sábado, 9 de abril de 2011

Caricatura sobre a morte dos cães vadios ordenada por Lagarde


Seguramente já depois da saída dos franceses em Setembro de 1808, foi publicada a seguinte caricatura, intitulada Protecção dos Cães e nitidamente alusiva ao edital de Lagarde de 9 de Abril do mesmo ano. Nela se vê o novo Intendente Geral da Polícia, o careca Pierre Lagarde, em primeiro plano, enxotando um cão com a perna esquerda, enquanto outro cão urina-lhe para a perna direita, ao mesmo tempo que entrega uma arma a um guarda da polícia de Lisboa (conforme o 3.º artigo do referido edital), dizendo-lhe "matai-os com esta pistola" (tuez-les avec ce pistolet). Ao fundo vêem-se dois homens ocupados a matar outros cães, enquanto um terceiro leva um já morto para a carreta.
Note-se que os cães vadios já acompanhavam os franceses numa outra caricatura sobre a entrada dos protectores em Portugalaparentemente do mesmo autor.



Pergunta: Que traria a Portugal 
a Francesa protecção?
Resposta: Trouxe aos Cães tirana morte,
Aos Homens fome de cão.


Edital de Lagarde ordenando a morte dos cães vadios em Lisboa e mandando apreender todas as cabras, vacas e bois vagueando sem chocalhos (9 de Abril de 1808)



O Intendente Geral da Polícia do Reino de Portugal, considerando o perigo que pode seguir-se da multidão de cães vagabundos que giram pelas ruas de Lisboa no tempo dos grandes calores; considerando outrossim nos desagradáveis acontecimentos que daí muitas vezes resultam, principalmente de noite; e que os seus ladros [sic], ao mesmo tempo que perturbam o sossego dos habitantes, advertem os roubadores do seguimento da justiça, ordena o que se segue: 

I. Desde o dia da afixação do presente [edital], fica proibido o deixar andar cães vagando pelas ruas ou praças públicas de Lisboa e subúrbios. 

II. Todo o cão que se achar sem dono ou condutor, poderá logo ser morto por aquele que o encontrar, pertencendo neste caso a pele ao matador. 

III. A Guarda Militar da Polícia, tanto cada soldado em particular como rondando em patrulhas, fica obrigada a matar os ditos cães, onde quer que os encontrar sem dono, escolhendo para esse efeito, com preferência, o tempo das rondas nocturnas. 

IV. Os soldados franceses que fazem parte destas rondas, ou rondando eles mesmos, são igualmente convidados, e, em caso de necessidade, rogados de concorrer para livrar a cidade desta multidão de cães. 

V. Durante os oito dias que se seguirem depois da publicação do presente [edital], os Corregedores e Juízes do Crime de Lisboa e termo ficam autorizados para exigirem, cada um no seu distrito, uma carreta, ou para empregarem as bestas dos ribeirinhos, na condução dos cães mortos, pela manhã muito cedo. 

VI. Para este efeito obrigarão os seus alcaides a girar ao amanhecer pelo seu respectivo bairro com a carreta ou bestas de ribeirinho para tirarem os cães que se mataram, os gatos, e outros animais mortos, e fazê-los conduzir fora de Lisboa aos lugares ou depósitos das imundícies. O administrador encarregado da limpeza das ruas lhes fornecerá os meios que tem à sua disposição. 

VII. As cautelas prescritas para fornecer, nos tempos calmosos, água aos cães, para os preservar da hidrofobia, são agora renovadas e confirmadas debaixo das penas existentes contra os transgressores. 

VIII. Os regulamentos que proíbem conduzir vacas e cabras pelas ruas de Lisboa depois das onze horas do dia, para se mugirem às portas das casas, são igualmente renovados com as multas e penas neles mencionadas. 

IX. É igualmente proibido que se deixem vagar pelas ruas e encruzilhadas bois, vacas e cabras sem campainha, sob pena de serem tomadas e confiscadas em benefício dos hospitais. Aqueles que nestes casos as apanharem, conduzi-las-ão ao Palácio da Intendência Geral da Polícia do Reino (no Rossio), onde receberão, se tiver lugar, uma recompensa, tirada do produto da venda. 

X. Serão outrossim tomadas e conduzidas à Intendência Geral todas as cabras que em Lisboa ou seus contornos se acharem sem chocalho ou campainha, assim nas estradas como nas terras dos particulares. 

XI. A presente ordem será publicada e afixada tanto em Lisboa como no termo, a fim de obter a mais pronta execução, especialmente recomendada ao zelo da Guarda Militar da Polícia, e a todos os empregados e adidos à mesma polícia, cada um pela parte que lhe toca. 

Lisboa, 9 de Abril de 1808. 

O Intendente Geral da Polícia de Lisboa e do Reino de Portugal. 

[Fonte: Gazeta de Lisboa, n.º 15, 12 de Abril de 1808].




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Nota: Deve notar-se que a tentativa de aplicação de medidas muito semelhantes a estas não era nova em Portugal, como se pode ver numa exposição que o Senado da Câmara de Lisboa fez ao Príncipe Regente D. João a 7 de Agosto de 1802. Neste documento pode ler-se, entre outros dados relativos à limpeza (ou talvez melhor dizendo, ao estado de imundice) da cidade, que "na consulta, que subiu à Real Presença de Vossa Alteza Real, em dezanove de Dezembro do ano [...] passado [ou seja, 1801], em observância do Real Aviso de sete do dito mês e ano, teve o Senado a honra de expor a Vossa Alteza Real as objecções que havia, e o que tinha já praticado o Intendente Geral da Polícia sobre a extinção da multiplicidade de cães que vagam sem dono por esta capital, cuja consulta ainda Vossa Alteza Real se não dignou de resolver. Porém no caso de ser do agrado de Vossa Alteza Real que se extingam os ditos animais, a Guarda Real da Polícia pode ter todo o cuidado sobre esta extinção, havendo-o Vossa Alteza Real assim por bem, e o Magistrado que administra a limpeza ter igual cuidado de mandar enterrar os cadáveres. Quanto aos porcos, quase todos os que surgem por esta cidade são de pessoas muito poderosas, e por isso os oficiais da Almotaçaria temem de os apreender, sem embargo das ordens do Senado, [...] e por isso só a Guarda Real da Polícia poderá fazer esta apreensão".