Lord Strangford era, desde 1806, embaixador da Grã-Bretanha junto da Corte portuguesa, tendo acompanhado esta quando foi decida a sua transferência para o Brasil, no final de Novembro de 1807. No entanto, a meio caminho entre Portugal e a ilha da Madeira, uma doença impediu Strangford de prosseguir a viagem, sendo conduzido à Inglaterra logo a 5 de Dezembro. Pelo facto da doença se ter agravado, Strangford permaneceu na Inglaterra até meados de Maio de 1808, quando voltou a partir para o Rio de Janeiro, onde aportou finalmente no dia 22 ou 23 de Junho. A carta que a seguir se transcreve (possivelmente dirigida a George Canning, Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, embora não se indique o real destinatário), teria assim sido escrita logo depois de Strangford ter chegado ao Rio de Janeiro, e já depois de ter voltado a entrar em conversações com o Príncipe regente D. João:
[Rio, 24 - 6 - 1808] *
Tenho a honra de informar-lhe que aqui cheguei no dia 22, depois de fastidiosa viagem de 77 dias. Os restantes navios da comitiva entraram neste porto bem 2 dias depois da minha chegada.
Como o Príncipe Regente tivesse mostrado desejo de ver-me o mais breve possível, dirigi-me imediatamente ao Palácio e tive a honra de ter com Sua Alteza Real uma longa palestra em particular.
Na manhã seguinte tive a minha primeira audiência pública e apresentei minhas credenciais, acompanhando-as com demonstrações em nome de Sua Majestade [Britânica].
É difícil, Senhor, descrever a maneira graciosa e benevolente pela qual o Príncipe Regente mostrou-se satisfeito de receber-me nestas ocasiões, ou fazer justiça à gratidão e dedicação a Sua Majestade que parecia assinar[?] todas as frases que Sua Alteza Real empregava.
Na minha primeira conferência particular, o Príncipe Regente começou por declarar com muita animação que esperava [que] Sua Majestade tivesse esquecido completamente as transacções de uma época infeliz** e que nenhuma lembrança pudesse influir Sua Majestade na renovação de negociações para a Paz; e quanto ao que dizia respeito à sua volta à Europa, ele a considerava muito pouco provável; que, por sua parte, ele tinha determinado ficar na América do Sul, e que não duvidava que o tempo e a razão o reconciliassem com a sua situação. Sua Alteza Real acrescentou que o Rio de Janeiro não era absolutamente o lugar apropriado para a residência da Família Real, e que o clima desta província era extremamente insalubre, e que ele tinha resolvido visitar as partes do Sul de suas possessões, na esperança de achar situação mais aprazível para sua Corte e seu Governo.
O Príncipe então lamentou esta falta de meios para levar este projecto imediatamente à execução, e falou com muito sentimento dos incómodos que Sua Real mãe e o resto de sua família tinham sofrido em consequência disso.
O Príncipe então mencionou o estado actual de suas possessões na Europa, assunto no qual mostrou-se muito nervoso. Disse-me, com medo nos seus olhos, que embora pudesse suportar a ideia de não mais voltar à pátria de seus avós[?], sentia-se extremamente pesaroso quando ele pensava na possibilidade da eterna separação de Portugal da Casa de Bragança; e na miséria a que seus fiéis sujeitos podem sofrer sob o jugo de um tirano [e] seus principais, que não têm razão nenhuma de apego nem à terra nem aos habitantes.
Ele acrescentou que considerava Sua Majestade [Britânica] como seu protector e amigo, que ele esperava que Sua Majestade não consentiria no desmembramento do Império português, desde que os interesses da Inglaterra (e até um certo ponto a segurança da Irlanda) exigiam que a sorte de Portugal não caísse nas mãos do poder de França; e que ele tinha muito consolo na frequente promessa daquela parte da Convenção Secreta na qual trata na promessa de Sua Majestade de nunca reconhecer um usurpador no trono de Bragança - promessa à qual ele tinha a mais firme confiança, e que poderia sempre impedi-lo de dar a mínima atenção a qualquer proposta de Paz da parte da França. O Príncipe então disse que ele se considerava agora muito mais ligado à amizade de Sua Majestade que até então tinha a felicidade de ter; e que se Sua Majestade tinha dado gratuitamente o auxílio já mencionado, quando as relações dos dois Governos eram apenas de amizade, tanto mais razão tinha agora de esperar dos bons ofícios de Sua Majestade, de quem se tinha feito aliado, cuja causa ele tinha tomado e que sem a sua reacção[?] ou companhia estava decidido [a] nunca fazer a Paz com o inimigo comum; Sua Alteza Real assegurou-me e pediu-me que repetisse isto à minha Corte, que não havia nada e que não estivesse pronto a ceder à Inglaterra, em troca da sua cooperação, a posse das suas possessões na Europa; Sua Alteza Real terminou uma longa conversa em o [?] assunto, demonstrando que gostaria que eu mostrasse a grande satisfação que ele teve com a conduta do seu Hill*** na Corte, e [que] a prudência e aptidão com as quais este Senhor tratou alguns dos negócios muito delicados que foram [?] ao seu desempenho, foram muito apreciados, não somente por Sua Alteza Real, mas também por todo o Governo português.
Tenho a honra, etc.
Strangford
[Fonte: Biblioteca Nacional Digital do Brasil].
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Notas:
* No manuscrito (originalmente em português) que utilizámos para a presente transcrição, a data de "24-6-1808" foi acrescentada a lápis, com uma caligrafia diferente da do resto do corpo do texto. Posteriormente corrigiu-se o mês para Março, e finalmente para Julho. No entanto, pelo seu contexto, parece-nos que faz mais sentido que esta carta tenha sido logo após a chegada de Strangford ao Rio de Janeiro, que como acima indicámos aconteceu por volta dos dias 22 ou 23 de Junho de 1808.
** Aparente referência à ocupação efectiva da ilha da Madeira pelas forças britânicas de William Beresford, do final de Dezembro de 1807 ao final de Abril de 1808.
*** Francis Hill, encarregado provisório dos negócios da Inglaterra junto da Corte portuguesa no Brasil, para aí enviado em meados de Janeiro de 1808, em virtude do referido agravamento da doença de Strangford.