quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Correspondência entre autoridades portuguesas e espanholas: entrada das primeiras tropas no Algarve

No dia 16 de Dezembro, enquanto o General Solano escrevia à Regência as duas cartas já transcritas, outro General espanhol, o Conde de Vía Manuel, escrevia de Ayamonte ao Comandante General do Algarve (e ao mesmo tempo um dos Governadores do Reino escolhidos pelo príncipe regente antes de rumar para o Brasil), o já aludido Conde Monteiro mor, D. Francisco de Melo, que então se encontrava em Tavira:


        
(n.º 1)
      
  Ex.mo Sr.


O General em Chefe do Exército e Província da Extremadura [Marquês do Socorro] deu-me ordem para que com o Regimento do meu comando passe a situar-me em Tavira e Lagos, encarregando-me ao mesmo tempo [que] me entenda com V.Ex.ª, por dever achar-se já com as correspondentes [ordenspara receber as minhas tropas como amigas; nesta inteligência, passa a avistar-se com V.Ex.ª o Coronel Agregado a este meu Regimento, D. Fernando de Montoya y Solio, para que lhe diga quanto se ofereça em particular, e me traga a ordem que lhe dê V.Ex.ª, a qual esperarei no caminho, e não duvido [que] será favorável para que continue aos destinos assinalados; esperando que V.Ex.ª dê as ordens oportunas para que se me aprontem nos povos[=povoações] de trânsito os víveres necessários e demais auxílios que necessite; que guardem a melhor harmonia e amizade, como o farão os meus indivíduos, a cujo fim tenho dado as mais estritas ordens, que farei observar com o rigor que corresponde. 
Deus Guarde a V. Ex.a muitos anos.
Ayamonte, 16 de Dezembro de 1807.


O Conde de Vía Manuel.




No dia seguinte, já em Conceição de Tavira, o Conde de Via Manuel voltava a escrever ao mesmo Conde Monteiro Mor:



(n.º 2)

    Ex.mo Sr.


Para fazer a minha entrada nesse Povo [i.e., Tavira] com as formalidades que correspondem e com a regularidade às ordens, tenho disposto [que] prefira à minha tropa uma partida que estabelecerá guarda nos postos donde a tenha V.Ex.ª para a boa ordem e o demais que corresponde, no que espero não terá inconveniente, franqueando a entrada à expressada partida.
Deus Guarde a V. Ex.ª muitos anos.
Conceição [de Tavira], 17 de Dezembro de 1807


O Conde de Vía Manuel



No dia 18, já instalado em Tavira, o mesmo General espanhol escrevia ao mesmo Governador português:



(n.º 3)

Ex.mo Sr.


Quando avisei a V.Ex.ª a ordem com que me achava para vir a este Povo[=povoação], manifestei-lhe [que] as tinha também para solicitar se me desse o auxílio de víveres que se dá neste Reino a todas as tropas do Exército de que somos parte. Como V.Ex.ª não tem determinado no assunto, torno a fazer-lho presente, para que se não houvesse proporção do [auxílio] das [?] em espécie, o faça em dinheiro, ou me manifeste o que tenha por conveniente para acreditar ao Ex.mo Sr. Marquês do Socorro, General em Chefe do Exército da Extremadura, que tenho cumprido com as suas ordens; e ao mesmo tempo que lhe direi o bem recebido que tenho sido por V.Ex.ª e a boa harmonia que conservamos com o Povo e sua guarnição; expressando que V.Ex.ª me facilitará a escolta, cavalos e passaporte para os séquitos que encarregarei a levar o meu prego ao dito Ex.mo Sr. General do Exército a Setúbal, como me tem prevenido. 
Deus Guarde a V.Ex.ª muitos anos. 
Tavira, 18 de Dezembro de 1807.


O Conde de Vía-Manuel





A primeira resposta conhecida a estas cartas data de 19 de Dezembro, na qual D. Francisco de Melo se queixava de não poder ajudar os espanhóis nas melhores condições, deixando entredito que os restantes membros da Regência não o tinham prevenido com quaisqueres ordens para o efeito:



(n.º4)

Il.mo e Ex.mo Sr.


Tenho o maior sentimento de não me achar munido com poderes e ordens para satisfazer as tropas do comando de V.Ex.ª com as rações de carne e vinho, ou dinheiro no seu lugar, como V.Exª. exige para as mesmas. Eu  já o tenho representado à Corte e estimarei infinito que o Governo decida com brevidade para eu o satisfazer com toda a prontidão; eu farei presente a V.Ex.ª o que o mesmo Governo decidir. Ao Juiz de Fora desta cidade tenho determinado [que] apronte as cavalgaduras necessárias para o encarregado, ou encarregados, que V.Ex.ª manda ao seu Ex.mo General [Solano] a Setúbal; igualmente tenho determinado ao Governador desta Praça [de Tavira] para que mande nomear uma escolta de quatro soldados e um bom oficial inferior para acompanharem os ditos encarregados; devendo estes, quando houverem de partir, dirigir-se tanto ao Juiz de Fora como ao Governador da Praça.
Queira V.Ex.ª mandar-me os nomes e postos do encarregado ou encarregados que manda a Setúbal, para eu haver de lhe mandar passar o meu passaporte. 
Deus Guarde a Vossa Excelência.
Quartel-General de Tavira, 19 de Dezembro de 1807.


Conde Monteiro Mor




Seguidamente, o mesmo Conde Monteiro mor escreve ao Conde de Sampaio, explicando claramente o que se passara naquele Reino do Algarve, incluindo a cópia das cartas acima transcritas e numeradas:




Il.mo e Ex.mo Sr.


No dia 16 do presente mês apresentou-se-me neste Quartel [de Tavira] o Coronel agregado ao Regimento Provincial de Badajoz, D. Fernando de Montoya, encarregado do ofício cuja cópia é do n.º 1.º, pelo Coronel efectivo do mesmo Regimento; ao dito D. Fernando o hospedei neste meu Quartel, e se retirou no dia seguinte com a minha resposta, na qual lhe manifestava a satisfação que eu tinha de me achar munido com ordens para os receber como amigos, prestando-lhes todos os auxílios que fossem compatíveis com a pobreza do país; e a respeito dos víveres, como de carne, vinho e lenha em que vocalmente me falou o dito Coronel agregado, e também o dá a entender o Coronel Comandante no seu ofício, eu lhe respondi que pessoalmente trataríamos dessa matéria. No dia 17 o Coronel Comandante, uma légua afastada desta Praça, me remeteu o ofício cuja cópia é a do n.º 2.º, e eu assenti às providências que ele me expõe no dito ofício; nesse mesmo dia pelas seis horas da noite, eles entraram nesta Praça; o Coronel com toda a sua oficialidade veio logo ante [o] Quartel, [eeu os tratei muito civilmente, com toda a urbanidade, na conformidade das ordens que tenho e da minha declaração; dei-lhe um pequeno refresco, e de tudo ficaram muito satisfeitos. O Coronel tornou-me a tocar em vinho e carne, mas passando a conversação a outros objectos, não houve lugar para a minha resposta; mas eu fiz-lhe ver que, do meu Ajudante de Ordens ao seu Major, que eu não tinha ordens nem instruções para as ditas rações de vinho e carne: O Coronel torna a instar como V.Ex.ª verá na cópia do ofício n.º 3.º, dizendo que todas as tropas da sua nação recebem aqueles géneros e que ele que tem instruções para as receber. Pela cópia n.º 4 verá a minha resposta: tenho já mandado nomear a escolta que ele pede para acompanhar o encarregado ou encarregados que ele manda com o ofício ao seu General a Setúbal; assim como dado ordem às demais providências que pede para o mesmo fim. Como eu não tenho ordens nem o país proporções para os satisfazer aqueles víveres que requerem, assim como o Administrador das Munições de Boca para o Exército deste Reino não tem ordens algumas da Junta a semelhante respeito, nem tem armazenado aqueles víveres, queira V.Ex.ª pôr tudo isto na presença dos Governadores do Reino, para determinarem à Junta o que o Administrador dos Víveres deve praticar sobre semelhante objecto; previno a V.Ex.ª que o dito Coronel não tem já mais falado a respeito de quantidades que deve receber cada indivíduo. Também não acham muito bom o pão; eles têm razão, mas é o mesmo que come a nossa tropa.
O número da sua tropa, dizem eles ser de 500 homens, mas porque ainda esperam algum soldado, com Oficiais e Oficiais inferiores competentes, um Cirurgião, um Capelão, um Ajudante, um Major e dois Coronéis, aquartelei os soldados todos no Convento da Graça, que não tem mais que o Prior, e num armazém junto ao mesmo Convento. Aos oficiais, inclusive o Coronel, alojei-os numas boas casas pertencentes à Corporação dos marítimos desta cidade, [masnão gostaram muito de estarem juntos; em consequência do que os tenho aboletado por diferentes casas particulares, com bastante trabalho, por ser a cidade pobre. Em Vila Real [de Santo António] faltaram-lhe algumas cavalgaduras, por aí  não haver, nem nas suas imediações, as muitas que pediam; eu supri esta falta com as que mandei daqui, que ainda os encontrou no caminho; proibi que os géneros levantassem mais os seus preços, mandei que fosse aceita a moeda espanhola, em consequência de todas estas providências, se tem conseguido uma recíproca amizade, e reina uma boa harmonia. A dita tropa é sossegada, muito sujeita aos seus superiores; e a respeito da boa ordem, os fazem guardar uma rigorosa disciplina; o que tudo exponho a V.Ex.ª para o fazer presente aos Governadores do Reino.
Deus Guarde a V.Ex.ª.
Tavira, 19 de Dezembro de 1807


Conde Monteiro-Mor



Esta última carta foi finalmente recebida pelo Conde de Sampaio no dia 25 de Dezembro (recorde-se que aquele estava em Lisboa, juntamente com o resto dos membros da Regência), que por sua vez respondeu a D. Francisco de Melo no dia seguinte, corroborando as medidas tomadas:



Il.mo e Ex.mo Sr.


Foi presente aos Governadores deste Reino o ofício que V.Ex.ª me dirigiu em data de 19 do corrente [mês], com os papéis que o acompanhavam, e devo dizer a V.Ex.ª que tudo quanto lhe foi exigido para a tropa espanhola é justamente o que se lhe manda prestar na forma das ordens que já foram expedidas a este respeito, e comunicadas a V.Ex.ª
Deus Guarde a V.Ex.ª
Secertaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, em 26 de Dezembro de 1807.


Conde de Sampaio





Fonte: Arquivo Histórico Militar, DIV-1-14-003-46




Fonte: Arkeotavira
Mapa da cidade de Tavira (finais do séc. XVIII),
de José de Sande Vasconcelos