sexta-feira, 17 de junho de 2011

Introdução ao primeiro número do Diario de Badajoz (17 de Junho de 1808)



O chamado bando de Mostóles, escrito no dia 2 de Maio de 1808, na sequência da repressão do exército francês sobre a população de Madrid, tardou apenas 2 dias para chegar a Badajoz, onde motivou a ocorrência, nesse mesmo dia 4, dum tumulto entre a população e trinta e cinco franceses e nove napolitanos que por ali estavam, talvez a caminho de Lisboa pela "melhor estrada de Portugal" (segundo as palavras do Coronel de Engenheiros Charles Vincent). Tentando serenar os ânimos, o Governador da província, o conde de Torre del Fresno, decidiu pôr a salvo aqueles estrangeiros, provavelmente dentro da prisão, embora logo no dia seguinte os libertasse para remetê-los para Elvas, onde se encontrava o General Kellermann (com cerca de 2.000 franceses). Na carta que escreveu ao dito General francês a este respeito, o referido Governador espanhol tentava suavizar a questão, dizendo que tudo não tinha passado duma "pequena perturbação" causada por rumores contrários à aliança entre a Espanha e a França. Não obstante esta missiva, o mesmo conde de Torre del Fresno difundia no mesmo dia pelas povoações da sua jurisdição uma carta circular, onde, apesar de duvidar da credibilidade do dito bando de Mostóles, passava a ordenar medidas defensivas, convocando um alistamento geral para fazer frente aos franceses, caso tais notícias fossem verdadeiras. Estas medidas acabariam por ser suspensas poucos dias depois, na sequência da chegada duma carta circular que a Junta de Regência, sediada em Madrid, enviara a todas aos Governadores das províncias espanholas, procurando evitar mais confrontos entre espanhóis e franceses. É certo que, tal como ocorreu em Portugal, também na Espanha sucederam volta e meia alguns desacatos pontuais, antes de começarem os levantamentos populares propriamente ditos. Contudo, partir do momento em que se divulgaram as primeiras notícias e boatos sobre o que ocorrera no dia 2 de Maio em Madrid, o convívio entre intrusos e populares tornou-se bastante mais difícil. A sede de vingança passou a ser o escape de todos os agravos sofridos pelo povo, que até aí aceitara passivamente servir as necessidades - e não eram poucas - do exército intruso. Apesar de todas as precauções das autoridades locais, os desacatos passaram então a ser mais frequentes, sobretudo nas zonas escassamente controladas por franceses. Enquanto ponto de frequente passagem de correios, mensageiros ou pequenos destacamentos de franceses a caminho de Portugal, a cidade de Badajoz não foi excepção, como se queixou o General Kellermann ao conde de Torre del Fresno numa carta de 18 de Maio. Não sabemos se o dito Governador espanhol chegou a publicar essa carta, como lhe instava o General francês. O certo é que o comportamento demasiado permissivo do conde de Torre del Fresno viria mesmo a provocar um motim popular, no dia 29 de Maio, que culminou no seu assassinato às mãos dos populares. Para ocupar o vazio do poder foi constituída nos primeiros dias de Junho uma Junta Suprema de Governo da Extremadura, para a qual foi nomeado presidente o General José Galluzo. Uma das primeiras medidas que este órgão de governo tomou, ao exemplo de outras Juntas, foi, para além do alistamento geral, a instauração duma máquina propagandística local, que se saldou logo no dia 17 de Junho de 1808 com um dos seus primeiros frutos, a saber, a publicação do primeiro número do Diario de Badajoz, redigido pelo médico extremenho [=da província da Extremadura] Pedro Pascasio Fernández Sardino, que também participou na redacção doutros periódicos, como o coetâneo Almacén patriótico e a Gazeta de Extremadura, ambos publicados em Badajoz, ou El Robespierre Español, publicado em Cádis, cujo tom bastante crítico viria a provocar a prisão do dito redactor, em 1811. Feita esta apresentação, publicamos abaixo a tradução da introdução do primeiro número do aludido Diario de Badajoz, periódico que, apesar de ter tido a duração de dois anos, é bastante raro, sendo apenas quinze o total de números existentes na colecção da Biblioteca Nacional de Espanha, alguns dos quais (como precisamente o primeiro número) reimprimidos pela Casa da Misericórdia de Cádis.


Os franceses levaram o nosso Rei, invadiram o nosso País, apoderaram-se das nossas Praças, os seus Exércitos atravessam impunemente desde Barcelona a Lisboa, e desde Pamplona a Cádis; e nós estamos aturdidos e sem ordem nem concerto. Não há remédio, seremos escravos de Napoleão! As cadeias que nos hão de aprisionar soam já nos nossos ouvidos; as nossas campinas desoladas vão oferecer-nos um espectáculo horroroso; e dentro de poucos dias os nossos desgraçados irmãos, atados como vis delinquentes, irão preparar noutro extremo da terra novos louros e novos escravos ao monstro da linhagem humana.
Assim discorríamos há poucos dias; os espíritos exaltados previam estes males, a imaginação arrebatada amontoava-os, e nos críamos perdidos porque o remédio não era tão veloz como ela. Mas a mina arrebentou, variou a cena, e uma nova perspectiva apresentou-se aos nossos olhos. O que éramos a 23 de Maio? O que éramos há 20 dias? E que somos já hoje? Um espaço tão curto enobreceu os ânimos, e deu energia a toda a Nação. Os gritos Pátria, Religião e Fernando soaram nas praias do Oriente e do Meio-Dia [=Sul] do Reino, e as montanhas do Poente e do Norte repetiram o eco. Pátria, Religião e Fernando ressoaram também nas planícies do Guadiana; e, atónitos, os traidores fugiram para esconder-se, ou desapareceram, os irresolutos animaram-se e as almas grandes e generosas repetiram entusiasmadas vivas à Pátria, à Religião e a Fernando.
Num instante tudo se ordena de novo. As rendas de um Governo inerte e cobarde passam para mãos patrióticas e activas, e em tão poucos dias renasce a esperança nos corações de todo o bom Espanhol. Por todo o Reino circulam proclamações, fazem-se alistamentos, e a gente corre à porfia a todos os pontos importantes do Reino, para formar Exércitos que defendam a Religião, sustentem a honra da Pátria, e salvem ou vinguem Fernando.
Glória e honra aos Chefes ilustres que o Povo designou para depositar nas suas mãos a vontade geral! Leais patriotas, vós sabeis bem que desde aquele momento vos impusestes a obrigação de cada um ser um herói; porque nada menos se necessita para corresponder à confiança que o Povo, que a Nação inteira fez de vós. Juntas Supremas de Governo, Juntas patrióticas, Juntas de verdadeiros Espanhóis, a vós se dirije a minha voz: em vossas mãos está o bem e o mal; em vossas mãos está a Soberania. Um Povo sem cabeça, ou dirigido por caminhos sinistros, abandonou os seus Chefes; e para ser governado com energia abrigou-se nas vossas luzes e no vosso patriotismo. O Povo não pôde fazer mais; desempenhai o vosso cargo, e a eleição terá sido acertada.
Mas o Povo não o duvida; vê o trabalho e as fatigas que tomais; e compraz-se nos seus Chefes. No primeiro dia deste mês não havia nesta cidade mais que desordem e descontentamento; 16 dias bastaram para criar um Exército que já intimida o inimigo, e que se aumenta com uma rapidez assombrosa. Haveis comunicado avisos, espalhado anúncios e proclamações, e haveis crido oportuno publicar um Diário, por meio do qual se espalhem e generalizem os vossos decretos e as vossas decisões, se fixe a opinião pública, e se avivem em todos os corações os sentimentos patrióticos.
Haveis-me confiado o resumo [das notícias] e todo o meu cuidado será não desmerecer a vossa confiança. Segundo o plano que vos apresentei, e que vos dignastes aprovar, cada dia se publicará um número do tamanho e letra do presente; a menos que por urgência ou por ordem do Governo haja que apresentá-lo duplo como este.
Não duvido que todos os bons espanhóis me ajudarão com as suas forças numa empresa da qual não espero nem tomarei outra recompensa que o servir a minha Pátria, como bom Espanhol, e como bom Extremenho. Os papéis que me dirijam pelo correio virão remetidos Ao redactor do Diario de Badajoz; e se merecerem a aprovação dos prudentes e sábios Censores que a Suprema Junta me nomeou, imprimir-se-ão com o nome do Autor, ou suprimindo-o se assim se manifeste.
O primeiro lugar será ocupado pelas proclamações, bandos, circulares, lista de donativos e demais que o Governo me ordene. O segundo pelas notícias sobre as ocorrências do dia em cada uma das Províncias do Reino. O terceiro pelas produções em prosa e verso que tenham por objecto inflamar a nação e assegurar o respeito ao Governo.
Uma empresa nova nesta cidade não pode começar com toda a perfeição; mas o público compreenderá e dissimulará os defeitos, que a cada dia serão menores. É possível que este papel ofereça pouco interesse nos primeiros dias, devido à sua pouca variedade; mas tendo subscrito muitos dos periódicos das Províncias, e tratando de fazê-lo com os restantes, e ainda com alguns estrangeiros, não poderei por muito tempo carecer de novidades.

[Fonte: Diario de Badajoz del viernes 17 de junio de 1808 (Reimpreso en la Casa de Misericordia de Cádiz. Año de 1808, pp. 1-3)].

Manifesto da Junta Suprema de Sevilha (17 de Junho de 1808)



Manifesto ou declaração dos principais factos que motivaram a criação desta Junta Suprema de Sevilha que, em nome do senhor Fernando VII, governa os Reinos de Sevilha, Córdova, Granada, Jaén e as províncias da Extremadura, Castela-a-Nova e as demais que forem sacudindo o jugo do Imperador dos franceses 



A Espanha descansava na sua própria grandeza, por tantos séculos conservada, e contava com a aliança e com as forças da França. Logo que fez a paz com esta em 1795, abraçou os seus interesses e entregou-lhe navios, dinheiro, tropa, e quantos auxílios foram exigidos. Até os próprios reis de Espanha pareciam feudatários da França; e pode-se dizer que a França deve os seus triunfos e progressos a esta união com Espanha. 
Entretanto, dominava a Espanha com império absoluto e despótico o perverso Godoy, que, abusando da excessiva bondade do nosso Rei Carlos IV, apropriou-se, em dezoito anos de favor, dos bens da Coroa, dos interesses dos particulares, dos empregos públicos que distribuía infamemente, de todos os títulos, honras, e até do tratamento de Alteza, com as dignidades de Generalísimo e Almirante, e com direitos aumentados sobre imensas e escandalosas quantias, que faziam transbordar a nossa miséria. 
Como parece que aspirava ao trono real e tinha como obstáculo o Príncipe das Astúrias D. Fernando, acometeu directamente à sua sagrada pessoa: atribuiu-lhe conspirações contra o seu augusto pai, e sob este pretexto o fez prender e expediu a horrível circular de 30 de Outubro de 1807 e a propriamente ridícula de 5 de Novembro seguinte. Os povos viram uma e outra com espanto. Não lhe deram fé alguma, e o Conselho de Castela, chamado ao conhecimento desta causa, unanimemente declarou que o Príncipe das Astúrias era inocente
O Rei pai não se conformou com esta providência e fez castigar com dureza os supostos cúmplices do Príncipe das Astúrias. Bastava ao povo espanhol o nome do seu Rei para obedecer e sofrer com silêncio; durou assim até ao mês de Março deste ano de 1808, quando o perigo do mesmo Rei e da pátria converteram a sua paciência em furor. Entretanto, os reis de Portugal tinham-se vistos obrigados a abandonar a Europa, passar à América, e mandar os seus vassalos a não levantarem resistência com armas ao exército francês que entrava no seu território. Tanta moderação não moderou nem acalmou a ambição de Napoleão. As suas tropas apoderaram-se de Portugal e fizeram nele estragos que estremecem a humanidade. Napoleão agregou ao seu império este Reino, e impôs-lhe contribuições duríssimas, quais não teria sofrido pelo mais feroz conquistador. 
A Espanha viu neste exemplo que se os seus reis a abandonavam, padeceria da mesma sorte que Portugal; ademais, que nem o nome espanhol, nem o amor que tem aos seus reis, nem outras mil razões podiam permitir que os espanhóis vissem com indiferença o transtorno das suas leis fundamentais e a aniquilação da sua monarquia, a mais gloriosa de toda a terra. 
Nesta conjuntura, torna-se público e dão-se provas de que os reis pais e toda a real família iriam abandonar a capital, passar à Andaluzia, e viajar para as Américas em embarcações inglesas. Estas vozes irritam extremamente o povo contra D. Manuel Godoy, único e solitário autor deste abandono. Todas as tropas da Casa Real, as demais do exército, e todos os habitantes honrados unem-se em Aranjuez para impedir a sua execução, o que conseguem. O infame privado excita a sua justa violência, e fica a dever a vida à generosidade do Príncipe das Astúrias. O Rei Carlos renuncia à Coroa, e remete ao Conselho o instrumento mais autêntico desta livre abdicação. Em sucessos tão extraordinários não se derrama uma gota de sangue em Aranjuez. Tal é a lealdade inaudita do povo espanhol. 
Em Madrid, o Conselho tornou pública a abdicação de Carlos IV e proclamou como Rei o seu filho mais velho, o senhor D. Fernando VII, Príncipe jurado das Astúrias. O povo da capital e o de toda a nação recebeu esta notícia com um júbilo nunca visto, e declarou o seu amor, a sua obediência e a sua fidelidade ao seu novo Rei com uma união, ardor e demonstrações tão novas que são desconhecidas na história da fidelíssima nação espanhola. Os exércitos franceses não puderam deixar de ver atónitos tão estranhos sucessos; e o próprio incêndio dos móveis de algumas casas suspeitas de Madrid foi executado com tal ordem, com tanto cuidado para que não padecesse o público, e sem derramamento de sangue, que se pode dizer que só a nação espanhola é capaz de semelhante circunspecção num tumulto popular. 
Todos acharam que os franceses se uniriam aos espanhóis para celebrar o feliz facto de se ter impedido que os seus reis abandonassem a Espanha e embarcassem na esquadra inglesa. Mas qual foi a sua admiração, quando viram que este mesmo sucesso, que devia ser tão agradável aos franceses, foi precisamente o pretexto que abraçaram para nos perseguir, destruir os nossos reis, acabar com a monarquia, e cometer horrores de que a história não fala nem pode falar. Foram estes tão multiplicados que será muito difícil, para não dizer impossível, pôr alguma ordem na relação dos que vamos indicar. 
Foi o primeiro [horror] a entrada do exército francês em Madrid, fixando artilharia em vários sítios públicos, e usando da autoridade como nunca o tinha feito monarca algum da Espanha; entretanto, continuavam as aclamações de Fernando VII, mas Carlos IV, enganado tantas vezes, fazia o seu protesto contra a abdicação anterior e enviava-o a Napoleão, pondo a sua sorte nas mãos deste. 
Fernando VII foi pessoalmente receber o próprio Napoleão, que tinha prometido e feito anunciar, através do duque de Berg, que vinha à Espanha no prazo de quatro dias. Fernando VII enviou diante de si o seu irmão, o infante D. Carlos, que, não tendo encontrando Napoleão, entrou na França. Seguiu-se-lhe o Rei Fernando até Vitória, e nesta cidade, o povo, a quem o seu coração terno e leal lhe fazia pressagiar o triste destino que Fernando esperava na França, impediu-o de sair, cortou os tirantes do coche, e gritou para que não se entregasse a Napoleão. O Rei, confiado na sua própria generosidade e na grandeza da sua alma, fez-se de surdo a estes clamores e continuou a sua viagem, entrando em Bayonne para abraçar Napoleão, que o tinha chamado a si com mil carícias e seguranças fingidas, dando-lhe nas suas cartas o tratamento de Rei de Espanha. 
Antes de se prosseguir, regressemos a Madrid e aos horríveis factos a que assisti. Fernando VII tinha criado uma Junta Suprema de Governo, cujos membros indicou, nomeando para Presidente o seu tio, o infante D. António. Era preciso destruir esta Junta e consumar os projectos de iniquidade que estavam tramados: para este fim fez-se sair de Madrid e passar à França a Família Real, sem exceptuar aqueles infantes que, pela sua tenra idade, deviam aparentemente inspirar alguma compaixão. O povo de Madrid enfureceu-se vendo este acontecimento, e o exército francês tomou daí o pretexto para entrar armado e com artilharia a 2 de Maio, guerreando raivosamente com aquele pobre povo, e cometer nele uma carnificina que ainda hoje faz tremer a sua memória. O débil governo espanhol, oprimido pelo duque de Berg, depois de ter proibido às tropas espanholas que saíssem para ajudar os seus irmãos, apresentou-se em público nas ruas de Madrid, e à sua vista o povo deixou as armas e acalmou o seu furor. 
Esta obediência, este respeito próprio do povo espanhol, em vez de aplacar irritou o ferocíssimo Murat, e sob o pretexto de que os populares levavam armas (o que só será proibido por uma lei posterior), ordenou que fossem fuzilados a sangue frio. Sofreram a morte, assim, sacerdotes que só levavam consigo um aparador de penas para escrever, artesãos que traziam navalhas ou instrumentos dos seus ofícios, e todo o tipo de pessoas, pelo simples capricho dum exército furioso, sem honra, sem religião e sem considerações. 
Seguidamente, o infante D. António foi obrigado a dirigir-se para Bayonne. Fernando VII tinha nomeado os vogais da Junta de Governo e ninguém podia agregar outros; não obstante, o estrangeiro Murat não teve vergonha em obrigar estes vogais a elegerem-no Presidente na sua própria presença, circunstância que, por si só, basta para convencer a horrível violência com que se procedia; no entanto, todos os vogais da junta assinaram este decreto e publicaram-no. 
Pretendia-se entretanto, através dos franceses, a formação dum partido em Madrid e no Reino por Carlos IV, valendo-se de proclamações capciosas e de outros meios indecentes, mas nada se pôde conseguir. Os autores destas tramas ficaram sem castigo, mas a nação, a Europa e o mundo todo viram que os franceses faltaram à verdade descaradamente, quando publicaram que na Espanha há divisões e partidos. Não os há, e para perpétua ignomínia dos que espalharam o contrário, a nação inteira grita que não deseja, não ama e não é de outro rei senão do senhor Fernando VII. Apareceu por fim no Conselho de Castela o protesto de Carlos IV enviado por Napoleão a Murat, e este tribunal, dominado por um terror que será a sua eterna deshonra, decidiu que não era Rei de Espanha Fernando VII, mas sim Carlos IV, pela nulidade da sua abdicação. Que reflexões se apresentam de tropel aqui, quando se considera que o Conselho é o primeiro tribunal de justiça do Reino, e os seus ministros os ministros das leis! Mas continuemos. 
Em virtude de Carlos IV ter reassumido a coroa, entrou outra vez na potestade de eleger um governador do Reino; e afectando o espírito e a linguagem francesa até nas palavras, indicou para este emprego, com o título de Lugar-Tenente, Murat, ou seja, o duque de Berg. Até aqui parecia que se tinham guardado as formas, mas muito rapidamente acabou-se até com a aparência delas. A 4 de Maio, em Bayonne, Carlos IV declarou-se rei, dizendo que queria consagrar os últimos dias da sua vida ao governo e felicidade dos seus vasalos. Pois no dia 8 do mesmo mês o rei Carlos esqueceu-se de tudo isto e renunciou à Coroa de Espanha a favor do Imperador Napoleão, com a faculdade expressa de que este a pudesse pôr em quem quisesse, segundo a sua vontade. Que contradições! Que insensatez! 
A monarquia de Espanha não era de Carlos IV, nem este a tinha por si mesmo, mas sim por direito de sangue, segundo as nossas leis fundamentais; e o mesmo Carlos IV acabava de assentá-lo e dizê-lo ao reassumir o Reino. Com que autoridade e com que direito aliena a coroa de Espanha e trata os espanhóis como rebanhos de animais que pastam nos campos? Com que poder priva da monarquia os seus filhos e descendentes e todos os herdeiros dela pelo nascimento e pelo sangue? 
Será certamente uma prova autêntica da cegueira espessíssima a que conduz a ambição, o facto de que Napoleão, com o seu ponderado talento, não tenha conhecido estas verdades, lançando sobre si a infâmia eterna de ter recebido a monarquia espanhola de quem não tinha nenhum direito e poder para dá-la. E a mesma nulidade haveria se conseguisse realizar os seus infames desígnios de entronizar como Rei de Espanha o seu irmão José Napoleão; pois nem este nem Napoleão I podem ser nem serão reis de Espanha, senão pelo direito de sangue que não têm, ou por eleição unânime dos espanhóis, que jamais a farão - saibam-no assim desde agora e para sempre. 
Quiseram-se autorizar estas violências com o nome e assinatura de Fernando VII e para isto se publicou primeiramente a sua renúncia a favor do seu pai Carlos IV, e depois uma outra, desta vez a favor de Napoleão, a qual, violentados, assinaram Fernando, o seu irmão o infante D. Carlos, e o seu tio o infante D. António. Há motivos gravíssimos para se presumir que estas duas renúncias são supostas; mas ainda que sejam verdadeiras, nelas mesmas está evidente a violência com que se fizeram e a sua completa nulidade. A 4 de Maio, Carlos IV reassumiu o trono, e com a data de 6 aparece a renúncia de Fernando VII. Se Carlos IV podia por si mesmo reassumir o trono, para quê a renúncia de Fernando VII? Se esta renúncia era de todo necessária, com que autoridade Carlos IV reassumiu o trono antes dela? * 
O mesmo argumento, e ainda com mais força, aplica-se à renúncia do domínio de Espanha a favor de Napoleão. Carlos IV fê-la em 8 de Maio, e Fernando VII em 12. Não foi pois válida a de Carlos IV em 8 porque faltava a de Fernando VII, e se foi válida, para quê se exigia esta outra? 
Numa e noutra, a violência que se fez a todos é manifesta e não tem exemplo igual. Fernando VII foi tratado, logo que entrou em França, com um desprezo que não podia imaginar-se. Está rodeado de guardas franceses; foi separado da sua comitiva; foi reduzido a um estado miserável; e ainda lhe ameaçaram de morte **. O mais estranho é que Napoleão não alcançou o seu fim com toda esta ignomínia. Depois de Fernando VII, o seu irmão o infante D. Carlos, toda a Família Real e a sua descendência ficam com um direito inviolável ao trono de Espanha. Causará admiração à posteridade que o próprio Conselho de Castela se tenha prestado a tantas e tão horríveis usurpações, e que as tenha autorizado com o seu nome, o qual enganou a alguns pouco reflexivos. É mais claro que a luz que o Conselho de Castela não tem poder algum para mudar a dinastia reinante e transtornar as leis fundamentais na ordem da sucessão. As consequências horríveis de terem sidos obrigados a derrogar o poder que não têm trouxeram males gravíssimos à nação inteira. 
Foi pois por toda a necessidade e para remédio daqueles [males] que se criou a Junta Suprema de Governo de Sevilha, a instâncias do povo, e que no uso das suas faculdades se tenha declarado independente, desobedecendo ao Conselho e Junta Superior, cortando toda a comunicação com Madrid, levantando exércitos, e fazendo-os marchar para guerrearem com os franceses. Deus lançou a sua santa bênção sobre nós e sobre as nossas puras intenções. Dos dias 23 a 27 de Maio toda a nação se levantou em massa a proclamar o seu Rei e defender a sua pátria. Elegeram-se Capitães-Generais e chefes do exército. Estes foram organizados, correndo os povos com ardor às armas, e as classes e corpos poderosos fazem abundantes donativos. 
A Andaluzia era acometida por um exército francês [comandando pelo General Dupont] no mesmo momento em que levantou a voz pela sua religião, pelo seu Rei e pela sua pátria, e em menos de quinze dias temo-lo já cercado e não poderá escapar de se render ou de se retirar vergonhosamente. A esquadra francesa ancorada em Cádis acaba de arrear a sua bandeira e sensatamente entrega-se a nós. As províncias de Espanha vão reconhecendo nesta Suprema Junta o fiel depósito da autoridade real e o centro da união, sem o qual expor-nos-íamos a guerras internas ou civis que arruinariam completamente a nossa santa causa. 
Tratámos um armistício com os ingleses e temos livre comunicação com eles. Ofereceram e deram-nos muitos auxílios, e esperamos outros maiores. Desembarcaram parte das suas tropas, e lutam já em alguns dos nossos pontos ***; estão em Cádis prontos a embarcar três enviados nossos ao Rei da Grã-Bretanha, que tratarão e ajustarão uma paz durável e vantajosa com a nação inglesa. Portugal está em comoção e pronto a sacudir o seu vergonhoso jugo. 
As Américas, tão leais ao seu Rei como a Espanha europeia, não podem deixar de se unir a ela numa causa tão justa. Uno será o esforço de ambas pelo seu rei, pelas suas leis, pela sua pátria e pela sua religião. Ameaçam também as Américas, se não se reúnem a nós, os mesmos males que sofreu a Europa, a destruição da monarquia, a mudança do seu governo e das suas leis, o desregramento horrível dos costumes, os roubos, os assassinatos, a perseguição dos sacerdotes, a violação dos templos e das virgens consagradas a Deus, a extinção quase total do culto e da religião; em suma, a escravidão mais bárbara e vergonhosa, sob o jugo dum usurpador que não conhece nem piedade, nem justiça, nem humanidade, nem até sinal algum de vergonha. 
Burlaremos as suas iras uma vez reunidas a Espanha e as Américas espanholas. Esta Junta Suprema cuidará de tudo com um zelo infatigável. As Américas sustentarão-na com quanto abunda no seu fértil solo tão privilegiado pela natureza, enviando imediatamente os fundos reais e todos quantos possam adquirir-se por donativos patrióticos dos corpos, comunidades, prelados e particulares. O comércio voltará a florescer com a liberdade da navegação e com os favores e graças oportunas que lhe dispensará esta Junta Suprema, de que podem estar certos os nossos compatriotas. 
Somos todos espanhóis. Sejamo-los, pois, verdadeiramente reunidos na defesa da religião, do rei e da pátria. 
Palácio Real do Alcázar de Sevilha, a dezassete do mês de Junho do ano de mil oitocentos e oito. 

Francisco de Saavedra, Presidente. 
El arzobispo de Laodicea, coadministrador do desta diocese 
Fabián de Miranda y Sierra. 
Francisco Cienfuegos. 
Vicente Hore. 
Francisco Díaz Bermudo. 
Juan Fernando Aguirre. 
El conde de Tillí. 
El marqués de Grañina. 
El marqués de las Torres . 
Andrés de Miñano y las Casas. 
Antonio Zambrana Carrillo de Albornoz. 
Andrés de Coca. 
Josef de Checa. 
Eusebio Herrera. 
Adrián Jacome. 
Antonio Zambrano. 
Manuel Peroso. 
Josef Morales Gallego. 
Víctor Soret. 
Celedonio Alonso. 
Manuel Gil. 
Josef Ramírez. 

Por mandado de Sua Alteza Sereníssima, 
Juan Bautista Pardo, secretário, 
Manuel María Aguilar, secretário.


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Notas:

* Deve-se aclarar que, aparentemente, a Junta de Sevilha somente tinha conhecimento da renúncia anunciada numa carta de 6 de Maio de Fernando VII ao seu tio o infante D. António (presidente do Governo provisório criado pelo sobrinho), desconhecendo um facto anterior: Fernando VII tinha renunciado à coroa no dia 1 de Maio (embora condicionalmente), conforme ele próprio o atestou novamente numa carta de 6 de Maio, enviada a seu pai, carta esta onde fica finalmente assente a sua renúncia incondicional.

** Como se vê, o mito do "rapto" e da "prisão" de D. Fernando foi construído pouco depois de chegarem à Espanha as notícias da sua abdicação (e pouco faltaria para que o começassem a apelidar de Desejado). Na verdade, em troca da sua abdicação, D. Fernando passou a viver no château de Valençay com o seu irmão D. Carlos e com o seu tio D. António (entre outros membros da sua comitiva), à custa de largas rendas provenientes dos cofres franceses. Contudo, a mitificação já estava consumada: "Na guerra da independência os espanhóis improvisaram tudo, começando pelo mito preciso, e que sempre lhes foi necessário para prosseguirem em diante. Aqui o mito foi o próprio Fernando, idealizado no seu Palácio-prisão de Valençay como modelo de virtudes, como acumulado de sofrimentos, como protótipo de integridade. O amado  Rei Fernando era como o príncipe encantado pelo qual combatia a Espanha inteira" [Fonte: Fernando Solano Costa, "Influencia de la Guerra de la Independencia en el pueblo español", in Revista de Historia Jerónimo Zurita, n.º 3, 1952, pp. 103-121, p. 108].

*** Na verdade, apesar de ser certo que algumas tropas inglesas tinham desembarcado perto de Cádis, nenhumas delas se tinham ainda envolvido, aquando da redacção deste manifesto, em qualquer tipo de luta no território espanhol.


Excerto de uma carta do General Spencer ao Secretário de Estado da Grã-Bretanha, Visconde Castlereagh (17 de Junho de 1808)




H.M.S. Windsor Castle, na barra de Ayamonte, 17 de Junho de 1808


Meu Senhor:

Aproveito a oportunidade proporcionada pela ida do Nautilus de Lord Collingwood até Sir Charles Cotton [ancorado na foz do Tejo], para vos felicitar pela rendição da esquadra francesa de cinco navios de linha de guerra e uma fragata, no ancoradouro de Cádis, às armas espanholas no passado dia 14; em cujo dias as cores espanholas foram hasteadas nos navios franceses. Os detalhes deste acontecimento importante e interessante será, sem dúvida, comunicado completamente a Vossa Senhoria por Lord Collingwood.
Também me causa muita satisfação informar-vos que o movimento que fizemos até aqui, conforme o requerimento do General Morla, foi realizado com o melhor efeito. As tropas francesas estão a retirar-se de todos os lugares em direcção a Lisboa, excepto alguns destacamentos muito insignificantes que continuaram ocupando os pequenos fortes e baterias neste lado de Portugal. O povo português está a levantar-se em todas as partes, encorajado fortemente pela nossa presença aqui; e assim, a fronteira espanhola no Guadiana está efectivamente segura de qualquer ataque dos franceses.
Tenho a honra de ser, etc.

B. Spencer, Major-General



Aviso publicado na Gazeta de Lisboa (17 de Junho de 1808)


AVISO


Tendo-se reunido ao Ministério da Guerra, por determinação de Sua Excelência o Senhor Duque de Abrantes, tudo quanto pertence à Administração das Coudelarias: todas as cartas, relações, ou petições relativas a esta Administração deverão ser dirigidas ao Secretário de Estado da Guerra com a inscrição: Serviço Imperial, Coudelarias, o qual as mandará ao Senhor Vergnette, Inspector Geral encarregado de informar o mesmo Ministro do seu conteúdo.
O mesmo se deve entender a respeito das diferentes petições que os particulares dirigem muitas vezes aos diversos chefes de divisão da Repartição da Guerra: não serão elas, de hoje em diante, recebidas do Correio Geral se não forem dirigidas ao Secretário de Estado da Guerra e da Marinha, que as mandará às diferentes Repartições da sua Secretaria.

[Fonte: 1.º Suplemento à Gazeta de Lisboa, n.º 24, 17 de Junho].

Notícia publicada na Gazeta de Lisboa sobre a procissão do Corpo de Deus em Lisboa (17 de Junho de 1808)



Lisboa, 17 de Junho 


Em Lisboa, a Procissão do Corpo de Deus é talvez mais magnífica que em outra alguma parte da Cristandade. Assistem a ela, todos os anos, a Corte, o Clero da capital, os Cavaleiros das Ordens Militares do Reino, os Corpos Monásticos e as Irmandades do Santíssimo [Sacramento] das diferentes freguesias desta cidade. A Procissão decorre a bela Praça do Rossio, as duas magníficas ruas que lhe ficam vizinhas, a Augusta e a Áurea, e a dos Capelistas: todas as casas e janelas deste circuito estão nesse dia armadas de damasco encarnado, de sorte que parecem estar convertidas num vasto Templo, com galerias cheias de espectadores, à roda do qual circula mui religiosamente a mais extensa das procissões.
O Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Duque de Abrantes, desejando ardentemente prestar uma nova homenagem à Religião, quis que a dita Procissão, que neste país é uma festividade nacional, se celebrasse este ano da mesma forma e com o mesmo aparato que nos anos anteriores; mas como fosse sangrado* no dia precedente, por causa de uma indisposição que lhe sobreviera, devia, em vez de acompanhar a Procissão, assistir a ela da varanda do Palácio da Intendência Geral da Polícia, situado na Praça do Rossio, diante do qual passava a Procissão; portanto, a dita varanda se achava disposta adequadamente para esse fim por ordem do Senhor Conselheiro do Governo, Intendente Geral da Polícia do Reino.
Sua Excelência passou ao Palácio da Intendência Geral pelas nove horas da manhã; e foi ali recebido pelas principais autoridades militares e civis, assim francesas como portuguesas.
A Procissão começou a sair, pelas dez horas, da Igreja de S. Domingos, contíngua à Praça do Rossio; e já a frente dela entrava na Rua Augusta, por entre duas alas de tropas.
Por toda a parte se via estabelecida a melhor ordem; e reinava esta entre o estranho concurso dos habitantes, senão quando um terror pânico se apodera da parte do povo que ocupava o meio da Rua Augusta: o medo vai lavrando, e a multidão se abala até à Praça do Rossio, como se estivesse ameaçada de algum grande perigo; falavam uns em movimento de artilharia, por se costumar pôr todos os anos naquela Praça algumas peças, para saudar o Santíssimo Sacramento; e outros imaginavam que havia um tremor de terra; cada um se figura uma causa grave para uma fugida inesperada, e ninguém sabia ainda que só se tratava de um ladrão que acabava de ser preso na Rua Augusta pela Guarda Militar, e que para fugir favorecido pela confusão, gritara que lhe acudissem, ao escapar-se.
Assim que o Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Duque de Abrantes advertiu, do alto da varanda, nesta agitação, que podia tornar-se perigosa em meio de uma tal multidão, deu as suas ordens e desceu pessoalmente à Praça, ao príncipio só, mas em breve se viu seguido dos membros das autoridades militares e civis. A sua presença e a sua voz detém, como por uma espécie de prestígio, aquela multidão que por todos os lados se precipitava: “De que tendes medo? grita ele. Não estou eu em meio de vós? Que podeis recear onde eu estou? Sem dúvida há aqui engano, ou insinuação de alguns dos nossos inimigos comuns. Olhai para as minhas tropas que estão à roda de vós! Sede como elas, tranquilos e imóveis!”.
Imediatamente torna a si todo o povo, ficando cada indivíduo no seu lugar, sem que houvesse (o que custará a crer, não obstante ser um facto sabido de toda a capital) outro acidente senão o estarem por terra cinco ou seis pessoas, mas sem dano algum, e uma tão somente ferida, ao cair. Nem um só soldado saiu da sua fileira ou fez uso da sua arma, ainda que alguns tivessem de cair ao chão; todos porém num instante tornaram a ficar na sua posição.
Sua Excelência o General em Chefe passa logo à Igreja, onde se achava ainda a maior parte da Procissão; ali se vê rodeado de uma multidão imensa, que ignorava o que fora dela tinha acontecido, e que deitada aos seus pés lhe dizia em alta vós: Senhor, livre-nos deste perigo! Declara logo Sua Excelência que a sua intenção é que a Procissão prossiga imediatamente; e que para desenganar as pessoas que pudessem crer que havia o menor perigo, ia em pessoa acompanhá-la.
Em menos de dez minutos se torna a formar a Procissão com a mais perfeita tranquilidade e o mais piedoso recolhimento; e faz-se com a mesma solenidade que se observara nos anos em que mais brilhante fora.
O Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Duque de Abrantes, sem embargo de estar doente, e apesar do ardor do Sol à hora do meio-dia, não quis aceitar um pálio (dais) [sic] que se lhe oferecera; ia só, a pé, descoberto, precedido dos seus Ajudantes de Campo, e seguido das diversas autoridades militares e civis.
Nunca houve ocasião em que Sua Excelência mais conciliasse a atenção do povo, e que visse da parte deste maior interesse e maiores testemunhos de afeição. Parecia que todos o congratulavam daquela inspiração tão rápida e tão judiciosa, que lhe fizera opôr um remédio certo a uma desordem que, a não ser a sua presença e a confiança universal que ela excita, podia ter bem tristes consequências; davam todos mostras de agradecer-lhe o ter livrado do medo e quase de que soubessem do dito acidente as demais partes da cidade, que disso só ouviram falar depois de se ter acabado a Procissão no maior sossego, e sem que a malevolência pudesse já semear a mais leve inquietação pela pronta maneira com que ficara restabelecida a seguridade.
O resto da tarde e a noite do mesmo dia se dedicaram aos passeios de costume, em carruagem, pela Praça do Rossio e ruas vizinhas; por todas as partes ressoavam as expressões do mais vivo reconhecimento, correndo de boca em boca para com o Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Duque de Abrantes, cuja admirável presença de ânimo, muitas vezes tão necessária no interior das cidades como nos campos de batalha, acabava de fazer a esta capital um tão importante serviço!

[Fonte: 1.º Suplemento à Gazeta de Lisboa, n.º 24, 17 de Junho].

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Nota: 

* A sangria era uma prática medicinal algo bárbara mas bastante utilizada em Portugal em pleno século XIX, sendo receitada para inúmeras doenças ou sintomas (desde febres a dores, de insónias a inflamações nos olhos, e até mesmo a hemorragias!). Partindo do princípio de que o sangue de um doente estava impuro, consistia a sangria numa espécie de hemodiálise à antiga, isto é, sem reposição do sangue retirado... [Cf. Novos Principios de Cirurgia...- Tomo II, Lisboa, Typografia Rollandiana, 1817, pp. 40 e ss.].
A este respeito, Camilo Castelo Branco (cuja vasta obra tem inúmeras referências a este suposto tratamento), refere curiosamente que “um francês que esteve em Lisboa por 1728, escreveu: Les Medecins du Païs passent dans l'esprit de la Nation pour être fort habilès; cependant ils sont extrêmement prodigues de sang, et ne connoissent presque d'autre remede que la saignée. Dans les maladies ordinaires, ils commencent par ordonner uma meia dúzia de sangrias, c'est-à-dire, demi douzaine de saingées; et quand le mal se rend opiniâtre, ils poussent l'ordonnance jusqu'à quinze et vingt; tellement que ce qui peut arriver de mieux au malade, c'est d'en être quitte pour un epuisement dont il a bien de la peine à se remettre”. [in Description de la ville de Lisbonne, Paris, 1730, apud Camilo Castelo Branco (pref.), Os Ratos da Inquisição – Poema inedito do Judeu Portuguez Antonio Serrão de Castro, Porto, Ernesto Chardron – Editor, 1883, p. 21].

Outras notícias publicadas na Gazeta de Lisboa (17 de Junho de 1808)



D. José Sebastião de Saldanha, que fora expedido por Sua Excelência o Duque de Abrantes a 4 deste mês a Bayonne com uma segunda via da representação dos portugueses a Sua Majestade o Imperador dos franceses, e que devia trazer a resposta da mesma, não pôde passar às fronteiras da Espanha, e voltou já a Lisboa. Por felicidade, porém, o correio extraordinário incumbido do original, que partira na noite de 2 para 3, e que devia chegar naturalmente antes do mesmo D. José Sebastião, passou por Almeida, no seu caminho para Salamanca, onde era de esperar que chegasse a 6, visto que fora encontrado na noite precedente entre Salamanca e Ciudad Rodrigo.

Anunciam as cartas das fronteiras de França que por ali se vê passar diariamente muitas tropas, as quais aceleram a sua marcha para vir a acabar de sujeitar à razão os facciosos que pelas suas imposturas procuram enganar e sublevar algumas províncias da Espanha contra o novo Rei que o Céu e o Grande Napoleão concederam aos votos dos principais corpos da Monarquia. Por notícias fidedignas consta que o medo vai entrando nas Juntas revolucionárias; que a de Sevilha, entre outras, treme à aproximação do Exército do General Dupont, que talvez se acha já dentro daquela cidade, e que ela mendiga de umas e outras partes socorros, cuja precisão atesta a convicção em que está de que lhe é impossível resistir à autoridade legítima.

[Fonte: 1.º Suplemento à Gazeta de Lisboa, n.º 24, 17 de Junho].


Proclamação de Junot traduzida e comentada pelos espanhóis (e publicada no Diário de Badajoz de 17 de Junho de 1808)