terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Decreto proibindo novamente a caça e o uso e porte de armas (15 de Fevereiro de 1808)


Como atrás indicámos, uma das primeiras medidas que Junot teve ao entrar em Lisboa foi decretar, a 4 de Dezembro de 1807, a proibição da caça e do uso de armas sem licença. Apesar de neste decreto constar que esta medida devia ser aplicada "em toda a extensão de Portugal", pouco depois os espanhóis começavam a entrar nas províncias que lhes estavam destinadas (de acordo com a convenção anexa ao tratado de Fontainebleau), sendo possível que estas ordens de Junot nunca tenham sido levadas a cabo nas províncias governadas pelos Generais Solano e Tarranco. 
É assim já depois de anunciar que passava a governar todo o país (a 1 de Fevereiro de 1808), e curiosamente, um dia depois de ter respondido à carta de Napoleão datada de 28 de Janeiro, onde este lhe ordenava para desarmar "o país o mais completamente possível", que Junot repete aquela proibição: 



Em nome de Sua Majestade o Imperador dos franceses e Rei de Itália. 
O General em Chefe do Exército de Portugal:  
Considerando que, debaixo do pretexto de andar à caça, se cometem diariamente assassínios; e sendo a intenção do General em Chefe que a caça seja destruída com ordem nas terras onde possa ser nociva, decreta:  
O uso das armas de fogo e o caçar ficam geralmente proibidos em toda a extensão de Portugal, particularmente nas coutadas da Coroa. 
Todo o indivíduo não militar que se encontrar armado de espingarda ou de pistolas, será considerado como vagabundo assassino nas estradas, e como tal será conduzido perante uma comissão militar, que para esse efeito se há de organizar.  
Os Generais que comandam nas províncias, os Corregedores e Juízes de todas as classes ficam encarregados da execução do presente decreto, que será impresso e afixado em todo o reino de Portugal.  
Dado no Palácio do Quartel-General em Lisboa, aos 15 de Fevereiro de 1808.  
Junot 


[Fonte: Gazeta de Lisboa, n.º 9, 1 de Março de 1808; Claudio de Chaby, Excerptos Historicos e Collecção de Documentos relativos á Guerra denominada da Peninsula... - Vol. VI, Lisboa, Imprensa Nacional, 1882, pp. 33-34].

Decreto sobre o desarmamento dos Regimentos de Milícias nas províncias até então governadas pelos espanhóis (15 de Fevereiro de 1808)



Junot, na carta de 14 de Fevereiro, escreveu a Napoleão que "ao desarmar as milícias, desarmei o país". De facto, os regimentos de milícias, que eram em número superior a meia centena, eram preenchidos por vários milhares de soldados portugueses; contudo, a bazófia de Junot contrasta com a realidade. De facto, Junot tinha decretado (somente um mês depois de ocupar Lisboa) o licenciamento e desarmamento dos Regimentos de Milícias, mas apenas das províncias que, até então, e em teoria, estavam nas mãos dos franceses (Estremadura, Beira e Trás-os-Montes). Nas restantes províncias, tinham sido os Generais espanhóis que haviam dado ordens tendo em vista o mesmo fim. Não obstante, Junot publica o seguinte decreto precisamente um dia depois de ter escrito a referida carta a Napoleão:



Em nome de Sua Majestade o Imperador dos franceses e Rei de Itália.


O General em Chefe do Exército de Portugal

Decreta


Todos os Regimentos de Milícias existentes nas províncias de Entre-Douro-e-Minho, Alentejo, Algarve e comarca de Setúbal estão licenciados.

Os Coronéis farão juntar em casa dos Capitães as armas que resultarem do desarmamento das Companhias respectivas, as quais armas deverão ser imediatamente conduzidas aos armazéns de artilharia:

Ao Porto, na província de Entre-Douro e Minho;

A Elvas, na província do Alentejo;

E a Setúbal, na província do Algarve e comarca de Setúbal.

O Comandante de Artilharia dará um recibo; e as armas serão classificadas de maneira que possam ser reconhecidas e entregues a seus donos, quando for julgado necessário.

Todas as armas que resultarem do referido desarmamento, deverão achar-se no lugar do seu destino, o mais tardar, um mês depois da publicação do presente decreto.

Os Coronéis de milícias, Capitães, Corregedores e Juízes de Fora ficam pessoalmente responsáveis pela demora que puder encontrar a entrada das ditas armas.

O Secretário de Estado, Ministro da Guerra, fica encarregado da execução do presente decreto, o qual será impresso e afixado; o mesmo Ministro nomeará um Oficial superior em cada província para vigiar e acelerar a sua pronta execução.

Dado no Palácio do Quartel-General de Lisboa, aos 15 de Fevereiro de 1808.


Junot



Conforme ao original.
O Secretário de Estado da Guerra e Marinha,


Luuyt 
[Fonte: Gazeta de Lisboa, n.º 8, 23 de Fevereiro de 1808; Claudio de Chaby, Excerptos Historicos e Collecção de Documentos relativos á Guerra denominada da Peninsula... - Vol. VI, Lisboa, Imprensa Nacional, 1882, pp. 32-33].

Carta de Napoleão e resposta de Junot



No final de Janeiro de 1808, Napoleão escreveu a seguinte carta a Junot: 


Paris, 28 de Janeiro de 1808

Fixei o salário do administrador geral das finanças de Portugal [mr. Hermann] em 100.000 francos, e garanti 50.000 francos para cobrir as despesas iniciais. Li o seu relatório; ele propõe duas coisas: 
1.ª Não dividir o reino. É também a minha intenção. Já vos fiz conhecer, e repito-vos, que a administração deve ser una e inteira, até que as circunstâncias permitam publicar o tratado e dividir o país. Tomai portanto as medidas para a execução estrita desta disposição;  
2.ª Ele expõe que a dívida consolidada ascende a 160 milhões [de francos?] e a não consolidada a 80 milhões. A minha resposta a isso é que ele não deve pagar mais salários, mas faltar às considerações necessárias; contudo, até que a sorte de Portugal seja definida, ele não tem que se ocupar deste assunto mais do que se ocupou em Viena e Berlim. Logo que a sorte do país for decidida, veremos então o que faremos com a dívida. Se os juros dos 160 milhões são de 5 por cento, fareis uma economia de 8 milhões. Tendes, na lista civil, despesas para o exército português. Enviai todas as tropas para a França, e reduzireis essas despesas a pouca coisa. As despesas do interior devem diminuir em tempos de guerra. Removendo as despesas da dívida pública, da guerra, da marinha, do interior, os pagamentos devem ser reduzidos a bem pouca coisa, e os rendimentos devem restar quase inteiros para alimentar e manter o meu exército. 
Não tenho notícias vossas desde 9 de Janeiro. O artigo 9 do meu decreto de Milão fixa a proporção das gratificações que eu acordei para o meu exército. Durante algum tempo não se pagou nada na Polónia, e esta medida não foi senão momentânea e para certos corpos. 
Enviei um intendente geral da polícia, como desejáveis. 
Suponho que não perdestes tempo para organizar bem a vossa artilharia e para dispor no melhor estado os vossos transportes e a vossa cavalaria. Ainda não tenho a memória dos oficiais de engenharia sobre Abrantes, Almeida, Santarém, Viseu e as outras praças. 
Continuai a usar subterfúgios e preocupai-vos nesta primavera com a vossa conquista. Sois soberano há dois meses. Se não o aproveitais, arrepender-vos-eis da vossa negligência; o mal não terá remédio. Desarmai o país o mais completamente possível; ocupai as fortalezas, fazei dirigir as baterias de morteiros contra as cidades; armai e aprovisionai os fortes, para que eles possam ser guardados por todos; escolhei os homens marcantes; puni severamente as menores faltas. És senhor para fazer tudo isto durante Fevereiro e Março. Se esperais um desembarque [dos ingleses], isto custará sangue para acalmar tudo.  
O General Dupont está em Valladolid. Eu não conheço a situação do vosso exército; enviai-me-a através do regresso do ajudante de ordens Turenne. Fazei-me conhecer bem ao mesmo tempo a situação do país, das praças-fortes, da artilharia, e enviai-me uma descrição dos caminhos. Fazei atrelar o batalhão de equipamentos militares; disponde-o em bom estado, e enviai uma parte ao General Dupont. 
Se eu necessitasse duas divisões de 5.000 homens com doze peças de canhão atreladas, para serem levadas, uma a Badajoz, outra a Alcántara, poderíeis fornecê-las, no inverno, sem que isso influa na tranquilidade do país? No caso de não puderdes fornecer duas, poderíeis fornecer uma de 6.000 homens? Quantos dias demorarão eles para chegarem ao seu destino? Qual é o número de tropas que estão no Porto e no sul da Galiza espanhola? Se houverem eventos inesperados com a Espanha, poderíeis temer as suas tropas, e poderíeis facilmente desembaraçar-vos? Seríeis, nesta suposição, favorecido pelos habitantes do país? 
Não sejais muito fraco e muito imbecil para deixar faltar dinheiro aos vossos serviços e às vossas tropas. Tende muitas centenas de milhares de biscoito, seja na retaguarda, seja na vanguarda. Duplicai os atrelados da vossa artilharia. Existem em Portugal suíços e estrangeiros que vos poderão servir para isso. Podereis inclusive empregar alguns batalhões do país para esse fim.
[Fonte: Lettres inédites de Napoleón Ier (an VIII-1815), Paris, E. Plon, 1897, pp. 138-140]. 



Cerca de duas semanas depois, Junot recebeu esta carta. Transcrevemos em seguida a sua resposta, não sem deixar de mencionar que, antes mesmo de Napoleão ter escrito a carta acima transcrita, já Junot lhe tinha enviado duas cartas (uma das quais foi aqui inserida), para além das que o Imperador aqui refere, datadas de 9 de Janeiro, cartas estas que, contudo, ainda não tinham chegado ao seu destinatário, como se percebe. Entretanto, antes mesmo de receber a carta de Napoleão acima transcrita, Junot voltou a escrever-lhe outras seis cartas, todas elas datadas de 4 de Fevereiro (o mesmo dia em que foi publicado o decreto da contribuição dos 40 milhões), que, contudo, só chegariam a Paris quase no final do mesmo mês, enquanto que a carta que abaixo se transcreve seria recebida por Napoleão somente no início de Março. Repare-se que entre a redacção de uma carta e a recepção da sua resposta era necessário esperar, na melhor das hipóteses, pelo menos 35-40 dias. Este desfasamento, causado não só pela distância que separa Lisboa de Paris, mas sobretudo pelos péssimos caminhos (particularmente os de Portugal), levava Junot a repetir bastantes vezes o que tinha escrito em cartas anteriores, o que por sua vez provocará grandes irritações da parte de Napoleão, que se irão agravando à medida que o tempo vai passando, sobretudo por não perceber (ou não querer perceber) as enormes dificuldades que Junot tinha para governar o país. 


Lisboa, 14 de Fevereiro de 1808 

Sire 
Recebi a carta que V. M. [Vossa Majestade] me deu a honra de escrever-me, com data de 28 de Janeiro; vou tentar responder a cada artigo de maneira a poder deixar V. M. em condições de formar uma ideia da nossa posição e do país; é preciso tempo para o conhecer de um modo aproximado, e é preciso ter estado à frente da sua administração para apreciar a sua dificuldade, e nunca haverá ninguém, além do Soberano, que tenha a possibilidade de melhorar tudo quanto será provisório, tudo quanto só servirá para aumentar a miséria e inspirar a desordem que reina em todos os seus ramos. 
A remuneração que V. M. concede ao senhor Hermann é muito justa; ele trabalha muito, e a carestia de tudo em Lisboa torna-a justa quando poderia parecer um pouco forte; a sua única ambição é agora obter a condecoração da Legião de Honra.
Visto que tenho a felicidade de V. M. pensar, como nós, que não se deve dividir Portugal, peço-lhe que me permita expor-lhe as minhas ideias a esse respeito. V. M. viu o que eu fiz neste aspecto, e talvez eu tenha feito mais que o V. M. desejava; mas, repito, não tinha nenhuma informação [nem] nenhumas instruções dos ministros, e era urgente assumir a autoridade. V. M. ordena-me que mantenha a administração una e inteira até que as circunstâncias nos permitam dividi-la e publicar o tratado; assim fiz, mas, Sire, para reunir a administração é absolutamente necessário reunir o comando das tropas espanholas e portuguesas; eu tenho o comando das tropas portuguesas, mas não posso assumir o das espanholas; é preciso que ele me seja dado e, se um dia tivermos de desembaraçar-nos delas, é absolutamente necessário que eu tenha podido colocá-las de modo que nada tenhamos a recear delas quando quisermos fazê-lo; de resto, se não receberem impostos, será preciso alimentá-las e pagar-lhes, o que custará um milhão por mês, pelo menos. É da maior necessidade, Sire, que o General em Chefe do exército de Portugal comande como chefe e sem restrições todas as tropas que aqui estão e, para que a sua autoridade no país fosse mais positiva e mais agradável ao povo, seria preciso um título dado por V. M. que designasse aquele que V. M. quisesse honrar como incumbido de exercer a soberania em seu nome; o título de General em Chefe parece-lhes excessivamente provisório e nada explica quanto à administração, pois é essencialmente militar. Creio dever dizer a V. M. tudo o que penso, para a utilidade do seu serviço. V. M. sabe que da minha parte não há orgulho nem ambição pessoal.  
Diz V. M. "até que as circunstâncias permitam publicar o tratado"; mas, Sire, este tratado divide Portugal, e Portugal é indivisível; o Alentejo só fornece trigo, a costa do Algarve só fornece peixe, e os portos desta província estão maravilhosamente colocados para o comércio da Barbaria e para o do Mediterrâneo. A província de Entre-Douro-e-Minho contém um terço dos habitantes de Portugal, o seu território é mais fértil e os seus vinhos são um ramo considerável das receitas do Estado. É desta província que vêm praticamente todos os marinheiros portugueses, mas ela não produz trigo.
As províncias de Trás-os-Montes e da Beira são apenas rochedos incultos e não habitados, cujo povo é extremamente miserável, e a província da Estremadura tem como única riqueza o seu magnífico porto e a esperança do seu comércio; com um príncipe em cada uma destas províncias, ou se morria de fome ou não se teria um tostão; com elas reunidas, este Reino seria um dos mais belos da Europa. Quanto às suas posições militares, a porção do centro estaria sempre à mercê das outras. Como Lisboa é o único ponto em que Portugal reside, nunca se poderia impedir alguém de lhe chegar pela margem direita do Tejo ou de atravessar o rio. O porto de Lisboa, o mais magnífico da Europa, precisa, para o que lhe é necessário, das florestas do Douro e do Alentejo, e para a sua defesa é absolutamente necessário possuir Setúbal; mas, Sire, o porto de Lisboa é o mais bem situado da Europa: não pode ser bloqueado por causa das correntes, que à mínima rabanada de vento obrigam os navios de guerra a afastar-se mais de 20 léguas, e nós efectuamos então a saída e em menos de 2 dias estamos nos ventos alíseos, isto é, antes que a esquadra que faz o bloqueio tenha podido vir verificar se já saímos ou se ainda estamos no porto. No aspecto das finanças, o Reino de Portugal, reunido e reorganizado, favorecido pelos benefícios do Código Napoleão e administrado como a França, deve render, sem nisto incluir as Alfândegas nem a lista civil, um mínimo de 40 milhões. Os seus habitantes podem ser excelentes militares; têm ânimo e coragem e não estão amolecidos. Dá-los à Espanha é pô-los em desespero; pertencer a V. M. é o seu desejo mais ardente; ser de um príncipe francês seria suficiente e deixá-los-ia contentes. Os portugueses não conservam nenhum apego à família de Bragança, nunca foram bem governados por ela, e este último [príncipe] tinha-os rebaixado muito para que o não sentissem; levou ao máximo a indiferença do povo em relação a essa Casa, arrebatando à partida [para o Brasil] todo o dinheiro do país, depois de passar muitos meses sem pagar a ninguém. É unânime o brado contra o príncipe.  
Acerca da dívida de Portugal, já sabe V. M. que eu bem previ a sua resolução, pois logo nos primeiros dias ordenei ao senhor Hermann que suspendesse todos os pagamentos; mas, Sire, há realmente pensões que não podemos deixar por mais tempo sem pagamento, pois veremos os pensionistas morrer de fome; era preciso, sem cometer injustiças, ter a latitude de pagar até certo montante as pensões que julgássemos mais necessárias; com 300.000 francos por mês, faríamos felizes muitos, e seria feita justiça obtendo as suas bênçãos para o Governo. A lista civil ainda não nos rende nada porque as rendas são pagas de seis em seis meses e o príncipe cobrou o primeiro semestre antes de partir; o exército português proporcionar-nos-á, sem dúvida, alguma economia, mas ainda é preciso pelo menos um mês para se poder enviar todas essas tropas para França, pois é absolutamente necessário reorganizá-las primeiro. As despesas do interior não podem aqui diminuir, pois é indispensável fazer caminhos e ocupar muitos braços ociosos; haverá, sem dúvida, economias nas despesas da guerra e da marinha; no entanto, a marinha ficará cara, mas V. M. terá em poucos meses uma pequena flotilha com a qual não se julgava poder contar. Mandei pôr nisso grande diligência: o oficial de marinha Magendie, que está à frente dessa parte, é um oficial de marinha muito distinto e que serve V. M. com raro zelo e inteligência. As receitas e a contribuição, que será impossível receber por inteiro, dar-nos-ão o dinheiro suficiente para manter, alimentar e pagar o exército francês; não faltará o dinheiro, mas faltará o trigo, a carne será cara e eu não posso fechar uma compra de mantimentos a 25s a ração. O trigo está aqui a 25 francos o quintal, a carne a 15s a libra, para o exército, e uma garrafa de vinho a 8s; há depois os legumes e a manutenção e, como tudo aqui é pago metade em papel e metade de contado, existe esta diferença para o empreiteiro, que será obrigado a pagar em moeda sonante tudo o que vier do estrangeiro; e terei também de pagar e alimentar o exército espanhol, que é muito caro.  
Depois de 9 de Janeiro, tive a honra de escrever a V. M. a 15 e 19 de Janeiro e a 4 de Fevereiro. 
V. M. diz-me que o artigo 9.º do seu decreto fixa a gratificação que concede ao exército; mas, Sire, suplico a V. M. que reveja essa decisão; os ministros interpretaram este artigo de maneira que um General de Divisão terá por mês 600 [francos] de gratificação, um coronel 250, e assim por diante. Não falo do General em Chefe [o próprio Junot]; mas, seja qual for o seu vencimento, poderá ele ser inferior, por exemplo, ao do Administrador-geral de finanças [Hermannn]? Obrigado a representação como Governo e como General em Chefe, terá de fazer despesas consideráveis. Para mim, Sire, que não tenho aqui nenhum vencimento, nada tenho a reclamar; mas, como é possível que ainda digam a V. M. que eu tenho milhões de vencimento, peço-lhe que me permita dizer-lhe em quanto foram fixados os meus vencimentos pelo ministro da guerra e aquilo que recebi pelo mês de Janeiro, quer por Paris, quer pelo exército: 


Governador de Paris.................................................... 5.000 
Primeiro Ajudante de Campo...................................... 2.000
do ministro da Polícia................................................ 16.666,66 (em vez de 25.000 que anteriormente recebia, por ordem de V. M.)
General em Chefe do exército de Portugal................... Nada 

Total.......................................................................... 23.6666,66

Com isto, Sire, tenho de apresentar-me honrosamente em toda a parte, manter a minha casa de Paris e sustentar a minha família; até me foi cortado o meu emolumento como Grande Oficial do Império, que eu supunha ao abrigo do senhor Lacuné, e que V. M. declarou, pelo senatus-consultum, que só me poderia ser retirado em consequência de uma sentença do Supremo Tribunal Imperial, o qual, decerto, nunca me julgará. Perdão, Sire, por tanto ter ocupado V. M. com a minha pessoa e com coisas tão pouco importantes para vós.
O senhor Devilliers, encarregado da Polícia, já chegou, mas garantem-me que virá outro, o senhor Lagarde; espero por ele para o instalar, o que aqui é muito necessário. 
A minha cavalaria e a minha artilharia vão ficar bem montadas; já só tenho 50 caixões para atrelar e aos quais nada faltará.  
Tenho a honra de enviar a V. M. uma memória geral sobre as fortificações de Portugal, que tinha mandado fazer para mim e que não é muito completa; mas as praças de Abrantes, Santarém e Viseu não são fortificadas nem fechadas; só há realmente as praças-fortes de Elvas e Almeida e alguns fortes na costa. Mandei efectuar uma vistoria geral a todas as praças e fazer um relatório sobre cada uma. 
A costa de Portugal será, sem dúvida, disputada, e é muito difícil um desembarque, coisa que muito extraordinária seria; no entanto, tenho de estar preparado, e só do lado dos espanhóis o poderia recear; é por isso que creio necessário que o comando pertença ao General em Chefe francês, que deve dividir as tropas e misturá-las com as suas em acampamentos colocados da seguinte maneira:

Um acampamento, perto de Setúbal, com pelo menos 6.000 franceses e espanhóis; 
3.000 franceses e portugueses em Elvas e Évora; 
6.000 franceses e espanhóis acampados perto de Lisboa, com a costa guardada por franceses; 
1.000 franceses em Almeida; 
Um acampamento de 6.000 franceses e espanhóis numa posição intermédia entre Lisboa e o Porto.

Com uma forte guarnição em Lisboa e alguns batalhões no interior, o país ficará bem seguro e os desembarques estarão previstos e serão muito difíceis; o exército espanhol ficará colocado de maneira a não poder tentar nada, e até a ficar nas mãos do General em Chefe francês. 
Ao desarmar as milícias, desarmei o país; mandei fazer biscoito e ordenei que haja 100.000 rações em Elvas, outro tanto em Almeida e outro tanto em Lisboa; comecei a armar a costa com os poucos morteiros que tínhamos, mandei fortificar o castelo de Lisboa, e a nossa marinha pode bater a cidade de tal maneira que em duas horas a demoliria. 
Mandei fazer uma lista dos homens mais assinalados e vou enviá-los a França com o pretexto de fazer uma deputação de V. M., mas sem acto autêntico; nenhum deles é capaz de fazer o que quer que seja de sério; são excessivamente poltrões. 
O ministro da guerra [General Clarke] recebe todas as semanas um resumo da situação do meu exército, mas tenho a honra de remeter em anexo um a V. M. 
A memória que V. M. pede sobre a descrição dos caminhos, das praças-fortes e da situação do país só poderá ficar totalmente redigida quando se tiver tomado posse das partes ocupadas pelos espanhóis. A descrição dos caminhos que nós percorremos para aqui chegar já foi enviada a V. M. Tenho a honra de vos enviar a de Lisboa a Almeida, por Coimbra. Quanto à estrada de Lisboa para Elvas, é a única praticável pelas nossas viaturas, e eu dei ordem para a sua reconstrução total, pois anteriormente parecia um atalho de França, e muito mal mantido. 
Tenho a honra de enviar a V. M. dois resumos sobre a artilharia; um trata do que existe em Lisboa, e o outro do que está em bataria. 
Já só tenho metade do batalhão de trens militares. Dei ordens para que a outra parte seja atrelada e enviada ao General Dupont.  
Dar duas divisões de 5.000 homens seria diminuir excessivamente o exército, mas seria muito possível fornecer uma com 12 peças de canhão. O caminho daqui para Alcántara não é praticável pela artilharia, e nunca o deverá ser, pois nunca se terá de passar por Alcántara para chegar aqui; o de Almeida, que deve necessariamente ser feito, não está praticável e não o pode estar antes do inverno, pelo que a divisão que V. M. pedisse teria de passar por Badajoz com a sua artilharia; juntando-lhe um ou dois Regimentos portugueses, podia-se ter uma boa divisão de 8.000 homens. Essa divisão levaria 6 dias para chegar a Elvas. 
A divisão espanhola vinda da Galiza tem 6.000 homens, e há também no Porto e na província 4.000 homens pertencentes à divisão Carrafa; o resto desta divisão ainda está em Espanha, e o General Solano utilizou dois Regimentos dela para formar as guarnições de Elvas e de Campo Maior. Desta divisão do General Carrafa estão ainda em Espanha 4 batalhões de infantaria e 11 esquadrões de cavalaria. 
Se houvesse acontecimentos inesperados em Espanha e essas tropas, postas ao dispor do General francês, fossem repartidas pelos diversos acampamentos como acima indiquei, ser-nos-ia possível, desde que prevenidos a tempo, desarmá-las e deixá-las em condições de não causar dano. As tropas portuguesas e os habitantes poderiam servir para as conter ou vigiar em caso de necessidade, e grande prazer teriam nisso. 
Nada falta ao serviço do exército nem às tropas, e também lhes não pode faltar o dinheiro; creia V. M. que eu não desfaleço e não sou tão imbecil que prefira o interesse dos habitantes ao do serviço de V. M. O exército já começa a recuperar [da viagem até Portugal] e em breve estará óptimo; temos falta de fazendas; se fosse possível enviar-nos algumas, não nos importaríamos de pagá-las; faltam cavalos de tiro para a artilharia; os 200 cavalos da empreitada Jullien que vinham para este exército foram retidos pelo General Dupont, mas ser-nos-iam muito úteis; e também é muito difícil recrutar carroceiros, mas eu vou tratar do caso para duplicar os atrelamentos. 
O senhor de Turenne ainda não chegou, e eu enviei o senhor Taschen, conforme as instruções de V. M. Tenho estado muito contente com ele. É um jovem valente, muito honrado e bom oficial, e tem-se comportado perfeitamente em todos os aspectos. 
Muito desejo, Sire, que esta carta responda a todos os pontos daquela com que V. M. me honrou, e que ela vos deixe satisfeito.
De Vossa Majestade Imperial e Real, 
Sire
[Fonte: Diário da I Invasão Francesa, Lisboa, Livros Horizonte, 2008, pp. 139-143 (n.º92)]. 




Apesar de todas as considerações e dificuldades referidas por Junot, Napoleão não ficaria nada satisfeito ao ler esta carta, no início de Março, como mais adiante veremos...