sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Esclarecimento sobre algumas excepções previstas no decreto sobre a contribuição dos 40 milhões de cruzados (25 de Fevereiro de 1808)


Constando ao Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor General em Chefe do exército francês em Portugal que a excepção autorizada pelos artigos IV e V do decreto do primeiro deste mês das peças de prata necessárias à decência do culto tem dado lugar a dúvidas, na diversa inteligência das que devem considerar-se no caso de serem reservadas, tem Sua Excelência declarado e ordena que todo o ouro e prata das igrejas, capelas e confrarias é compreendido na contribuição, exceptuando-se somente os cálices, patenas e colherinhas, as píxides, as custódias, os cofres em que na Semana Santa se costuma depositar o Santíssimo Sacramento, as coroas e resplendores que actualmente adornam as imagens, as imagens de Nosso Senhor Jesus Cristo e de Nossa Senhora, e os relicários cujo peso não exceder a dois marcos [= 459 gramas] de prata. O que assim se terá entendido por todas as corporações e pessoas a quem pertencer a execução, para que o cumpram, levando prontamente aos lugares designados quaisquer peças que pela errada inteligência tiverem reservado nas igrejas, capelas e confrarias, na certeza de lhe serem aplicáveis, em caso de contravenção ou fraude, as penas cominadas nos referidos artigos IV e V do mesmo decreto. 
Lisboa, 25 de Fevereiro de 1808.

Francisco António Herman [sic]




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Fonte: Segundo Suplemento à Gazeta de Lisboa, n.º IX, 5 de Março de 1808.

Aviso do Secretário de Estado dos Negócios do Interior e das Finanças, mr. Hermann, ao provedor e deputados da Junta da Administração da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro (24 de Fevereiro de 1808)



Em conformidade das ordens do Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor General em Chefe do exército francês em Portugal, remeto à Ilustríssima Junta da Administração da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro o decreto da cópia junta, para que haja de mandar expedir as ordens e guias necessárias para a exportação dos vinhos em navios neutros que se acharem no porto dessa cidade, ou que a ele vierem; comunicando esta ordem por cópia às estações competentes para a recepção dos respectivos direitos. O que participo a Vossas Senhorias para que assim se execute. 

Deus guarde a Vossas Senhorias. 

Secretaria de Estado dos Negócios do Interior, em 24 de Fevereiro de 1808. 

Francisco António Hermann [sic]


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Fonte: Segundo Suplemento à Gazeta de Lisboa, n.º VIII, 27 de Fevereiro de 1808.


Saída das tropas espanholas do Algarve e entrada das francesas



Como atrás vimos, em meados de Dezembro de 1807, cerca de 500 militares espanhóis comandados pelo Conde de Vía Manuel entraram no Algarve. Estas tropas, entretanto talvez reforçadas, passariam posteriormente a ser comandadas, segundo o padre João Coelho de Carvalho*, pelo próprio chefe do Estado-Maior da Divisão do General Solano, o "Marquês de Coupigny, que veio fazer seu quartel em Faro, residindo desde 22 de Janeiro até 22 de Fevereiro [de 1808] no Palácio Episcopal, sustentando com sua comitiva à custa do Excelentíssimo Senhor D. Francisco Gomes [Bispo do Algarve], a quem o mesmo General e seus ajudantes, principalmente Federico Moretti**, fizeram grandes obséquios de honra, agradecendo-lhe por fim o bom acolhimento que suas tropas acharam neste povo, devido tudo à boa disciplina eclesiástica que o mesmo Senhor [Bispo do Algarve] tanto recomendava nas suas homilias ao mesmo povo, que nesta parte correspondeu aos desejos de todos, ao menos em geral e publicamente, não ficando deteriorado o seu crédito com a morte secreta que padeceram alguns espanhóis, talvez bem merecida pelos seus crimes (disto porém apenas havia certo rumor e por isso pode ser [que] não seja verdadeiro).
Em 22 de Fevereiro saiu daqui o General [Coupigny] e o Estado-Maior, tendo-lhe precedido a saída da tropa de linha miliciana. O General e seus ajudantes esperavam pelo General francês [Maurin] no seu quartel; mas na madrugada seguinte recebeu ordens de partir logo, de sorte que não se viram, apesar de [Maurin] chegar a Faro duas horas depois da sua retirada. Isto, que então foi acaso, era já prelúdio do que depois havia de acontecer; vindo o dito general Coupigny a ser quem, em grande parte, concorreu para a derrota de Dupont, de quem este exército francês compunha parte, segundo o que depois se descobriu.
Pela saída dos espanhóis entraram os franceses em duas colunas de pouca gente, que, ao todo, fazia o número de quatrocentos homens. O General [Maurin] alojou-se nas casas de João Carlos***, onde foi cumprimentado pela nobreza, em cujo número entrava o Ex.mo Senhor D. Francisco [Bispo do Algarve], oferecendo-lhe o seu palácio para quartel, que não aceitou para si, mas sim para um seu ajudante, quatro criados e seus cavalos! Que princípios de política francesa!
A primeira visita que fez este grande político [Maurin] foi a seus cavalos, que vinha ver todos os dias; o seu ajudante era efectivo na cavalariça, e, às vezes, também se viu limpando neles, donde se inferiu que um e outro, ambos irmãos, certamente tinham tido por princípio de educação alguma estrebaria" [Fonte: João Coelho de Carvalho, Memória da Revolução do Algarve (ver referências abaixo)]. 



Vista aérea da chamada Vila-adentro de Faro.

1. Palácio Episcopal
2. Seminário do Algarve
3. Casas do Conselheiro Horta (actual Governo Civil do distrito de Faro)



A saída repentina dos espanhóis do Algarve foi motivada por umas ordens que Godoy tinha enviado poucos dias antes ao General Solano, a fim de fazer regressar as tropas da sua Divisão à Extremadura e à Andaluzia. Solano, por sua vez, avisou Junot de que estava prestes a abandonar Portugal, o que forçou Junot a mandar parte das suas tropas para o sul do Tejo, até aí ocupado pelos espanhóis.
Entretanto, ainda antes que as tropas francesas tivessem chegado ao Algarve, um grande número de pessoas mais pobres começou a emigrar para Gibraltar. De facto, a 19 de Fevereiro, o Governador desta colónia britânica, Sir Hew Dalrymple, enviava uma carta aSecretário de Estado da Guerra britânico, Visconde Castlereagh, onde não só lhe enviava "proclamações de Junot pelas quais parece que Portugal foi anexado à França", como também lhe adiantava que "contribuições pesadas foram exigidas aos habitantes, em particular ao clero. As classes mais baixas estão a dirigir-se, em grande número, para Gibraltar, onde têm dado grandes encargos, devido à falta de espaço e dos meios para os manter" [Fonte: “Précis of correspondence from Sir H. Dalrymple, relating to Spanish affairs”, in Correspondence, Despatches, and other Papers, of Viscount Castlereagh - Vol. VII, London, William Shoberl Publisher, 1851, pp. 129-146, p. 130].
No dia 24 de Fevereiro, ou seja, já depois da entrada das primeiras tropas francesas em Faro, o Conde de Castro Marim, Governador do Algarve, aproveitava alguma das embarcações de pesca que se dirigiam para Gibraltar para enviar um oficial português que queria embarcar para o Brasil. Como no Algarve não existiam embarcações aptas para uma viagem transatlântica, este oficial ia para Gibraltar para daí seguir para a Inglaterra, onde entregaria a seguinte carta do Governador do Algarve a D. Domingos António de Sousa Coutinho, embaixador de Portugal junto da Corte britânica, esperando que este último fizesse o possível para conseguir providenciar-lhe transporte para o Brasil:

Pela cópia inclusa****, Vossa Excelência verá a ordem que me foi dirigida pelo expediente da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, a fim de provisionar as embarcações que se achassem nos portos deste Reino [do Algarve], fazendo embarcar as pessoas que nas mesmas se quisessem retirar. Infelizmente sucede o não achar-se nos referidos portos embarcação alguma susceptível a uma semelhante viagem. Pelo que o Tenente Coronel João de Vasconcelos de Sá, portador desta [carta], se dirige a Gibraltar para dali se transportar a esse Reino [da Grã-Bretanha], a fim de receber de Vossa Excelência providências para efectuar o seu destino. Eu rogo a Vossa Excelência todo o favor a este benemérito Oficial, cujo [=o qual] sempre tem servido as mesmas ordens. 
Deus Guarde a Vossa Excelência muitos anos. 
Quartel-General de Faro, 24 de Fevereiro de 1808. 
De Vossa Excelência, 
Conde Monteiro Mor






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Notas


* João Coelho de Carvalho era director temporal (ou seja, tratava dos negócios externos) do Seminário de Faro desde meados de 1797. Em Junho de 1808, depois de formada a Junta do Algarve, após a expulsão dos franceses de Faro (episódios que explicaremos mais adiante), Coelho de Carvalho receberá a pasta de 1.º Oficial da Tesouraria geral da referida Junta. O seu maior contributo para o assunto que tentamos estudar foi um texto manuscrito intitulado Memória da Revolução do Algarve (concluído a 4 de Novembro de 1808, mas com alguns acrescentos posteriores), assente no livro de Registos do Seminário de Faro referente aos anos 1808-1814. Apesar deste ser um documento importantíssimo para se perceber o que se passou no Algarve (sobretudo em Faro e Olhão), particularmente desde a chegada dos franceses até à formação da Junta de governo provisório, só foi retirado do olvido quase cem anos depois de ter sido escrito, quando foi impresso numa biografia do referido bispo do Algarve, D. Francisco Gomes de Avelar [Cf. Ataíde Oliveira, Biografia de D. Francisco Gomes de Avelar – Arcebispo-Bispo do Algarve, Porto, Tipografia Universal, 1902, pp. 176-196]. Ainda que mais recentemente tenha voltado a ser publicado no catálogo de uma exposição sobre trajes do início do século XIX patente no Museu do Trajo de São Brás de Alportel [Cf. Da quadrilha à contradança: o Algarve no tempo das invasões francesas, S. Brás de Alportel, Casa da Cultura António Bentes, 2004], tentaremos aqui ir dando a publicidade merecida a este valioso documento, que narra alguns pormenores inéditos noutras fontes. 

** Filho de uma família da nobreza florentina, Federico Moretti y Cascone nasceu em Nápoles em 1769. Aos 25 anos partiu para a Espanha, onde se uniu, em 1796, ao Real Cuerpo de las Guardias Walonas, com a patente de cadete. Seis anos depois já era Segundo Tenente dos fuzileiros do mesmo Corpo. Em 1807, entrou em Portugal como Ajudante Geral do Marquês de Coupigny. A 4 de Maio de 1808, depois dos incidentes em Madrid dois dias antes, e já depois da Divisão do General Solano ter regressado à Extremadura e Andaluzia, Moretti será enviado a Lisboa numa missão secreta para falar com Junot, Carrafa e com Seniavin, Almirante comandante da esquadra russa ancorada no Tejo, como o próprio conta num texto que será publicado em 1812 [Contestación del brigadier Don Federico Moretti y Cascone (en la parte que le toca) al manifiesto del Teniente General Don Juan Carrafa, Cádiz, Imprenta de Don Jose Maria Guerrero, 1812]. 
Moretti é contudo mais conhecido pela sua contribuição musical, tendo composto e publicado inúmeros estudos e peças para guitarra (da qual era exímio tocador) e outros instrumentos. Tirana, uma peça para guitarra e voz, pode ser escutada aqui. Ver ainda, a este respeito, Ana Carpintero Fernández, "Federico Moretti (1769-1839). I. Vida y obra musical", in Nassarre (Revista Aragonesa de Musicologia), n.º 25, 2009, pp. 109-134.

*** Referência às casas do conselheiro João Carlos de Miranda e Horta Machado, que já tinham sido mencionadas anteriormente.

****  A cópia inclusa que o Governador refere é a seguinte ordem que lhe tinha sido enviada pelo Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra no mesmo dia em que a Corte percebera que as tropas francesas tinham entrado em Portugal [Fonte de ambos os documentos: Arquivo Histórico Militar, 1.ª div., 14.ª sec., cx. 1, doc. 11]:

O Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor o Príncipe Regente Nosso Senhor, tendo resolvido retirar-se para o Brasil em atenção às presentes circunstâncias, determina que Vossa Excelência haja de fazer aprontar todas as embarcações que se acharem nos portos desse Reino [do Algarve] a fim de conduzirem todas as pessoas que quiserem acompanhar a Sua Alteza Real, cujas despesas e transportes lhe serão exactamente satisfeitas, tirando Vossa Excelência de qualquer cofre o dinheiro necessário para fornecer de víveres as ditas embarcações. 
Deus Guarde a Vossa Excelência. 
Palácio de Mafra, 24 de Novembro de 1807 
António de Araújo de Azevedo. 




Edital de Lucas Seabra da Silva, Intendente Geral da Polícia, proibindo todos os "jogos do Entrudo" (25 de Fevereiro de 1808)






Nota: Os "jogos do Entrudo" eram o que hoje chamaríamos "brincadeiras de Carnaval". Segundo Felipe Ferreira, "Luiz Edmundo, em seu Recordações do Rio Antigo, ressalta o carácter anárquico do Entrudo em Lisboa nos séculos XVIII e XIX. As brincadeiras, bastante agressivas, incluíam ataque aos passantes, que recebiam sobre suas cabeças ovos, farinhas, cabaças de cera cheias de água, tremoços, sacos de areia e até moringas ou tachos de cobre. [...] O Entrudo na capital do reino era marcado por troças e logros, tais como besuntarem-se escadas para provocar tombos, lambuzarem-se maçanetas com matérias fedorentas, colar uma moeda no chão para ver alguém tentando pegá-la sem sucesso ou servir uma sopa cheia de pimenta antegozando a reacção de quem fosse tomá-la. Por outro lado, a fuzarca no interior do país tinha como principal elemento os charivaris, onde a rapaziada das aldeias aproveitava para fazer todo o tipo de zombarias com os habitantes do lugar". [Fonte: Felipe Ferreira, O Livro de Outro do Carnaval Brasileiro, Rio de Janeiro, Ediouro, 2004, p. 75].