámos no belíssimo porto do Rio de Janeiro, capital do Brasil; reportando-me a respeito de tudo quanto aconteceu depois do navio ter ancorado, ao Diário, que à parte escrevi para dar conta de tudo quanto em coisas políticas diz respeito a Monsenhor Núncio, a partir do mesmo dia 8 de Setembro de 1808, até que praza ao Altíssimo deva durar a minha permanência no Rio de Janeiro, e até que possa quem escreve estas linhas continuar esta obra, que ele julgou não desprovida de valor, para escrever a memória daquilo que pode referir-se à honra da Santa Sé e dos seus representantes.


Rio de Janeiro, 23 de Março de 1811.




[Fonte: Anais da Biblioteca Nacional - Vol. LXI, Rio de Janeiro, 1939, pp. 15-58].

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Notas: 

* Cf. "Political Events of the Week", in The National Register, n.º 21, May 22, 1808, pp. 331-332; "State of Public Affairs", in The Universal Magazine, n.º LIV - Vol. IX, May, 1808pp. 444-445; "Monthly Retrospect of Public Affair's; or, the Chrisian's Survey of the Political World", in The Monthly Repository of Theology and General Literature, n.º XXIX - Vol. III, May, 1808, p. 274 e in The Monthly Repository of Theology and General Literature, n.º XXX - Vol. III, June, 1808, p. 339 e ss; "Pope's Nuncio in London", in The Literary Panorama, July, 1808, p. 799.


** Cf. Carta do Núncio Apostólico aos Excellentíssimos e Reverendíssimos Prelados dos Estados Hespanhoes, com algumas peças relativas, entre ellas: Notificação que o SS. Padre mandou publicar no dia em que entrárão as Tropas francesas em Roma, Rio de Janeiro, Impressão Régia, 1808.

Carta de William Warre à sua mãe (8 de Agosto de 1808)



Campo de Lavos, perto da Figueira, 8 de Agosto de 1808.


Minha queridíssima Mãe:

Aproveito algum tempo livre para lhe escrever algumas linhas, apenas para lhe dizer que estou muito bem, embora bastante fatigado e queimado por estar constantemente exposto ao sol, devido às actividades que o meu conhecimento da língua [portuguesa] e da nossa situação tornam indispensáveis; contudo, sinto o prazer mais sincero por ser de qualquer modo útil ao meu país ou ao serviço, e por isso sinto-me recompensado por cada fadiga.
Desembarcámos no primeiro dia deste mês. O desembarque de todo o exército demorou três dias, e, se tivéssemos sido contrariados por alguma resistência na costa, estou seguro que nunca o conseguiríamos ter efectuado, tão grande é a arrebentação na costa e na barra. Contudo, graças a Deus, todo o exército desembarcou sem mais baixas que um ou dois cavalos, e ocupamos por agora uma posição neste lugar, mais precisamente com a aldeia [de Lavos] à nossa esquerda e o mar à direita, onde esperámos pela chegada do General Spencer e do seu corpo, que acabou por desembarcar ontem e hoje, penso que sem baixas, apesar da arrebentação estar muito forte.
Iremos avançar para atacar Monsieur Junot depois de amanhã; a guarda avançada sob o comando do General Fane partirá amanhã. Serão vários dias de marcha. A parte mais severa deste desígnio está nestas estradas infames e no sol abrasador, que, juntamente com o enorme trem de artilharia e da bagagem, irão obrigar-nos a mover-mo-nos muito devagar. Junot tem um total de cerca de 14.000 homens, mas não poderá resistir durante muito tempo, estando prestes a ser rodeado por nós, que totalizamos cerca de 13.000 a 15.000, vindos do norte, e por um corpo de cerca de 6.000 portugueses; e ainda, na margem norte do Tejo, pelo lado de Badajoz, por um corpo de 10.000 homens do exército do General Castaños na Espanha, que se ouve dizer que são os melhores camaradas possíveis, tal como o seu General, e certamente como a totalidade dos espanhóis em armas. Nada pode exceder a sua coragem e animosidade em relação aos franceses. Até agora a sua conduta tem sido bastante notável, e todas as bocas os elogiam. A Andaluzia está livre de franceses. Dupont e o seu exército capitularam para serem enviados para a França com as suas armas, concessão curiosa da parte dos espanhóis, visto estarem muito necessitados de armas. Três exércitos dos franceses foram aprisionados ou destruídos, e Castaños está a marchar rapidamente para Madrid, e todos esperam celebrar o seu sucesso. Entre os franceses que se renderam, 8.000 foram massacrados pelos paisanos espanhóis, tão grande é a sua animosidade. Todas estas informações são certas. Castaños tem 45.000 homens, entre os quais 4.000 de uma excelente cavalaria, e 23.000 de infantaria regular. Ele é um homem muito brando, mas sempre foi um excelente camarada; a sua conduta é a mais nobre, sendo louvado por todo o exército. Nomearam-no como Coronel ao serviço da Espanha, como prova da estima que sustenta. O exército português tem cerca de 28.000 homens em todo o reino, em todos os ramos [infantaria, cavalaria e artilharia], mas todos estão muito mal armados, e receio que não estejam tão entusiasmados (embora se vangloriem muito) como os seus vizinhos espanhóis. Assim, não acredites em nenhuma palavra dos jornais ingleses. Nunca li tantos disparates. 
O Estado-Maior do General Ferguson ocupa aqui a casa de um velho camarada, onde estamos bastante confortáveis, devido à atenção da senhora William Archer da Figueira, que nos enviou tudo o que podemos necessitar. De outra forma não sei o que deveríamos ter feito, estando a Figueira a quatro milhas e meia de distância, e sem encontramos nada para comer ou para beber (aparte das rações) mais perto. Levantamo-nos às 3 da manhã, e, depois de termos visitado os postos avançados, a linha ou os guardas, montados num cavalo ou numa mula durante 7 ou 8 horas por dia, estamos prontos para nos deitarmos 3 num pequeno quarto (cujo luxo não invejamos), às nove da noite, e dormir como se estivéssemos nas melhores camas do mundo; embora às vezes tenha de me levantar durante a noite, para traduzir ou para fazer alguma outra ninharia, porque à excepção de mim, ninguém fala português na Brigada; esta consiste agora nos Regimentos 66.º, 40.º, 71.º Highlanders, todos eles com experiência no serviço, e ansiosos por se encontrarem com estes franceses tão gabarolas.
Do vosso filho sempre mais afeiçoado,

William Warre

[P.S.] O General envia-lhe as melhores saudações.
Ele é o melhor homem que alguma vez conheci.


Carta do General Arthur Wellesley ao Bispo do Porto (8 de Agosto de 1808)



Campo perto de Lavos, 8 de Agosto de 1808.


Com a permissão de Vossa Senhoria:

Tenho a honra de informar a Vossa Senhoria que o Sr. Fernandes, da Figueira [da Foz], prestou-se de forma extremamente útil ao Exército britânico desde que este desembarcou neste país, e que é altamente essencial que o serviço público continue a aproveitar o seu empenho durante a marcha do Exército a partir daqui, dado que o seu conhecimento do terreno e dos seus habitantes facilitará muito os nossos esforços a respeito da obtenção de suprimentos e de meios de transporte. Sou, assim, induzido a requerer a Vossa Senhoria que queira estender o poder do Sr. Fernandes, nomeando-o, pro tempore, de Magistrado dos Transportes e Munições de Boca do Exército inglês*.
Sou, etc.

Arthur Wellesley.


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Nota: 

* Na carta original, escrita em inglês, este título foi grafado em castelhano: Magistrado de los Transportes y Municiones de Boca del Exercito Ingles.


Carta do General Arthur Wellesley ao General Harry Burrard, sobre o estado das circunstâncias em Espanha e Portugal (8 de Agosto de 1808)



Lavos, 8 de Agosto de 1808



Senhor:

Como recebi instruções da Secretaria de Estado que me informam que estais quase a chegar à costa de Portugal com um corpo de 10.000 homens, que tinha estado empregado nos últimos tempos no norte da Europa debaixo das ordens de Sir John Moore, apresento-vos agora aquelas informações que recebi relativas ao estado geral da guerra em Portugal e na Espanha, bem como o plano de operações que estou prestes a pôr em execução, em obediência às ordens da Secretaria de Estado*.
A força do inimigo actualmente em Portugal consiste, tanto quanto sou capaz de formar uma opinião, entre 16.000 a 18.000 homens, dos quais cerca de 500 estão no forte de Almeida, mais ou menos o mesmo número em Elvas, cerca de 600 ou 800 em Peniche, e 1.600 ou 1.800 na província do Alentejo, em Setúbal, etc.; o resto está disposto para a defesa de Lisboa, encontrando-se nos fortes de S. Julião e Cascais, nas baterias ao longo da costa até ao Cabo da Roca, e na velha cidadela de Lisboa, na qual o inimigo fez algumas obras nos últimos tempos.
Nos últimos tempos, o inimigo destacou, da força disponível para a defesa de Lisboa, um corpo de cerca de 2.000 homens sob as ordens do General Thomières, sobretudo, segundo julgo, para observar as minhas movimentações, corpo este que agora está em Alcobaça; e um outro corpo de 4.000 homens sob as ordens do General Loison atravessou o Tejo, no dia 26 do passado, para passar para o Alentejo; este destacamento tinha como objectivo dispersar os insurgentes portugueses naquela parte, forçar a retirada do corpo espanhol composto por cerca de 2.000 homens que tinha avançado desde a Extremadura até Évora, e por conseguinte conseguir incrementar a força destinada para a defesa de Lisboa com os corpos das tropas francesas que têm estado estacionados em Setúbal e na província do Alentejo. Em todo o caso, o corpo de Loison regressará a Lisboa, e os corpos franceses disponíveis para a defesa deste lugar deverão andar provavelmente à volta dos 14.000 homens, dos quais pelo menos 3.000 devem permanecer de guarnição e nos fortes na costa e no rio.
O exército francês na Andaluzia, comandado por Dupont, rendeu-se, no dia 20 do passado mês, ao exército espanhol comandado pelo General Castaños; e por isso não existem agora tropas francesas no sul da Espanha. 
O exército espanhol da Galiza e de Castela, no norte, foi posto em xeque em Rioseco, na província de Valladolid, no dia 14 de Julho, por um corpo francês supostamente debaixo do comando do General Bessières, que avançou de Burgos.
As tropas espanholas retiraram-se no dia 15 para Benavente, e julgo que houve desde então alguma contenda com os postos avançados naqueles arredores; mas não estou certo disto, nem tenho conhecimentos da posição do exército espanhol, ou do francês, desde o dia 14 de Julho. Depois de estardes pouco tempo neste país e observardes o grau de deficiência das informações autênticas, produzido pela circulação de notícias infundadas, não vos surpreendereis da minha falta de conhecimentos exactos sobre estes assuntos.
No entanto, é certo que nada de importante aconteceu naquela parte desde o dia 14 de Julho, e por esta circunstância concluo que o corpo do Marechal Bessières atacou o exército espanhol em Rioseco somente para proteger a marcha do Rei José Bonaparte para Madrid, onde chegou no dia 21 de Julho.
Para além da derrota na Andaluzia, é provável que tenhais ouvido dizer que o inimigo foi batido num ataque que fez em Zaragoza, em Aragão; também foi batido sobre a cidade de Valencia (diz-se que em ambas as acções perdeu bastantes homens); e relata-se que na Catalunha dois destacamentos franceses foram desbaratados, que o inimigo tinha perdido o forte de Figueras nos Pirenéus, e que Barcelona estava sitiada; não vi quaisquer notícias oficiais das últimas acções e operações mencionadas, mas todos acreditam no relato delas, que circula por todo o lado. Em todo o caso, sejam estas notícias fundadas ou não, é evidente que a insurreição contra os franceses é geral por toda Espanha; que grandes corpos de espanhóis estão em armas (entre outros, em particular, um exército de 20.000 homens, incluindo 4.000 de cavalaria, em Almaraz, sobre o Tejo, na Extremadura); e que os franceses não conseguem levar a cabo as suas operações através de pequenos corpos. Pela sua inacção e pelas desgraças que sofreram, imagino que não têm meios para reunir uma força suficientemente forte para contrariar o progresso da insurreição e os esforços dos insurgentes, bem como para sustentar os destacamentos dos seus diferentes corpos; ou que percebem que não podem levar a cabo as suas operações sem depósitos de abastecimentos suficientes para um exército tão grande quanto achassem necessário empregar.
Em relação a Portugal, todo o reino, exceptuando os arredores de Lisboa, está num estado de completa insurreição contra os franceses; contudo, os seus meios de defesa são menos poderosos do que os que têm os espanhóis. As suas tropas foram completamente dispersas, os seus oficiais foram para o Brasil, e os seus arsenais foram pilhados ou estão em poder do inimigo. Nas circunstâncias em que foi feita, a sua revolta é ainda mais admirável do que a da nação espanhola. 
Os portugueses devem ter, nas províncias setentrionais do reino, cerca de 10.000 homens em armas, dos quais 5.000 marcharão comigo em direcção a Lisboa; os restantes, juntamente com um destacamento de 1.500 homens que vieram da Galiza, estão ocupados em bloquear Almeida à distância e em proteger a cidade do Porto, que é presentemente a sede do Governo. 
A sul, a insurreição é geral por todo o Alentejo e Algarve, e a norte, em Entre-Douro-e-Minho, Trás-os-Montes e Beira; contudo, devido à falta de armas, o povo nada pode fazer contra o inimigo.
Depois de consultar Sir Charles Cotton, pareceu-nos a ambos que o ataque proposto sobre a baía de Cascais era impraticável, porque a baía é bem defendida pelo forte de Cascais e pelas outras obras construídas para sua defesa, e os navios de guerra não poderiam aproximar-se até uma distância suficiente para os fazer calar. O desembarque em Paço d'Arcos, no Tejo, não poderia ser efectuado sem calar o forte de S. Julião, mas aqueles que iriam executar essa operação acharam que isto seria impraticável. 
Existem pequenas baías a sul e a norte do cabo da Roca, que talvez pudessem permitir o desembarque das tropas; contudo, todas elas são defendidas por fortes que primeiro tinham que ser calados; são pouco amplas, e apenas poucos homens poderiam desembarcar de cada vez; há nelas uma arrebentação contínua que afecta de tal modo o desembarque que se duvidava que as tropas que chegassem primeiro à costa poderiam ser sustentadas a tempo pelas outras que se lhes seguissem; e inclusive se os cavalos para a artilharia e cavalaria, bem como os abastecimentos e provisões necessárias, conseguiriam mesmo desembarcar.
Estes inconvenientes relativos ao desembarque em qualquer uma das baías perto do cabo da Roca seriam agravados pela proximidade do inimigo em relação ao lugar do desembarque, e pelos poucos recursos do território onde as tropas deveriam desembarcar.
Por estes motivos, o melhor plano era desembarcar na parte mais a norte de Portugal, e acabei por fixar-me na baía do Mondego, por ser o lugar mais próximo [de Lisboa] que oferecia mais facilidades para o desembarque, à excepção de Peniche; contudo, o lugar de desembarque desta península é defendido por um forte ocupado pelo inimigo, que teria de ser necessariamente atacado com regularidade, a fim de dispor os navios em segurança.
Um desembarque a norte era mais recomendado, porque garantiria a cooperação das tropas portuguesas na expedição para Lisboa. Tendo desembarcado a totalidade dos corpos dispostos debaixo do meu comando, incluindo o comandado pelo General Spencer, tenciono começar a marchar na Quarta-feira [10 de Agosto]. Devo tomar a estrada por Alcobaça e Óbidos, tendo em vista manter a minha comunicação pela costa, e examinar a situação de Peniche; e irei para Lisboa pela estrada de Mafra e pelas colinas a norte daquela cidade.
Como fui informado pelo Secretário de Estado que um corpo de tropas debaixo do comando do Brigadeiro General Acland deve chegar à costa de Portugal antes da vós, escrevi-lhe desejando que se dirija daqui para o sul, ao longo da costa de Portugal; e propus comunicar-me com ele através do Capitão Bligh, do Alfred, que seguirá os movimentos do exército, com uns poucos navios-transportes que têm a bordo as provisões e as dispensas militares. Tenciono ordenar ao Brigadeiro General Acland para atacar Peniche, se achar necessário obter a posse dessa praça; em caso contrário, proponho ordenar-lhe a se juntar à esquadra estacionada na foz do Tejo, com o objectivo de desembarcar numa das baías próximas do Cabo da Roca, logo que eu me aproxime o suficiente para permitir-lhe que efectue essa operação.
Se imaginasse que o corpo do General Acland estava equipado de tal modo que lhe fosse permitido mover-se a partir da costa, deveria ter-lhe dado ordens para desembarcar no Mondego e marchar até Santarém, a partir donde poderia dar assistência às minhas operações ou impedir a retirada do inimigo, se esta fosse feita pelo norte do Tejo em direcção a Almeida, ou pelo sul do Tejo em direcção a Elvas. Mas como estou convencido que se espera que o corpo do General Acland forme parte de algum outro corpo que seja provido dum comissariado, pois ele não terá nenhum consigo, e, consequentemente, que o seu corpo deverá depender do país; e como nada se pode garantido a partir dos recursos deste país, considerei que é melhor que o General dirija a sua atenção sobre a costa marítima. 
Se, contudo, o comando do exército continuar nas minhas mãos, devo certamente mandar desembarcar no Mondego o corpo que tem estado ultimamente sob o comando de Sir John Moore, movendo-o para Santarém.
Tenho a honra de incluir uma relação das tropas debaixo do meu comando, bem como a cópia duma carta que escrevi ao Capitão Malcolm, do Donegal, na qual se refere o modo de disposição dos transportes.
Tenho a honra de ser, etc.

Arthur Wellesley

[Fonte: Lieut. Colonel Gurwood (org.), The Dispatches of Field Marshal the Duke of Wellington, K. G. during his various campaigns in India, Denmark, Portugal, Spain, the Low Countries, and France, from 1799 to 1818 – Volume Fourth, London, John Murray, 1835, pp. 53-57. Encontra-se outra tradução disponível na obra de Simão José da Luz Soriano, História da Guerra Civil e do Estabelecimento do Governo Parlamentar em Portugal. Compreendendo a História Diplomática, Militar e Política deste Reino, desde 1777 até 1834 – Segunda Época - Tomo V – Parte I, Lisboa, Imprensa Nacional, 1893, pp. 85-91].


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Nota: 

*  Recordemos que, de acordo com a lista definitiva das forças britânicas enviadas para a Península Ibérica, enviada a Wellesley a 15 de Julho por Lord Castlereagh, Secretário de Estado da Guerra do Governo britânico, o General Hew Dalrymple passava a ser o Comandante-em-Chefe das referidas forças, com o General Harry Burrard como segundo no comando e o General John Moore como terceiro. 
Wellesley endereçou a carta acima transcrita a Harry Burrard e não a Dalrymple (apesar de lhe ter remetido uma cópia da mesma), porque sabia que Burrard chegaria à costa portuguesa muito antes de Dalrymple. De facto, ao passo que Dalrymple só viria a partir de Gibraltar (praça que até então governava) no dia 13 de Agosto, Harry Burrard tinha embarcado em Portsmouth no dia 22 de Julho, a bordo do navio Audacious, o mesmo que trazia o General Moore. Contudo, o mau tempo atrasou a viagem destes últimos para o dia 31 de Julho, continuando a prejudicar de tal modo a trajectória do comboio que acompanhava o Audacious (onde vinham os cerca de 10.000 homens comandados por Moore na sua recente expedição à Suécia), que os transportes tardaram mais de duas semanas para se reunirem junto ao Cabo Finisterra. Sem aguardar a dita reunião, Burrard deixou Moore no dia 16 de Agosto e rumou para o Porto, onde soube que Wellesley já tinha desembarcado no Mondego, para onde partiu, e onde finalmente chegou no dia 18.


Carta do General Wellesley a Lord Castlereagh (8 de Agosto de 1808)



Lavos, 8 de Agosto de 1808


Meu caro Senhor:

O meu ofício contém as informações mais completas sobre todos os assuntos, e não tenho nada a acrescentar. Tive a maior dificuldade para organizar o meu Comissariado para a marcha, sendo o meu o pior dos Comissários Gerais, e estando o seu departamento muito incompleto, não obstante as orientações que dei a Huskisson sobre este assunto. O departamento merece a vossa séria atenção. A existência do exército depende dele, e, além do mais, as pessoas que o administram são as mais incapazes de administrar qualquer coisa que não seja uma firma de contabilidade.
Serei obrigado a deixar as armas de Spencer para trás, pela falta de meios para as transportar, e seria obrigado a deixar as minhas próprias, se não fossem os cavalos do Comissariado irlandês. Que ninguém jamais se imponha sobre vós para mandar um corpo a qualquer parte da Europa, sem pelos menos ter cavalos para puxar as armas. Não é verdade que os cavalos perdem a sua saúde no mar. 
Acabei de ouvir dizer que José Bonaparte partiu de Madrid para a França, acompanhado por todos os franceses, no dia 29 do passado mês. Recebi a vossa carta privada de 21 de Julho, pela qual fico-vos muito agradecido. Serei o mais novo dos Tenentes-Generais; contudo, estou pronto para servir o Governo onde e como queira.
Sempre, meu caro Senhor, o seu mais sincero,

Arthur Wellesley

[Fonte: Charles William Vane (org.), Correspondence, Despatches, and other Papers of Viscount Castlereagh, second Marquess of Londonderry – Vol. VI, London, William Shoberl Publisher, 1851, p. 396; a frase sublinhada encontra-se omissa na edição de Lieut. Colonel Gurwood (org.), The Dispatches of Field Marshal the Duke of Wellington, K. G. during his various campaigns in India, Denmark, Portugal, Spain, the Low Countries, and France, from 1799 to 1818 – Volume Fourth, London, John Murray, 1835, pp. 52-53].

Carta do General Wellesley a Lord Castlereagh, secretário de Estado da Guerra (8 de Agosto de 1808)




Lavos, 8 de Agosto de 1808



Meu Senhor:

Tenho a honra de vos informar que o Major General Spencer chegou à baía do Mondego na noite do passado dia 5, e foi seguido por uma parte do corpo debaixo do seu comando no dia 6, chegando a restante no dia 7, e todos desembarcaram entre ontem e hoje. O General Spencer tinha determinado embarcar, em obediência às instruções de Vossa Senhoria do dia 30 de Junho, no dia 21 de Julho, quando recebeu as notícias da derrota de Dupont, e por isso não chegou a receber as instruções que lhe tinha dirigido no dia 26 de Julho, cuja cópia transmiti a Vossa Senhoria na minha última carta.
Recebi a carta de Vossa Senhoria do dia 21 de Julho, e já pedi aos Capitães que comandam os navios de Sua Majestade que estão junto ao Cabo Finisterra para comunicarem a todas as embarcações e comboios que venham da Inglaterra que o exército sob o meu comando tinha desembarcado na baía do Mondego.
Tenciono começar a minha marcha depois de amanhã, e tenho a honra de incluir uma cópia duma carta, que deixo aqui para que seja entregue a Sir Harry Burrard, na qual lhe informo do estado das circunstâncias em Espanha e Portugal, de acordo com os conhecimentos que consegui obter. Enviei uma cópia desta carta a Sir Hew Dalrymple.
Tenho a honra de ser, etc.

Arthur Wellesley


Carta do General Dumouriez a Lord Castlereagh, Secretário de Estado da Guerra do Governo britânico (8 de Agosto de 1808)




Broadstairs, Kent, 8 de Agosto de 1808


Meu Senhor:

Os patriotas provam as desgraças que eu tinha previsto e predito, porque fazem a guerra sem um plano geral e sem conjunção. Lamentar-se-ão ainda mais dos seus defeitos consideráveis antes de se corrigirem. Mas como o sul continuará livre, conservando-se a comunicação entre a Andaluzia e a Galiza através de Portugal, a residência do Rei José em Madrid será bastante precária, e mais de metade da Espanha continuará por conquistar, o que não se pode fazer numa só campanha.
A sorte da Espanha, e por consequência a nossa e a da Europa, depende portanto da conduta dos ingleses em Portugal. É lá que eles se devem concentrar, unindo-se aos portugueses, e organizando-os em corpos, para formarem um exército de 70 a 80.000 homens. Com uma força destas, Portugal não só ficará impenetrável, como também não será atacado, podendo este exército avançar para a guerra ofensiva na Extremadura e em Castela, combinando os seus movimentos com os do General Castaños pela direita, e com os do General Blake pela esquerda. 
Os aragoneses, os catalães e os valencianos serão provavelmente batidos, mas se forem obrigados a abandonar as planícies do belo reino de Valença, retirar-se-ão seguramente para a cadeia de montanhas de Alpujarras, que cobre Múrcia e Granada, e que está ligada à Sierra Morena. 
A reunião das tropas nesta posição estará sustentada pela sua esquerda à direita do exército do Andaluzia, por sua vez apoiado pela sua esquerda pelo exército anglo-português, e este pelo da Galiza. O Rei José ficará bastante embaraçado por ter esta posição à sua volta. Faltar-lhe-ão víveres, e como não tem mar à sua volta, será obrigado a mandar vir qualquer tipo de assistência às costas de mulas, através dos Pirenéus, que serão obstruídos pelo inverno e pelos Miquelets no final de Outubro, e então, quanto maior for o seu exército, maior será a sua ruína.
Mas para que tudo isto se realize, como será indubitável se a guerra for feita sobre um plano geral bem entendido, é necessário:
1.º Que o vosso exército chegue a Portugal inteiro, e tenha o número de 40.000 homens, dos quais pelo menos um quinto deve pertencer à cavalaria;
2.º Que o exército seja comandado por qualquer General em Chefe que se disponha a cooperar de acordo com o plano geral, e a modificar apenas meros detalhes, se as circunstâncias o exigirem;
3.º Que este plano geral seja adoptado pela Junta Geral, comunicado às diferentes Juntas das diversas províncias, e em seguida aos respectivos Comandantes dos diversos exércitos;
4.º Que o Ministério inglês tenha perto da Junta Geral em Sevilha um General hábil e duma qualificação superior, que esteja ao corrente deste plano, e que o possa dirigir em todas as partes, mudando os detalhes segundo as circunstâncias – que este General seja agradável aos espanhóis, e, se possível, escolhido por eles, de acordo com a indicação do Ministério inglês. Ele não deverá enviar em seu nome instruções ou ordens aos Generais dos diferentes exércitos, para evitar ressentimentos, sobretudo do General ou dos Generais ingleses. A própria Junta não deverá enviar instruções ou ordens ao exército inglês, mas somente a comunicação do plano geral e as alterações que as circunstâncias obriguem a se fazer, segundo o seu maior ou menor progresso, para que o exército inglês possa combinar os seus movimentos o mais regularmente possível dentro do plano geral.
Eis como concebo a conduta desta guerra, antes mesmo dela começar. Consequentemente, meu Senhor, enviei-vos um plano geral para o Conselho, bem como para a Junta Geral. A minha experiência leva-me a crer que ele é bom porque está modelado sobre aquele que já conhecia e que executei na França em 1792. Ele tem pelo menos o mérito de ser o único. Talvez seja seguido, ou talvez não; mas fico com a satisfação de ter cumprido o meu dever, ou até ultrapassado-o. Se o Conselho aprovar a minha conduta ou as minhas ideias, testemunhar-me-eis na vossa resposta.
Tenho a honra de ser com respeito, etc.,

General Dumouriez


[Fonte:Charles William Vane (org.), Correspondence, Despatches, and other Papers of Viscount Castlereagh, second Marquess of Londonderry – Vol. VI, London, William Shoberl Publisher, 1851, pp. 396-398]. 

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Nota:

Charles François Dumouriez, que ao lado da carreira militar desempenhara também o papel de agente secreto de Luís XV da França, viria mais tarde a aderir aos ideais da revolução francesa, tendo participado com distinção em várias das suas primeiras campanhas, e tendo sido inclusive (ainda que brevemente) ministro dos negócios estrangeiros e da guerra dos primeiros governos revolucionários. Contudo, pouco depois de Luís XVI ter sido executado pelos jacobinos, Dumouriez acabou por desertar e abandonar a França, e depois de ter passado por vários países, acabou em 1804 por se instalar definitivamente na Inglaterra, como tantos outros realistas defensores do futuro Luís XVIII. Neste país, a troco de uma abastada pensão, serviu secretamente como conselheiro valioso da Secretaria de Estado dos Negócios da Guerra do Governo britânico, na sua luta contra Napoleão. 
Curiosamente, entre muitas outras, Dumouriez mandou publicar a seguinte obra, composta segundo as impressões que teve quando veio a Portugal em 1766, na qualidade de agente secreto: État présent du royaume de Portugal, en l'année MDCCLXVI, Lausanne, Chez François Grasset & Comp., 1775 (duas décadas mais tarde, esta edição foi revista, corrigida e consideravelmente aumentada, tendo sido publicada em 1797, em Hamburgo, sendo igualmente traduzida e publicada em Londres no mesmo ano). É também da sua autoria uma obra intitulada Juizo sobre Bonaparte dirigido pelo General Dumouriez a' Nação Franceza e a' Europa [sic], sobre as alterações provocadas por Napoleão na Europa, em 1807, que foi publicada em Lisboa, pela Impressão Régia, no ano seguinte, certamente depois dos franceses se retirarem do país.

Decreto de Junot à Junta do Depósito (8 de Agosto de 1808)



Em nome de Sua Majestade o Imperador dos franceses, Rei de Itália, Protector da Confederação do Reno.
Nós, Duque de Abrantes, General em Chefe do Exército de Portugal, temos decretado e decretamos o seguinte: 

Art. 1.º Os administradores do Depósito Público farão dentro de vinte e quatro horas entregar no Tesouro Público a soma de 240 contos de réis em dinheiro efectivo, e a soma de 80 contos de réis em papel.

Art. 2.º Depois da nossa verificação ordenada pelo nosso decreto de 28 de Julho relativo ao Depósito Público, as somas que deviam ser sequestradas, sejam como pertencentes aos vassalos da Grã-Bretanha, aos emigrados e aos cidadãos habitantes das províncias revoltadas, ficaram sequestradas sem restrição. Aquelas que poderiam pertencer a corporações ou a particulares, outras que não sejam aquelas acima designadas, serão registadas no Tesouro Público, da mesma forma e com as mesmas condições que precedentemente se praticaram debaixo do antigo Governo. Enquanto se pode fazer esta liquidação, o Recebedor Geral das Rendas e Contribuições de Portugal entregará aos administradores do Depósito Público apólices grandes que façam a importância da soma acima especificada. Estas apólices grandes ficarão depositadas na caixa da Administração até à liquidação.

Art. 3.º O Secretário de Estado do Interior e das Finanças está encarregado da execução deste decreto.

Dado no nosso Palácio do Quartel-General em Lisboa, a 8 de Agosto de 1808.

O Duque de Abrantes


Joaquim Guilherme da Costa Posser

Mandado cumprir por despacho da Junta do Depósito de 8 de Agosto de 1808.


[Fonte: Raul Brandão, El-Rei Junot, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, s.d., pp. 182-183]. 

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Nota: Raul Brandão apresentou este decreto como sendo “inédito”, não ficando claro se não tinha chegado a ser publicado previamente ou se não chegou a ser aplicado.

Edital da Junta do Porto aumentando os impostos sobre o consumo e exportação de bebidas alcoólicas e vinagre (8 de Agosto de 1808)




Edital da Junta do Porto mandando recolher armas para serem destinadas ao exército português (8 de Agosto de 1808)



Carta do General Bernardim Freire de Andrade ao Bispo e Presidente da Junta do Porto (8 de Agosto de 1808)




Meu Senhor:

Suspendi a remessa do ofício incluso, porque vinha de receber notícias que era preciso comunicar a Vossa Excelência.
Com efeito Loison entrou em Elvas, donde mandou proclamações a diversas terras da província, mas dizem que as forças que se acham em Badajoz, clamando a si outras que se acham na província, se dispõem a frustrar-lhes quaisquer intentos ulteriores.
Aqui se espalhou que o General Junot tinha saído de Lisboa, da Sexta para o Sábado, deixando o Governo ao Conde da Ega, mas aqui chegou [outra notícia] depois, e aqui está o cozinheiro de Junot que saiu de Lisboa no Sábado, onde o deixou; e creio que a causa da equivocação foi a saída furtiva do General Carrafa, que o referente conhece muito bem e que ele encontrou ao pé da Barquinha, o que é facto bem inesperado. Mas as notícias da marcha de Loison têm posto em alvoroço esta província; para a sossegar, e porque com efeito é necessário fornecer os meios que se podem achar, por isso se remetem para o Regimento de Penamacor o número necessário de armas; amanhã partem para Viseu, para passarem à Guarda, parecendo-me recomendar a Bacelar as operações que for conveniente adoptar. Da carta que recebo do Marquês de Valladares, se vê as instâncias com que pretende a reunião das companhias que aí deixou, e eu proporia a Vossa Excelência que mandasse vir para essa cidade 300 ou 400 homens do Regimento de Viana.
As nossas munições são escassas, não temos mais de 60 cartuxos por praça do Exército que aqui se reúne; espero que não seja preciso gastar todas, mas entretanto é pouco para entrar em campanha.
Os ingleses ainda prometem armas, mas por ora não deram mais do que 5.000, das quais querem [que] se lhes restituam 500, e com o número que resta é necessário, depois de armar Penamacor, armar o resto destas tropas que marcham. Não quero ser mais importuno a Vossa Excelência, de quem tenho a honra de dizer-me etc.
Quartel-General de Coimbra, 8 de Agosto de 1808.

Bernardim Freire de Andrade

[Fonte: Luís Henrique Pacheco Simões (org.), "Serie chronologica da correspondencia diplomatica militar mais importante do General Bernardim Freire de Andrade, Commandante em Chefe do Exercito Portuguez destinado ao resgate de Lisboa com a Junta Provisional do Governo Supremo estabelecido na cidade do Porto e o Quartel General do Exercito Auxiliar de S. Magestade Britanica em Portugal", in Boletim do Arquivo Histórico Militar - Vol. I, Lisboa, 1930, pp. 153-227, p. 168 (doc. 4)].