sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Preocupações de Junot

No dia 16 de Dezembro de 1807, Junot escreve três cartas a Napoleão, começando na primeira delas por abordar os incidentes ocorridos nos dias anteriores: "Sire, há já dois dias que me ocupo no reestabelecimento da tranquilidade na cidade de Lisboa. Uma parte da mais vil canalha que inunda as ruas desta capital tinha insultado alguns soldados e dizia não querer ver ondular a bandeira tricolor; alguns tiros de espingarda e uma comissão militar reestabeleceram a calma, mas não posso ignorar que esses espíritos facilmente excitáveis devem estar a ser fortemente incitados por emissários ingleses que um barco de pescadores trouxera dois ingleses para Lisboa; pus imediatamente a polícia em busca deles, mas até agora nada se descobriu; se forem presos, serão imediatamente fuzilados como espiões". Os receios de Junot justificavam-se na medida em que "a esquadra inglesa que actualmente cruza em frente do porto [de Lisboa] é de 8 navios de linha e algumas fragatas". 
Mas não era só isto que preocupava Junot. As suas forças ainda eram relativamente reduzidas, pois só contava com 16.000 franceses. No caminho desde Bayonne, tinham ficado para trás, em hospitais, cerca de 3.000 homens, "e não poderei contar com eles tão cedo". 
Para piorar tudo, continuavam os problemas administrativos e logísticos: "A administração civil também é para mim um grande embaraço. Tive de deixar existir tudo o que encontrei porque V.M.[Vossa Majestade] assim me ordenou, mas a nossa posição é crítica. A praça está sem dinheiro, o papel-moeda sem crédito, as autoridades sem vigor; reina uma desordem terrível em todos os ramos da administração e da justiça; o exército, há muito tempo sem paga, receia pela sua futura existência e, principalmente, teme ter de sair do país; e, para maior embaraço, os mantimentos começaram a faltar no interior e Lisboa não tem para um mês.
Os espíritos estão muito agitados e, infelizmente para mim, não sou secundado pela parte administrativa. Tenho necessidade de que V.M. se digne poisar por um momento o seu olhar na minha posição; só o desejo de bem proceder não chega, pois estou pouco habituado à administração, e principalmente à direcção das finanças, e receio errar. O senhor Hermann tem boa vontade e é activo, mas pretende fazer muitas coisas ao mesmo tempo e não analisa o seu trabalho; é um homem em que se pode ter confiança, e damo-nos muito bem, mas não o creio suficientemente forte para pôr ordem na administração deste país em que tudo está em desordem.
O ordenador-chefe [Coronel Trousset] não está em condições de administrar um exército num país onde os recursos são poucos; está embaraçado com tudo e vê-se travado a cada passo; não sei, realmente, como viveria o meu exército se me visse obrigado a fazer algum movimento". 
Daí que Junot não se pudesse dar ao luxo de dispensar os soldados portugueses: "A cidade de Lisboa e os seus fortes exigirão necessariamente 6.000 soldados franceses e 2.000 portugueses. A defesa da margem esquerda, se eu ficar encarregado dela, exigirá 3.000 franceses e 1.000 portugueses; ficarei, portanto, com 13.000 franceses e 2.000 a 3.000 portugueses para manter a tranquilidade interior, ocupar duas ou três praças que é indispensável conservar, como Almeida, Abrantes e Santarém, guarnecer as batarias da costa e os pontos de mais interesse e opor-me, por fim, a algum desembarque que o inimigo ouse tentar. 
Espero ter dentro de um mês 6 bons batalhões portugueses, com 800 a 900 homens cada um, e um milhar de cavalos, bem organizados. 
O Tenente-General Marquês de Alorna ser-me-á muito útil para essa organização; é um homem precioso neste país, pela confiança, que usufrui no público e no exército; e é um homem de honra cuja opinião é positivamente «que o maior bem que pode acontecer ao seu país é ser dependente imediato da França».
Uma palavra de V.M. ganhá-lo-ia inviolavelmente, e ele poderia ser-nos aqui muito útil.
Há também alguns outros oficiais Generais que merecem a benevolência de V.M. Posso prometer-lhes que serão tratados como em França, uns no activo e outros em licença e em reforma, bem como os oficiais do Exército, tanto de terra como da marinha? E os suboficiais e os soldados terão também direito à reforma?
Há um grande número de empregados que vão ficar sem desemprego e de pensionistas que pedem com que viver; o tesouro público não poderá arcar com tais encargos. As Alfândegas, que nada renderão [devido ao bloqueio continental], forneciam cerca de metade do rendimento. V.M. dignar-se-á pensar nisto por um momento". 
Como se não bastasse, os espanhóis (que entretanto tinham começado a entrar no país pelo Minho e pelo Alentejo) viam-se obstaculizados pelas autoridades portugueses de Elvas e do Porto, que não lhes queriam "entregar os fortes e praças que tinham sob o seu comando". Junot, avisado sobre isto pela Regência, comunica a esta, por sua vez, "que era preciso entregar as fortificações aos espanhóis, e espero que isso seja feito, mas todas estas dificuldades provam a V.M. a repugnância que existe pelos espanhóis e quanta firmeza e prudência vai ser precisa para manter a tranquilidade neste país, e principalmente, se os ingleses tentarem algum desembarque".
Essa repugnância a que Junot alude percebe-se melhor noutro trecho, segundo o qual "o que eles [i.e., os portugueses] muito evidentemente desejam seria um príncipe que os deixasse independentes, mas se o não puderem conseguir, querem ser franceses, pois mais receiam ser espanhóis que morrer".
Talvez fosse esse o motivo pelo qual "o que aqui chamam Conselho de Regência pediu-me autorização para enviar uma deputação a V.M. Vou conceder-lha, e forma-la-ei com indivíduos de que desejo desfazer-me. Quando eles estiverem para partir, darei a V.M. informações a seu respeito". 
Foi esta última notícia, enfim, a única realmente positiva no meio de tantas barreiras... O cenário não era dos melhores para os franceses, como o seu General em Chefe tinha plena consciência...


Para desanuviar e terminar, Junot escrevia neste mesmo dia que "a minha mulher deu à luz um filho que há muito está dedicado nos nossos corações ao serviço de V.M. O reconhecimento já lhe deu o nome do meu Benfeitor, mas o respeito impede-me de lhe dar o nome do meu senhor até que V.M. tenha consentido em cumular as suas bondades para comigo dignando-se pôr nome ao meu filho. 
Se V.M. me fizer essa graça, suplico-lhe que designe a madrinha e permita que o meu filho seja inscrito como soldado de um dos Regimentos da Guarda Imperial. Espero que ele se torne, um dia, digno dessa honra".


Este terceiro filho de Junot (o primeiro varão), que nasceu em Paris a 25 de Setembro de 1807, seria baptizado de Louis Napoléon Andoche Junot


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Todas os excertos aqui transcritos são da obra intitulada Diário da I Invasão Francesa, publicada pela ed. Livros do Horizonte em 2008. Trata-se da tradução do copiador da correspondência de Junot a Napoleão desde 26 de Julho de 1806 a 7 de Junho de 1808, cujo texto original foi inicialmente publicado em 1912 por Cristóvão Aires de Magalhães Sepúlveda no vol. XII das Provas da sua  História Orgânica e Política do Exército Português. Esta correspondência, que mostra um tímido Junot bem diferente do que dava a conhecer através  das suas proclamações e outros documentos públicos, foi apreendida pelos portugueses na sequência da derrota dos franceses na batalha do Vimeiro. Acúrsio das Neves, na sua História Geral da Invasão dos Franceses em Portugal e da Restauração deste Reino,  apesar de não referir a fonte que utilizou (salvo erro), baseou-se certamente em muitas destas cartas para descrever o que ia passando pela cabeça de Junot nesta época, bastando para se comprovar esta afirmação que se confrontem ambas as fontes.