quarta-feira, 13 de abril de 2011

A entrada das tropas portuguesas (futura Legião Portuguesa) na Espanha



Depois de ter desmantelado e desarmado uma grande parte do exército português, Junot mandou reestruturar a parte restante, com o objectivo de enviá-la para a França, conforme as ordens que nesse sentido já várias vezes tinha recebido da parte de Napoleão. A custo, essas tropas foram organizadas, compondo-se assim um corpo de cerca de nove a dez mil homens comandados pelo General em chefe Marquês de Alorna, tendo Gomes Freire de Andrade como segundo no comando, e Manuel Inácio Martins Pamplona como chefe do Estado-Maior. 

Segundo uma carta de 29 de Março de Junot a Napoleão, estas tropas (que em meados de Maio tomarão o nome de Legião Portuguesa) estavam naquela data a caminhar para a fronteira, e estariam prontas para sair de Portugal nos primeiros dias de Abril (depois de terem sido avisadas que iriam partir para Valladolid), não tendo saído antes devido a entretanto se ter retirado uma grande parte das tropas espanholas que estavam em Portugal (facto este que Junot tinha comunicado a Napoleão a 23 de Fevereiro). Segundo o cruzamento de dados de diversas fontes, as tropas portuguesas reuniram-se em pelo menos dois pontos fronteiriços: Portalegre-Marvão e Almeida. Segundo a referida carta de Junot de 29 de Março, esta divisão tinha como fim observar e controlar as movimentações da Divisão da Galiza e da Divisão de Solano. Idênticas medidas, aliás, tinham também sido dispostas, no lado da Espanha, pelo Grão-Duque de Berg.  


Percurso transfronteiriço entre Portalegre e Alcántara



Supomos que as tropas portuguesas que se tinham reunido no Alto Alentejo passaram a fronteira por volta do dia 2 de Abril. O que é certo é que, já no dia 3, D. Roberto Inácio Ferreira de Aguiar, Coronel do 1.º Regimento de cavalaria deste corpo, deu ordens a um oficial seu para que avançasse e se adiantasse até Alcántara, onde chegou às três da tarde, avisando o seu Governador que dentro de uma hora entrariam mais de 3.000 homens naquela praça. Carecendo de ordens prévias, o referido Governador, D. Fernando de Manuel Villena, comunicou imediatamente este facto ao Comandante-General da província espanhola da Extremadura:


Acaba de se apresentar às três da tarde deste dia um Oficial de cavalaria portuguesa com passaporte passado pelo seu Coronel D. Roberto Inácio Maria [sic] de Aguiar, que diz que se dirige à cidade de Valladolid, e que a força do seu Regimento, que entrará às quatro da tarde deste mesmo dia com o dito Coronel, é de 425 cavalos e 3.200 homens, e pede alojamento e toda a ração de cevada, palha, carne, pão e legumes, segundo o regulamento das tropas francesas, à excepção de vinho. Segundo o referido passaporte, entram neste Reino com destino a Valladolid, em observância às ordens de Sua Majestade Imperial Rei de Itália, dadas pelo sr. General em Chefe dos Exércitos do Reino de Portugal e Governador do mesmo Reino. 
Ainda que por V.S.ª nenhuma ordem me foi comunicada relativa à entrada destas tropas nos nossos Reinos, devido ao passaporte que me foi apresentado e por não se alterar as circunstâncias nem querer desagradar à fiel aliança entre a nossa Corte e a do Império da França, aprontei o alojamento e subministros que me pedem. 
O que ponho ao corrente de V. S.ª num momento de ilação, em cumprimento do que me tem prevenido em relação às tropas francesas que entrem na província, manifestando-lhe ao mesmo tempo que o dito Oficial português será seguido pelas tropas portuguesas de cavalaria e de artilharia que estão na província do Alentejo, que entrarão no nosso Reino com o mesmo destino, e que farão a sua rota por esta Praça, para que em vista e em contestação desta carta me diga V.S.ª como as devo receber. 
Deus Guarde a V.ª S.ª muitos anos. 
Alcántara, 3 de Abril de 1808.

Fernando de Manuel Villena




Dois dias depois, o Comandante-General da Extremadura (que também era Governador da Praça de Badajoz), Conde de la Torre del Fresno, respondia da seguinte forma ao Governador de Alcántara:



Badajoz, 5 de Abril de 1808


Sr. D. Fernando de Manuel Villena:

Recebi nesta tarde o ofício de V.S.ª do dia 3 do corrente mês, no qual me dá parte de que ia entrar nessa Praça de Alcántara um corpo de Cavalaria portuguesa com destino a Valladolid, segundo diz que lhe informou o Oficial português do itinerário que lhe foi apresentado, o qual lhe manifestou ademais o número tropas de Infantaria e Cavalaria do Exército português que existe na província do Alentejo que entrarão neste Reino para se dirigirem à mesma cidade, por disposição do sr. General em Chefe francês, Governador daquele Reino. Por este motivo pede-me V.S.ª que lhe diga em que termos deverá receber as tropas, devido a que nem por mim nem pelos superiores lhe foi comunicada ordem alguma sobre o assunto; em todo o caso, eu tampouco tenho ordens sobre isto em particular, pelo que darei parte aos superiores desta ocorrência para saber como haverá de proceder sobre este sucesso. Entretanto, em relação aos subministros de víveres que estas tropas pedirem, atenderá V.S.ª às instruções que indubitavelmente lhe comunicará o Cavaleiro Intendente Geral deste Exército e Província.  
Deus &tc.


[Nota: O referido Intendente Geral da Extremadura era Martín de Garay, que entrara em Portugal com as tropas do Marquês del Socorro (responsabilizando-se pela administração civil, militar e fiscal do Alentejo, Algarve e comarca de Setúbal) e que regressara à Espanha acompanhando a retirada das mesmas, nos primeiros dias de Março]. 

Conforme tinha prometido, o Conde de la Torre del Fresno escreveu seguidamente sobre este assunto à autoridade competente, D. António de Olaguer y Feliú, secretário de Estado e dos Negócios da Guerra:



Badajoz, 7 de Abril de 1808


Ex.mo Sr.

No dia 5 do corrente mês, depois de ter saído o correio para essa Corte [de Madrid], recebi um ofício do Governador de Alcántara, do qual tenho a honra de passar a V.ª Ex.ª a cópia adjunta, em que me pede que lhe diga em que termos deverá receber as tropas portuguesas que, por disposição do sr. General em Chefe francês, Governador de Portugal, transitarão por aquela Praça em direcção à cidade de Valladolid. Contestei-lhe que, por achar-me sem instruções para o caso, consultaria Sua Majestade através de V.ª Ex.ª, e que enquanto não chegue a soberana resolução, pode cumprir a parte que respeita aos subministros de víveres que estas tropas pedirem, de acordo com as ordens que sem dúvida lhe comunicará o Intendente deste Exército e província. 
Espero que V.ª Ex.ª, tendo em vista tudo isto, se dignará de me prevenir acerca do que se praticará a este respeito. 
Deus &tc.



Finalmente, a 12 de Abril, esta carta chega a Madrid. Como quatro dias antes D. Fernando VII tinha partido daquela capital para ir ao encontro de Napoleão, o assunto foi comunicado à Junta de Governo presidida pelo tio do novo monarca, o infante D. António, irmão do deposto Carlos IV. As resoluções desta Junta foram comunicadas então ao Conde de la Torre del Fresno por D. Gonzalo O’Farril, Tenente-General dos Exércitos espanhóis (nomeado para este cargo apenas seis dias antes, por D. Fernando VII):


Informado o Sereníssimo sr. Infante D. António, que preside a Junta de Governo, do que V.ª S.ª expõe na sua carta de 7 do corrente mês, acerca do que há de praticar com as tropas portuguesas que, por disposição do General Junot se dirigem a Valladolid, foi Sua Alteza servido resolver, de acordo com a citada Junta, que não faça V.ª S.ª novidade alguma e que observe o que se praticou no trânsito das tropas francesas, até que pela via de Estado se comunique o que seja conveniente sobre este assunto. O que participo a V.ª S.ª a ordem de Sua Alteza com acordo da Junta de Governo para sua inteligência. 
Deus Guarde a V.ª S-ª muitos anos. 
Madrid, 12 de Abril de 1808. 
Gonzalo O’Farril



Entretanto, a 16 de Abril, a vanguarda do corpo português entrava em Salamanca. 

Já a 22 de Abril, Junot informava Napoleão que "todas as tropas portuguesas estão fora do Reino, com excepção de um Regimento de Cavalaria e da artilharia, de que eu tinha necessidade e conservei, mas há uma prodigiosa quantidade de desertores; era impossível outra coisa num país onde os soldados não são militares e, principalmente, onde os oficiais são o que há de pior". [Fonte: Junot, Diário da I Invasão Francesa, Lisboa, Livros Horizonte, 2008, p. 160 (n.º 105)].

Dois dias depois, o referido Tenente-General dos Exércitos espanhóis, D. Gonzalo O’Farril, voltava a escrever ao Tenente-General da Extremadura. Por esta carta percebe-se que o Comandante-General da província espanhola da Extremadura, Conde de la Torre del Fresno, tinha voltado a escrever para Madrid acerca deste assunto, e que afinal o novo Governo já tinha conhecimento, desde o dia 29 de Março, que o dito corpo português entraria na Espanha nos dias seguintes (ou seja, antes mesmo que o Governador da Praça de Alcántara tivesse sido informado). Igualmente já tinham sido dadas as primeiras ordens para aprovisionar e alojar as tropas e respectiva cavalaria: 

Em ofício com a data de ontem disse-me o sr. Secretário de Estado: 
Em resposta ao ofício de 22 do corrente mês em que V. Ex.ª me pergunta o que consta no Ministério de Estado acerca da entrada neste Reino de tropas portuguesas, por disposição do General em Chefe do Exército em Portugal, mr. Junot, devo dizer a V. Ex.ª que em 29 de Março comunicou o General Chefe do Estado-Maior do Exército francês em Espanha, mr. Belliard, ao sr. D. Pedro Cevallos, que entre o dia 10 e 15 do corrente mês entrariam neste Reino, em direcção à cidade de Valladolid, nove mil homens de Infantaria e mil e seicentos de Cavalaria portuguesa, e que era necessário que se lhes preparassem alojamentos, víveres e forragens; que na mesma data o sr. Pedro Cevallos passou esta informação ao Ministério da Fazenda para que se dessem as ordens respeitantes, como o desejavam os franceses; que a 2 do corrente mês o sr. D. Miguel Josef de Azanza [Secretário da Fazenda], a quem lhe tinha comunicado a ordem, assinalou a impossibilidade de manter essa tropa portuguesa numa cidade que tinha ficado exausta com a estância de tantos franceses, e indicou que, particularmente para a cavalaria, seria melhor destiná-la a Zamora, pela sua maior abundância de forragens; que a 8 do mesmo mês comunicou o Ministério da Fazenda ao do Estado esta representação do Intendente para a resolução de Sua Majestade, e o sr. D. Pedro Cevallos passou cópia dela ao sr. Embaixador da França, para que, tomando em consideração essas dificuldades, as fizesse presentes ao Grão Duque de Berg; e que o sr. Embaixador da França respondeu ao sr. D. Pedro Cevallos, de parte do Grão Duque, que sendo o Imperador dos franceses quem tinha fixado o destino de Valladolid para essa tropa portuguesa, não estava no arbítrio de Sua Alteza a sua mudança. 
Transcrevi a V.S.ª a ordem de Sua Alteza o sr. Infante D. António, de acordo com a Junta do Governo, para o seu cumprimento na parte que lhe toca. 
Deus Guarde a V.S.ª muitos anos. 
Madrid, 24 de Abril de 1808.



Cinco dias depois desta carta ter sido escrita, as tropas portuguesas já se encontravam em Burgos, mas bastante reduzidas, dado que entretanto já tinham deserdado cerca de 3.000 soldados, devido em grande parte ao mau estado em que se encontravam. 
Segundo o pitoresco relato de um dos militares que fez parte deste corpo:


[Fonte: Historia da Legiaõ Portugueza em França, Londres, Impresso por T. C. Hansard, 1814, p. 16].




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A correspondência trocada entre as autoridades espanholas aqui transcrita e traduzida encontra-se num conjunto documental disponível no site do Ministerio de Cultura de España, intitulado precisamente "Correspondencia del Comandante General de Extremadura, sobre la entrada de tropas españolas en Portugal a finales de 1807, la llegada del Ejército francés a la región, su aprovisionamiento y colaboración con él de las autoridades españolas de Extremadura a comienzos de la guerra" (cota: ES.28079.AHN/5.1.145.4.1.1.57.2//DIVERSOS-COLECCIONES,136,N.31).



Os interessados sobre os episódios seguintes vividos por estes portugueses podem consultar a seguinte bibliografia disponível on-line:

Historia da Legiaõ Portugueza em França, Londres, Impresso por T. C. Hansard, 1814.


- "Legião Portuguesa", in Portugal - Dicionário Histórico, Corográfico, Heráldico, Biográfico, Bibliográfico, Numismático e Artístico - Volume IV, Lisboa, João Romano Torres - Editor, 1904-1915, pp. 110-112 (apud ed. electrónica de Manuel Amaral).


- Ribeiro Artur, Legião portugueza ao serviço de Napoleão, Lisboa, Livraria Ferin, 1901 (introdução, I parte, II parte, III parte, IV parteapud ed. electrónica de Manuel Amaral).