domingo, 31 de julho de 2011

Cópia de uma carta escrita a Mr. Junot por um seu amigo



Como é volúvel a Roda da fortuna, que num momento corta a fio da mais sólida ventura! Nunca imaginei que vos havia de chegar a Santa-Unção primeiro que a Quintela. Que desconsolação para os vossos amigos e para a vossa Madame Ega, ver-vos expirar depois dum Ducado tão glorioso no Mundo como o Reinado de vosso amo! Vós tínheis os fundamentos lançados de uma fama tão assinalada como a daquele Herói que incendiou em Éfeso o Templo de Diana, e em tudo, e por tudo, seriam reproduzidas em vós as virtudes deste. Porém, quanto pôde a ingratidão dos portugueses tomando as armas contra vós! Como depressa se esqueceram da Protecção que trouxestes ao seu país, fazendo dele uma conquista de amigo, abrindo estradas, rompendo canais, e pondo a coberto o seu ouro e prata da influência maligna da Inglaterra; ah, meu amigo, quanto sinto ver-vos à borda do precipício, verificando-se em vós o rifão antigo: Entradas de leão e saídas de sendeiro. Quem me dera uma voz tão robusta que ressoasse nos montes e vales, ou tão irada como o som da artilharia; eu bradaria então: 
Portugueses, que mal vos fez o vosso protector, para assim o acometerdes com ferro e fogo? Não é à iluminada Política deste General que o pobre Tejo deve o incomparável benefício de se ver desafrontado daqueles Exércitos de vasos que faziam gemer as suas águas com o enorme peso dos trigos, queijos, manteigas, arrozes, açúcares, farinhas de pão, algodões, panos, drogas e outras ridicularias deste género? Não é à grande protecção deste virtuoso chefe que a famosa Lisboa deve o ver-se evacuada de ingleses, americanos, gregos, marroquinos, holandeses, e de outros pobretões deste género, que nunca souberam comerciar como Mr. Junot, nem possuíram a grande arte de felicitar os povos como Napoleão; e não é por ele que se viu extinta na vossa capital a grande praga da traça, ficando tudo aliviado do peso das lãs, e remediada a sórdida indigência? Não é nas suas mãos que se viu reunido como num só ponto todo o vosso comércio; as artes num vigor tão prodigioso, que não fatigavam já os membros dos operários; as ciências em tanto gás que brevemente vos dariam um novo Camões; a Religião tão despida das superstições que a desonram, que sem demora seria o vosso catecismo o Filósofo militar, o Emílio, e outros iluminados Apóstolos que não teve a Igreja nos seus fundamentos; e em conclusão, uma polícia também ordenada, que tudo era uma limpeza decidida e elevada ao seu cume. E é contra um político desta ordem que vos tomais às armas? Assim insultais o Omnipotente que o enviou a proteger-vos, e que decidiu a vossa sorte dum modo tão glorioso e honrado? Assim se recompensam as acções grandes que ele obrou entre vós, e aquela piedosa protecção que enviou aos cidadãos das Caldas, pelo ministério dum General tão grande na virtude como mesquinho nos membros? 
Amigo Junot, assim falaria eu por vós, porém a Natureza [...] não me fez gigante [como] Golias, nem me deu a lira de Orfeu. Eu ouço já o estrondo das armas portuguesas que marcham em vosso alcance, e se o vento vos deixa ainda articular alguns sons, pedi a Vossa Amante ou que tome as armas da sua casa para vingar como Heroína o insulto que se dirige à Vossa Pessoa, ou que diga um eterno adeus aos arbustos do Ramalhão, com que coroaste os seus mimosos sorrisos.

Vale

[Fonte: Arquivo Histórico Militar (cota: AHM/DIV/1/14/006/32, fls. 1-3)].

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Nota:

Devemos o conhecimento deste documento, disponível fisicamente no Arquivo Histórico Militar, ao historiador Rui Manuel C. Prudêncio, que o disponibilizou integralmente no seu Blogue de História e Estórias, respeitando a ortografia original. Como referiu então Rui Prudêncio, ainda que o documento não se encontre datado, percebe-se pelo seu conteúdo que “é provável que date do período dos levantamentos populares organizados pelas sucessivas juntas formadas ao longo do país a partir de Junho de 1808 e antes do fim do governo de Junot com a Convenção de Sintra em Agosto do mesmo ano”. Resta-nos somente acrescentar que o seu tom de (aparente) incredulidade e de (falsa) ingenuidade parece ter sido inspirado por textos como a proclamação que Junot fez aos portugueses na data de 26 de Junho de 1808, precisamente a primeira onde o General francês se manifestou contra as incipientes revoltas que tinham então começado a surgir em vários pontos do país.
Em relação à autoria deste documento anónimo, não devemos confundir a última palavra do texto (Valle, no português antigo do manuscrito original) com o nome do autor. De facto, trata-se duma palavra latina que significa "adeus", e que era antigamente usada ao jeito de despedida, aparecendo precisamente com esse sentido no final de prefácios de outras obras portuguesas da época, e sendo exactamente assim definida no Diccionario da Lingua Portugueza de Rafael Bluteau de 1799). 
Escrita por um suposto amigo e apologista de Junot, esta "carta" é na verdade um documento bastante sarcástico que satiriza subtilmente o papel de Junot em Portugal através duma aparente crítica directa (embora nitidamente irónica) à ingratidão dos portugueses para com os seus protectores. Para além de várias referências irónicas às inúmeras promessas presentes nas proclamações de Junot (particularmente a de 1 de Fevereiro de 1808), este texto anónimo também alude ao suposto affaire que as más línguas da época diziam existir entre Junot e a Condessa de Ega (contando supostamente com o consentimento do próprio Conde da Ega), havendo inclusive rumores que o General francês a instruía na arte equestre em sítios como a quinta do Ramalhão. Raul Brandão, na sua obra El-Rei Junot, recolheu algumas poesias coetâneas que abordam este caso:  "[...] O Ega a mulher / Ao Junot foi entregar. // É onde pode chegar / O génio de ser cabrão. / Enfim, já chamam à Ega / Princesa do Ramalhão"; "O tal amigo Jinó [= Junot]Sem ser do seu mandado / Fez o Ega coronel / Deixando-o mui bem armado"; "Dizem que se transformaram / O conde da Ega e a mulher, / Ele em burro paneleiro, / Ela em besta de aluguer"; "P. - Trus, trus. R.  - Quem é? / P. - Aqui é que mora o almocreve / que aluga a égua e anda a pé?" [Fonte: Raul Brandão, El-Rei Junot, Porto, Renascença Portuguesa, 1919 (2.ª ed.), p. 276, p. 449 e p. 454]. Por curiosidade, e independentemente da veracidade de tais boatos, a convivência harmónica entre os Condes da Ega e Junot viria a motivar a fuga do casal para a França após a chamada Convenção de Sintra, acabando mesmo o Conde da Ega por ser condenado à morte em 1811, pena esta que foi finalmente anulada em 1823.



Iohn Bull amongst the Spaniards, or Boney decently Provided for, caricatura de Charles Williams (Julho de 1808)



John Bull entre os espanhóis, ou Bonaparte decentemente provido.
Caricatura de Charles Williams, publicada em Julho de 1808.


Esta caricatura, publicada na sequência dos pedidos de auxílio de algumas Juntas espanholas ao Governo britânico e da consequente declaração do fim das hostilidades contra a Espanha, representa John Bull sobre um barril de bebidas espirituosas britânicas, declarando aos espanhóis pouco animados que o cercam: "Meus bons amigos, aqui estou entre vós. Deveis saber que não gosto de qualquer tipo de estrangeiros, mas como quereis derrotar Bonaparte, trouxe-vos - por puro amor e caridade - alguma coisa para vos ajudar: aqui está um barril de bebidas espirituosas britânicas e outro de lâminas de barbear, dois cangalheiros, um coveiro e um pequeno caixão. O que mais podeis desejar?". 


Pormenor

Aludindo à segunda parte do título desta caricatura (note-se ainda que Boney, ademais de ser o diminutivo de Bonaparte em inglês, significa também "ossudo"), encontra-se aos pés do coveiro e dos cangalheiros cedidos por John Bull um pequeno caixão, condicente com a reduzida estatura atribuída ao Imperador da França, sobre o qual se lê o seguinte "epitáfio", que mais parece uma prece: 
Napoleão, por graça de Deus, deixa esta vida





Outras digitalizações:

British Museum

British Museum

The Ghosts of the Old Kings of Spain appearing to their Degenerate Posterity, caricatura atribuída a Charles Williams (Julho de 1808)




Os fantasmas dos velhos Reis da Espanha aparecendo à sua posteridade degenerada
Caricatura atribuída a Charles Williams, publicada em Julho de 1808.



Quatro fantasmas irados de antigos Reis da Espanha surgem no meio de fumo para condenar a família real espanhola. Um dos fantasmas, ao centro da gravura, vira-se para Carlos IV e declara-lhe: Desgraça dos vossos antepassados, tremereis pela vingança! O velho monarca, horrorizado, implora pela misericórdia do fantasma: Oh, não olheis com essa carranca para um pobre, miserável e velho rei. À esquerda da imagem, Fernando volta-se para o fantasma que está atrás de si, declarando-lhe, enquanto aponta um dedo acusador a Godoy:  Eis a causa da nossa desgraça. Contudo, o fantasma recorda a Fernando que também ele é responsável pelo destino da sua família: Relembrai que sois um Príncipe. Godoy, cujo chapéu está tombado no chão, enterra a sua cabeça no colo da rainha, como que buscando protecção, e do seu bolso caem papéis da Correspondência entre Godoy e Bonaparte e outros Para o Príncipe [da] Paz. Incapaz de assistir à horrífica cena, a própria rainha tapa a cara. Napoleão, no lado direito da gravura, é indiferente às aparições. Com um sorriso no rosto, remove a coroa de Carlos IV, e declara-lhe: Não vos alarmeis, meu bom amigo, tomarei conta da vossa Coroa, a qual não poderia estar em melhores mãos; penso que servirá no mano Zézinho. Vendo isto, John Bull, atrás de Napoleão, ordena-lhe que pare: Parai, meu pequeno senhor. Vereis que aí está uma pessoa chamada Fernando; essa coroa servir-lhe-á muito melhor do que em Zézinho



Outras digitalizações:

British Museum (a cores).

British Museum (a preto e branco).

Brown University Library (a preto e branco).


sábado, 30 de julho de 2011

Memória de Frei Manuel do Cenáculo, Arcebispo de Évora, sobre os antecedentes e consequências dos combates de Évora



Primeiro fólio da memória
Julgo ser do meu ofício conservar uma memória exacta e individual dos acontecimentos nesta cidade de Évora, principalmente relativos à minha pessoa, que sucederam desde a intrusão dos franceses neste reino; e tomo por época o dia 13 de Julho do ano [...] passado [de] 1808.
Tendo-se recebido neste dia uma carta oficial, escrita de Juromenha pelo comandante das forças espanholas naquela praça, D. Federico Moretti, dirigida à Câmara e Povo de Évora, propondo-lhe uma declaração contra o intruso governo, foi necessário proceder ao convocamento [sic] das três ordens, Nobreza, Clero e Povo, a que eu presidi; e foi o meu voto que, visto o estado da cidade, sem tropa, nem munições, não estava em estado de aceitar proposta alguma, no que todos concordaram, e se fez [um] termo, em virtude do qual foi a resposta de que se junta cópia debaixo do n.º 1; e dela se julgaram os magistrados obrigados a dar conta ao General Junot para evitar algum rompimento violento, e me foi participado pelos mesmos ministros a boa aceitação com que foi recebido este novo arbítrio.
Continuou esta cidade a sofrer pacificamente, obedecendo às ordens do governo intruso, sujeitando-se a executar as disposições dos ministros que administravam as secretarias e tribunais na Corte, e as expediam com cominações, para evitar as quais entretinha eu com respostas que acautelassem a esta minha diocese as cruéis hostilidades que sofreram tantos povos desta perseguida nação, e até me preparei com uma Pastoral que fiz imprimir, e é a que vai junta [com o] n.º 2; a qual cuidadosissímamente não publiquei, sem embargo dos exemplos de muitos outros Prelados que as publicaram, ainda que eu me visse instado e como [que] obrigado a fazê-lo pela insinuação expressa do chamado Secretário de Estado do Interior, Francisco António Herman [sic], em aviso seu e em nome do intruso Junot, datado de 13 de Maio de 1808*.
Assim permanecemos, até que não sei porque clandestina diligência se convocou o mesmo Coronel [Moretti] com alguma pequena escolta a vir a esta cidade incorporar-se com o General da província [do Alentejo, Francisco de Paula Leite], para se repetir a gloriosa aclamação do nosso Amável Príncipe, tornando a governar-nos na sua feliz obediência pelas Leis Pátrias, o que com efeito se praticou, apresentando-se ao Povo na varanda das casas da Câmara o retrato do mesmo Senhor pelos dois chefes português e espanhol, sendo inexplicável a alegria de todo o Povo, com que repetia vivas, repicando-se todos os sinos e desafogando todos os seus prazeres em mil demonstrações. Fiz eu logo que na Sé se cantasse [um] soleníssimo Te Deum, se celebrasse grande festa em acção de graças, renovando eu e todos nas minhas mãos o juramento de Fidelidade ao nosso Legítimo e Saudoso Soberano.
Recebi e hospedei no Palácio Arquiepiscopal o Coronel espanhol e grande número de oficiais e tropa que com ele concorriam. Estabelecemos um Governo de Regência, do qual eu era o Presidente com o General da província. Continuámos por poucos dias neste feliz estado, deliberando quanto nos pareceu a bem da nossa segurança e comodidade pública, quando no dia fatal de 29 de Julho fomos atacados pelo numeroso exército de nove para dez mil homens franceses, comandados pelo General em Chefe, Conde do Império Loison, e por dois outros Generais de Divisão, Solignac, e Margaron; o qual exército deixava já saqueada a vila de Montemor[-o-Novo] e feita grande mortandade, apesar da vanguarda de oitocentos homens e quatro bocas de fogo que ali tínhamos para defender o passo, a qual, à vista da desproporção com o inimigo, se retirou sem alguma operação de defesa.
Chegado este exército inimigo às vizinhanças da cidade, saíram ao campo os dois chefes com o Regimento de Estremoz, o de Voluntários Estrangeiros de Moretti, os artilheiros que serviam as quatro peças espanholas, alguma Cavalaria [espanhola] de Maria Luisa, e alguma outra do dispersado Regimento desta mesma cidade [de Évora], a que juntos os Caçadores da Ordenança, formaria um total de mil e oitocentos homens. Não há palavras para explicar o valor, a intrepidez, o patriotismo e o amor do seu Príncipe com que esta desproporcionadíssima tropa, principalmente os paisanos, arrostou o inimigo, distinguindo-se muito o Regimento de Estremoz, que investia com tanta intrepidez que o mesmo General Loison me disse que eram bravos soldados; e foi tanto o estrago feito no inimigo que, passadas duas horas de combate, à vista de terem feito a mortandade de três para quatro mil homens inimigos, mandaram os comandantes vários oficiais ao Palácio de minha residência participar-me que a vitória era nossa; o que foi por mim celebrado com graças particulares dadas ao Deus dos Exércitos, que tão visivelmente nos favorecia, e cuidei em prontamente acudir com refeição aos que julgava debilitados com o trabalho da nossa defensa. 
Quando isto celebrava vejo voltarem os mesmos e mais oficiais numa fuga debandada, e passados poucos momentos chega Moretti e me diz: Está a acção perdida; se Vossa Excelência não quer morrer às mãos dos franceses, fuja e esconda-se. Eu, que tenho em meu coração as minhas ovelhas, não julguei desampará-las em perigo tão evidente: corri para a minha Catedral, e no meio do confuso alarido do estrondo dos canhões mandei propor [a] capitulação; mas já em hora que estava entrada a cidade, desamparada de defensores, pois que toda a tropa tinha fugido em desordem, e quando já entravam pela Sé disparando tiros que mataram o meu Capelão da Cruz, que com ela e com a pequena comunidade que a mim se agregou, tinha mandado para a porta da Igreja; rebentando sobre a abóbada granadas que também mataram e feriram algumas pessoas, e fizeram cair aos meus pés estilhaços e pedaços de pedra; e quando já os oficiais vencedores e soldados, apontando-me baionetas ao peito, gritavam por dinheiro, ameaçando de morte e saque violento, eu desci do sólio, suplicando-lhes humildemente pela vida deste pobre povo. Então foi que eles à vista das minhas humilhações e súplicas deram indícios de que mudavam o parecer em que vinham de que eu era o cabeça da que eles chamavam revolução desta cidade; pois que eu era o Presidente do Governo estabelecido em nome de Sua Alteza Real. 
Eu não tinha feito acto algum positivo em obséquio da sua nação, e nem sendo insinuado tinha feito a publicação de uma só pastoral, e tanto deram disto indício que o General Loison, tendo dado ordem de entrar o exército na cidade a ferro e fogo, o que foi observado de sorte que a primeira casa em que entraram saqueando foi o Palácio Arquiepiscopal; para ele disparam muitos tiros, acometendo entretanto a casa e matando o meu Bispo Provisor, e penetrando o Convento de Santa Mónica, da jurisdição ordinária, no qual entrou o mesmo General e ordenou que dentro nele seria o seu quartel, dispondo-se as aflitas religiosas com cama e mesa, até que, informado do meu comportamento humilde e pastoral, me mandou dizer à Sé pelo seu ajudante e língua[=tradutor], o português Freitas, que se queria aquartelar no meu Palácio.
Recebi este aviso com demonstrações de satisfação e até de agradecimento, e com permissão da tropa feroz que nos tinha como prisioneiros na Sé, e com o pretexto de ir preparar a hospedagem, que logo me foi recomendada que devia ser decente e abundante para um General e quarenta oficiais; isto quando a minha família estava toda dispersa, não havendo na casa provisões algumas, e até sendo já morto por eles o meu cozinheiro. Fui neste aperto para casa acompanhado de alguns eclesiásticos e diocesanos que, por carinho, por medo e para refugiarem-se me acompanharam. Entrei em casa rodeado de militares destemidos, animados com a glória do triunfo e com o arrojo de inimigos cruéis, trazendo as espadas nuas, espingardas e pistolas empunhadas, vendo-me na necessidade de os hospedar sem faltas; para o que nunca podia estar provido, e naquela ocasião muito menos. Então entra, penetrando o interior das casas, o General Loison, com a carranca de triunfador, com a soberba de tirano, e, confrontando-se comigo, me disse, com gesto feroz e ameaçador: Monsenhor Arcebispo é réu de morte; assinou um decreto contra a França; é réu de morte. Ao que eu (graças a Deus) sem o mais pequeno soçobro, e apesar do alarido com que todos os oficiais circunstantes repetiam é verdade que é réu de morte, correspondi abaixando humildemente a cabeça, e o General continuou, apartando-se de mim com gesto e passos furiosos: Ao menos devia ter dado parte.
Comecei a dispor a hospedagem e a sofrer os insultos mais humilhantes de se deitarem sobre a minha mesma cama, de penetrarem e esquadrinharem os quartos particulares; de quererem ser servidos das coisas mais esquisitas e com a maior prontidão, até obrigando alguns criados que foram aparecendo, os clérigos e frades, como também alguns senhores que se refugiaram no Palácio, o qual tive aberto e franco para refúgio dos meus diocesanos, obrigando, digo, a que os servissem de pronto, e isto com pontapés, bofetões e ameaços de espadas e pistolas.
Foram com efeito hospedados à sua vontade com tudo quanto indiscretamente pediram, e eu lhes assistia à mesa, sem embargo do perigo a que me arriscava, pois o General ia para ela com um grande punhal que punha junto a si, e os oficiais que estavam a ela e os muitos que tumultuosamente saíam e entravam, todos armados de espadas e pistolas, ameaçando todos à mais pequena falta de prontidão. À vista de todos estes sofrimentos com paciência e humildade, se resolveu o General a dizer-me que a minha casa era livre de saque, e começou a tratar-me ele e mais alguns poucos oficiais maiores com menos desprezo e tirania; mas não foi a sua palavra observada, porque por ele mesmo General foi a minha casa saqueada excessivamente; não ficou quase nada da prata de que o meu antecessor se tinha provido; fiquei sem anel episcopal; todo o copioso monetário que a tanto custo tinha juntado para deixar, juntamente com a grande livraria que tenho edificado (a qual por si só dá tanto a ver a grande despesa que tenho feito para a instrução do Clero e Fiéis deste Rebanho, que um dos oficiais de grande patente, Mr. Pillet, disse ao vê-la: eis aqui porque o Arcebispo não tem dinheiro; pois o tem gastado nisto)**Tudo quanto era ouro e prata foi saqueado, como também rasgados os livros e feitos em pedaços os manuscritos, quebrando as mais pequenas e delicadas peças do museu natural e artificial, unicamente para levarem alguns pequenos remates de prata e oiro, fazendo em pedaços imagens de Cristo e Santos, enfim, reduzindo tudo a um estado de fazer lástima ainda a quem não é curioso.
Entretanto era aturdida toda a cidade com repetidos tiros, [e] alaridos dos desenfreados saqueadores e dos miseráveis que eram feridos e mortos e que presenciavam os desacatos feitos nos templos, o forçamento das donzelas, a entrada nos conventos dos Frades e Freiras, porque quase não houve Igreja onde não obrassem o insolentíssimo sacrilégio de arrombar o Santo Tabernáculo, espalharem pelo pavimento o Sacrossanto Corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo Sacramentado, para roubarem os vasos sagrados, até chegando a levar alguns com o mesmo Santíssimo Sacramento que derramaram no campo; profanando os mesmos Templos com homicídios e forçamentos a mulheres de todo o estado e idade.
Passada assim a tarde e noite de sexta-feira 29, fui na madrugada de Sábado rodeado pelo General e mais oficiais, mandando-me que fizesse uma exortação ao meu povo para que obedecesse à autoridade francesa, e que ordenasse o desarmamento do clero. Não tive mais remédio do que pegar na pena e com o socorro do Espírito Santo fazer as duas pequenas pastorais de que junto cópias (n.os 3 e 4); as quais, sendo por eles lidas, me ordenaram que prontamente lhe apresentasse vinte cópias delas; como também que mandasse logo cuidar em enterrar os muitos mortos de que estavam juncadas as ruas e cheias as casas; acrescentando que queriam estabelecer um Governo francês do qual seria eu o Presidente, e que lhe indicasse os membros de que se havia compor a Junta; tudo isso com sinais de que a minha vida responderia pela falta de sujeição, quando não havia na cidade pessoas de quem me lembrasse, as quais não estivessem mortas, como era o meu saudoso Bispo Provisor, os Desembargadores Manuel Simões e Fernando Silveira, e outros dispersos e fugidos. Tudo fiz auxiliado do meu clero exemplar, que com todo o fervor me ajudaram num tal aperto e aflição.
Então se seguiu que o General me tratasse com mais benignidade, protestando-me respeito, e que por mim perdoava as mortes que se haviam de seguir, como também dava a liberdade a inumeráveis prisioneiros que tinha dentro da Sé e nas cadeias, entre os quais eram muitos Frades e Clérigos, duzentos homens do Regimento de Estremoz e muitos paisanos; levando-me para isso à Igreja, e fazendo dizer pelo seu língua [=tradutor] a todos que em obséquio e respeito ao seu Prelado lhes perdoava a morte e dava a liberdade, do que resultou que esta aflitíssima cidade rompesse nos clamores de que era a mim que eles deviam a vida e o resto dos bens que lhes ficaram (veja-se a cópia junta n.º 5***). Gozava eu desta pequena respiração, quando ouço rodar quatro peças, e postarem-se na frente da minha casa, e um alvoroço e tumulto dentro nela, entrando de repente no meu quarto o general, e deixando-se cair com todo o peso num canapé, me diz: Monsenhor, eu não posso com os franceses; eu não posso conter os soldados. Ao que lhe respondi que não havendo subordinação na tropa nada se conseguia. Era o caso que acabando os oficiais de fazer uma resenha (posto que inexacta) da sua tropa e achando que os mortos lhe passavam de três mil, instavam a ele General que fosse queimada e arrasada a cidade, principiando pelo Palácio Arquiepiscopal. Acudiu Deus, e passada meia hora mandou retirar as peças, repetindo a fineza de que por mim perdoava tudo.
Passado o Sábado e o Domingo entre estas angústias e perigos próximos e evidentes de vida, é incrível quanto sofri por mim e pelos meus; choviam as ordens para desarmar (veja-se a cópia n.º 6), para aprontar rações, para arrasar muros, para franquear cofres, para mandar vir Cónegos que lhes abrissem as suas oficinas, de onde tiraram que havia de prata e dinheiro; como também de todos os depósitos públicos e particulares até que na madrugada de segunda-feira mandou o General dizer-me pelo seu Secretário, estando eu ainda na cama, que ele com o exército fazia uma digressão que duraria quatro dias; que me recomendava o governo da cidade, intimando-me mil ordens impossíveis de praticar-se, das quais ele viria saber a execução.
Dei graças a Deus por esta respiração que me concedia, e continuei com a Junta a cuidar no sossego e cómodo dos desolados habitantes desta triste cidade. Dei ordens para haver provisão de mantimentos e para que os dispersos e fugitivos se restituíssem às suas casas, e isto fiz unicamente para que o Povo deixado a si não se desordenasse e se acrescentassem os males uns aos outros.


[...]


Frei Manuel, Arcebispo de Évora

[Fonte: Frei Manuel do Cenáculo Villas-Boas, Diário - 5.º Códice, fls 82-95 (disponível para consulta on-line na Biblioteca Digital do Alentejo). Esta memória manuscrita (bem como os documentos citados) foi publicada originalmente por António Francisco Barata, com o título Memoria Descriptiva do Assalto, Entrada e Saque da Cidade de Évora pelos Francezes, em 1808, impressa a expensas do municipio em gratidão e lembrança do Arcebispo D. Frei Manuel do Cenáculo Villas Boas, Évora, Minerva Eborense, 1887. Existe uma edição mais recente, cópia da anterior, com apresentação de Celso Mangucci, publicada in Cenáculo (Boletim on line do Museu de Évora), n.º 3, Setembro de 2008, pp. 3-22].


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Notas:


* Ou seja, precisamente um dia depois de se ter mandado publicar a carta da chamada deputação portuguesa. Apesar de não conhecermos cópia alguma do citado aviso de Hermann, sabemos que nesse mesmo dia 13 de Maio Lagarde enviou um ofício ao Juiz de Fora de Vila de Franca de Xira (ofício esse que possivelmente seria uma carta-circular destinada a todas as autoridades camarárias do país), no qual também se recomendava que fossem dadas ordens para que os párocos locais lessem a referida carta da deputação portuguesa na missa do "domingo seguinte ao dia da sua recepção". Nos dias seguintes, alguns bispos publicaram inclusiva cartas pastorais com agradecimentos a Napoleão por ter permitido que Portugal continuasse a ser um país independente... Já atrás inserimos duas pastorais compostas na sequência da publicação da carta da deputação portuguesa: uma do bispo do Algarve, de 21 de Maio (um mês antes de ser "eleito" vice-presidente da Junta do Algarve); e outra do próprio Frei Manuel do Cenáculo, datada de 20 de Maio (devendo-se notar, repetimos aqui, que esta última não se mandou publicar).



*"Para Frei Manuel, a Biblioteca de Évora  surge como corolário de toda uma vida em que a colecção e aquisição de livros, raridades, obras de arte e peças naturais foi uma constante, tendo sempre em vista criar bibliotecas e museus para instruir o maior número possível de pessoas, através da leitura e da observação de obras de arte ou da natureza. A criação de uma biblioteca pública era, portanto, o ponto mais alto de toda a sua actividade e gosto pelas colecções, tanto mais que vinha dotar a cidade de Évora, com uma instituição onde queria reunir o que considerava importante para o progresso do saber. Por isso, foi uma dos primeiros actividades em que se envolveu logo após a chegada. O seu Diário dá conta que os trabalhos de instalação iam a bom ritmo, sobretudo a partir de 1805. Para a biblioteca escolheu a ala ocidental do palácio episcopal, que tinha sido destinada por um dos seus antecessores para Colégio dos Meninos do Coro da Sé e que estava ligado por um passadiço ao resto do edifício, onde instalou o Gabinete, que posteriormente seria o Museu Regional. 
Os fundos bibliográficos  eram, nesta primeira fase, provenientes dos livros deixados pelo seu antecessor, Frei Joaquim Xavier Botelho de Lima e dos muitos milhares que o próprio Cenáculo trouxera de Beja que, de acordo com o inventário feito após a sua morte em 1814, seriam 50.000 volumes. As invasões e o saque de que foi alvo a cidade, pelos franceses em 1808, bem como a prisão do Arcebispo pela Junta Revolucionária, atrasaram todo o processo e a perda de parte do valioso espólio". 
[Fonte: Francisco António Lourenço Vaz, "As Bibliotecas e os Livros na obra de D. Frei Manuel do Cenáculo", in La Memoria de los Libros. Estudios sobre la historia del escrito y de la lectura en Europa y America, Salamanca, Instituto de Historia del Libro y de la Lectura- Fundacion Duques de Soria, 2004, t. II, p. 483-498].



*** (Documento n.º 5):

Nós, as pessoas da Nobreza e Povo desta cidade de Évora, fazemos saber por esta nossa atestação, a todos os senhores a quem ela for apresentada que é ao Excelentíssimo e Reverendíssimo Senhor D. Frei Manuel do Cenáculo Vilas Boas, nosso Arcebispo Metropolitano, a quem devemos as vidas que temos e as casas que habitamos; pois que sendo entrada à escala esta cidade no dia 29 de Julho passado pelos franceses e recebendo a tropa do seu General Loison a ordem de entrar a ferro e fogo, começou a executá-la disparando peças de metralha pelas ruas, matando a tiro de fuzil e à espada quantas pessoas encontravam, sem distinção de sexo, estado e idade, até entrando pela Santa Sé atirando tiros de bala, dos quais houveram vários mortos e feridos, sendo um deles o Sacerdote Capelão que estava com a Santa Cruz alçada, junto à porta, e foi morto pelo estrago dos tiros; e seria total a mortandade se o nosso Santo Prelado com virtuosa intrepidez (depois de amedrontado com baionetas apontadas ao seu peito, com alfanges desembainhados, e com o estrago de uma bomba que rebentou no tecto da Capela mor sobre a sua cabeça e arrojou próximo a ele porções de metralha e pedaços de pedras) não se prostrasse humildemente ante os Oficiais Generais, pedindo o perdão para as suas aflitas ovelhas, hospedando na sua casa o General e quarenta Oficiais, doentes uns, importunos e absolutos todos; sujeitando-se a quantas extravagantes hostilidades lhe faziam, roubando-lhe o seu copioso e rico monetário, levando-lhe todas as cavalgaduras do serviço de sua pessoa e casa, e roubando-lhe até o seu anel episcopal; pretendendo dele ordens, Pastorais, até que se sujeitasse a ser Governador da cidade; e tudo isso com pistolas na mão e espadas nuas, dando toda a certeza de que qualquer repugnância seria causa da sua morte e do estrago e ruína total desta nossa cidade, o que o mesmo General Loison manifestou publicamente na igreja, quando publicou o perdão que dava por sua intercessão não só à cidade senão ainda a duzentos prisioneiros que tinha dentro na mesma Sé; pelo que é geral a confissão que todos os que ficámos com a vida fazemos de que é ao nosso Prelado que a devemos. Isto sabemos porque o presenciámos e outros porque achámos esta notoriedade quando nos recolhemos da fuga em que andámos desterrados, por isso em obséquio da verdade e [em] sinal do nosso agradecimento o atestamos com todas as asseverações de honra e Religião.
Évora, 30 de Setembro de 1809.
Seguem-se as assinaturas da Nobreza e Povo, com o reconhecimento em forma.


Relação das pessoas mortas na entrada dos franceses na cidade de Évora nos dias 28, 29 e 30 de Julho de 1808







(Clicar nas imagens para ampliar)

[Fonte: Frei Manuel do Cenáculo Villas-Boas, Diário - 5.º Códice, fls. 289-290v (disponível para consulta on-line na Biblioteca Digital do Alentejo)].

Aviso para se enterrarem as vítimas dos confrontos de Évora (30 de Julho de 1808)





Aos Reverendos Párocos da Santa Sé faço aviso para que logo no dia de hoje, trinta do corrente mês de Julho, passem a enterrar os mortos que se acharem nas ruas do seu distrito. 
Évora, em 30 de Julho de 1808.


Padre Manuel F. de Sousa


O mesmo acautelo dos que se acharem dentro das casas.


[Fonte: Frei Manuel do Cenáculo Villas-Boas, Diário - 5.º Códice, fl. 82 (disponível para consulta on-line na Biblioteca Digital do Alentejo)].

Carta do General Loison a Junot, sobre o combate de Évora (30 de Julho de 1808)


Évora, 30 de Julho de 1808. 



Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor, 
Tenho a honra de dirigir a Vossa Excelência uma relação por segunda via do combate que houve a 28 deste mês, em Montemor-o-Novo, donde parti a 29, pelas três horas da manhã, a fim de encaminhar com todas as minhas tropas para Évora. Sabia eu que o inimigo tinha enviado a esta praça todas as suas forças, e desguarnecido inteiramente a de Estremoz. 
Chegamos à vista das alturas de Évora pelas onze horas e meia da manhã; o inimigo começou por atacar a vanguarda com os seus atiradores e fez um fogo bastantemente aturado de artilharia e de obus. Dei ordem às duas Brigadas para que se unissem estreitamente em massa, e à reserva [para] que tomasse posição, e passei avante com os Senhores Generais Solignac e Margaron, para reconhecer a posição do inimigo e a da praça, e decidir consecutivametente os diferentes ataques. 
Reconheci então que o inimigo ocupava as alturas da direita, coisa de uma boa meia légua da cidade, que ele se prolongava pelo cimo das montanhas, com a esquerda apoiada na cidadela ou castelo velho; e que as suas baterias se achavam assestadas, convém a saber: um obus e três peças de artilharia à direita, dois obuses e duas peças de artilharia no centro, e finalmente mais quatro peças de artilharia a meio declive e diante do seu centro. 
Dei ordem ao Senhor General Solignac de passar à direita com a sua Brigada; de expelir o inimigo das alturas; de rodear a cidade, e de apoiar a sua direita na estrada de Estremoz.
Ao Senhor General Margaron ordenei que destacasse o 58.º Regimento de linha para a sua esquerda; que atacasse as baterias inimigas, procurando desbaratar a infantaria e a cavalaria; que passasse rapidamente ao caminho que conduz a Arraiolos, a fim de unir-se pela sua esquadra com a Brigada do Senhor General Solignac, e por este movimento cortar toda a retirada ao inimigo, enquanto na frente do 86.º Regimento marchasse contra o centro do inimigo, para unir-se depois pela sua direita com o General Solignac, e pela sua esquerda com o seu 58.º Regimento. 
A cavalaria e artilharia receberam ordem de suster este movimento; e de sair consecutivamente pela direita e pela esquerda, para acometer os espanhóis que procurassem ganhar os caminhos de Arraiolos, Estremoz e Beja; a reserva dos Granadeiros marchava no centro das duas Brigadas, para protegê-lo se preciso fosse. 
Estas diferentes manobras se executaram com a maior exacção, apesar do vivíssimo fogo da mosquetaria e artilharia do inimigo; as suas posições lhe foram tomadas, e destroçado o inimigo por todas as partes, deixou o terreno coberto de mortos, e quase toda a sua artilharia em poder da nossa valorosa gente; as tropas mereceram nesta ocasião o título de Soldados Veteranos; cada homem ficou firme no seu posto; e sem embargo de rebentarem os obuses em meio das fileiras, ninguém se moveu do seu lugar. Os Senhores Generais Solignac e Margaron se portaram, como já o tinham feito em campanhas precedentes, com intrepidez, presença de ânimo e grande inteligência. 
Não serei extenso com os elogios que lhes são devidos, pois a Vossa Excelência é que compete dar a conhecer a Sua Majestade que eles adquiriram, nesta ocasião, novos títulos à sua benevolência. 
Estando em nosso poder as posições exteriores, e Évora cercada completamente, restava tomar esta praça à viva força. Os espanhóis porém não querendo dar ouvidos a preposição alguma, espingardeavam os portugueses que queriam, submetendo-se, obstar à perda da sua cidade; e nas torres e alturas tinham arvorado bandeiras negras com a divisa Vencer ou morrer por Deus e por D. Fernando VII
Todas as milícias de Viana, Beja, Montemor-o-Novo e Estremoz, e os Regimentos de Estremoz, Burgos e Badajoz, os Dragões de María Luísa, e alguns soldados de cavalo portugueses ocupavam os flancos da praça e guarneciam os seus baluartes, bastiões e torres. 
O Senhor General Solignac recebeu ordem de atacar a praça da banda da cidadela e das portas que conduzem a Elvas, Estremoz e Arraiolos, enquanto o Senhor General Margaron acometesse da banda das que conduzem a Beja e Montemor-o-Novo, como também da banda do Aqueduto. O Senhor General Solignac destroçou tudo quanto estava diante dele; e tendo advertido que os espanhóis procuravam retirar-se pela estrada de Estremoz com alguma infantaria portuguesa, mandou que os atacassem; mais de 300 homens ficaram pois mortos e alguns centenares prisioneiros; ele porém não pôde apoderar-se das únicas 5 peças de artilharia que os Dragões de María Luísa, que escaparam à carnagem, conseguiram salvar. A cavalaria da Brigada não pôde chegar bem a tempo; porém, o 4.º Regimento de Dragões acometeu o inimigo na estrada de Estremoz, e lhe matou coisa de 150 homens. 
O Senhor General Margaron, depois de ter desbaratado quanto estava na sua presença, dirigiu-se precipitadamente, na frente da sua infantaria, para as portas da cidade, que estavam todas muradas; e como não pudesse chegar a abrir-se passo, mandou que se adiantasse a sua artilharia para procurar destruir a obra de alvenaria que tapava as portas, o que foi impossível executar, apesar de jogarem os canhões na distância de 100 passos, por terem os muros mais de 2 pés de grossura. Então passou ele para a esquerda, e depois de ter feito calar em parte o fogo do inimigo, abriu-se ele passo por uma das portas da cidade, mediante algumas pedras que se chegaram a arrancar, e foi um dos primeiros que entrou na praça, enquanto da banda da porta de Estremoz, a infantaria ligeira do senhor General Solignac escalava os muros e entrava ao mesmo tempo. Inflamado o valor dos nossos soldados moços com o exemplo dos chefes, tinham todos um bem ardente desejo de segui-los. Uns trepavam pois as muralhas por meio de escadas; e outros se introduziam pelos canos; e alguns finalmente fincando as suas baionetas nas muralhas, se serviam delas como de escadas. 
Mandei demolir as portas, a fim de poder suster as tropas entradas na cidade, que pelejavam com um inimigo enfurecido, desesperado, e que sem embargo de termos aí uma força numerosa, não abandonava nem sequer os baluartes, e fazia fogo terrível das janelas, telhados e torres das igrejas. 
A carnagem foi grande; e a cidade de Évora foi saqueada. O que pudemos conseguir pelos nossos esforços reunidos, é que ela não fosse incendiada. 
O resultado dos 2 ataques é, da parte do inimigo, coisa de cinco mil mortos e perto de dois mil prisioneiros. Entre estes se compreendem muitos habitantes dos campos, que foram enganados pelos espanhóis, e que amaldiçoavam a sua perfídia. Eu os tornei a enviar para os seus lares. 
Em nosso poder caíram 7 bocas de fogo, duas das quais são obuses, vários caixões, uma imensa quantidade de cartuchos, pólvora em barris, balas, bombas, espingardas e 8 bandeiras. 
Por nossa parte, temos de sentir a perda de 90 dos nossos valorosos homens mortos e coisa de 200 feridos. Entre os primeiros se compreende mr. Spinola, oficial de Engenharia, que dava grandes esperanças. Mr. Comel, oficial do Estado Maior, adicto ao senhor General Solignac; e mr. Fillis, segundo Tenente do 86.º Regimento. No número dos feridos entram mrs. Royer e Herman, oficiais do 86.º, e mr. Descragnolles, Ajudante de Campo do General Solignac. Este moço, que ficou com um braço quebrado, se houve como herói, durante a acção; a seu favor solicito eu a protecção de Vossa Excelência. 
Os Senhores Generais de Brigada louvam infinitamente as tropas que estavam às suas ordens. O 12.º e o 15.º, que formavam o segundo Regimento provisório de infantaria ligeira, a Legião Hanoveriana, o 58.º e 86.º de linha, o 4.º e 5.º de Dragões, e a artilharia, todos estes corpos competiram entre si em glória. O segundo Regimento provisório de gente escolhida se mostrou digno do lugar que ocupa à testa de homens valorosos. 
Os Senhores Generais e Chefes dos Corpos recomendam particularmente a mr. Brondel, segundo Tenente do 2.º Regimento provisório de infantaria ligeira, que foi um dos primeiros que entrou em Évora, e que contribuiu para a tomada de 2 peças de artilharia; o Capitão Mouchei, do mesmo Regimento, o Tenente, o 2.º Tenente e o 1.º Sargento da sua Companhia, os quais tomaram 2 peças de artilharia, e foram igualmente dos primeiros que entraram na praça; e mr. Tessan, Capitão do 2.º Regimento provisório de infantaria ligeira. 
O Senhor General Solignac faz os maiores elogios ao senhor Coronel Stiffier, Comandante da Legião Hanoveriana; ao senhor Major Petit, Comandante do 2.º Regimento de infantaria ligeira; a mr. Théron, Major Comandante do 4.º Regimento de Dragões, e a mr. Oudot, Chefe de Batalhão do 12.º. 
O Senhor General Margaron dá grande louvor aos senhores Teru, Meunon, Defosse, Guignard, Capitães; Grand, Tenente, e Vicent, 2.º Tenente, todos do 86.º Regimento. O Senhor Coronel Lacroix faz também os maiores elogios aos Capitães Pascali, Suzan, Poirier e Guillam, como também ao 2.º Tenente Lavoyem. O Senhor Coronel Lacroix e os Senhores Majores Bertrand e Leclerc, e os Chefes de Batalhão Dugay e Bazin se distinguiram de um modo particular na frente da sua tropa 
Tenho de dar grande louvor ao comportamento e presença de ânimo do Senhor Major St. Clair, Comandante da reserva; aos Senhores Revesi e Palaméde de Ferbin, cada um dos quais comandava um Batalhão de gente escolhida; a mr. Goubet, Capitão de Granadeiros do 15.º Regimento; a mr. Brunet, Capitão de atiradores do 86.º; e ao Sargento Riviére da 1.ª Companhia de Granadeiros do mesmo 86.º, o qual foi passado de parte a parte por uma bala, ao subir o assalto. 
Com grande prazer ajunto os testemunhos da minha satisfação aos dos Senhores Generais Margaron e Solignac a respeito do brilhante modo com que se houveram, nesta batalha, mrs. Simmers, chefe de Esquadrão, adicto ao Príncipe de Neufchatel; Auguste de Forbin, Ajudante de Campo de Vossa Excelência; Destourdelles, Ajudante de Campo do Senhor General Solignac; Duplessis, Ajudante de Campo do Senhor General Margaron; Lafitte, dito; Trintinian e Drouville, Ajudantes de Campo do Senhor General Thiébault; Fontenai e Laffon, oficiais da Legião Portuguesa, empregados junto dos ditos Generais. O senhor General Margaron solicita particularmente que mr. Duplessis seja condecorado com a Legião de Honra, e que mr. Lafitte tenha um posto de acesso. 
Recomendo à protecção de Vossa Excelência mr. Coisel, Chefe de Batalhão, meu primeiro Ajudante de Campo; Laval e Quirod, Ajudantes de Campo de Vossa Excelência; Laguette, oficial de Engenharia; Obusir, Capitão adjunto; Reycend, oficial português; Freitas, Capitão de artilharia português; Hennet, Ajudante de Campo do senhor General Taviel; Teraiz [confirmar se tenho na fotocopia], adicto ao meu Estado Maior; e Buffon, oficial da Legião Portuguesa, Ajudante de Campo de Vossa Excelência. Rogo a Vossa Excelência que se digne de solicitar que estes valorosos oficiais sejam compensados. Mr. Coisel e Freitas tiveram mortos os cavalos em que andavam montados; mr. Hennet teve o seu ferido. 
Não passarei em silêncio o belo comportamento do Ajudante-Comandante Pillet, chefe do meu Estado Maior; e do senhor Coronel de Artilharia de Aboville. Solicitarei que o primeiro seja condecorado com a insígnia de Oficial da Legião de Honra. 
Os Dragões portugueses que servem junto de mim se houveram de um modo perfeito. Um deles ficou ferido; o senhor Capitão Monjardim, por quem são comandados, se faz digno de elogios pelo seu valor: é um excelente Oficial. 
Os Oficiais de saúde e o Director do hospital ambulante, à testa dos quais está mr. Blaise, cirurgião mor, deram provas de zelo, e se fazem dignos de louvor pelo desvelo activo e seguido com que têm tratado os nossos feridos. 
Não me esquecerei também de mr. Therry, adjunto do Comissário de Guerra, o qual se expôs constantemente aos maiores perigos, no desempenho das funções de oficial do Estado Maior. 
Digne-se Vossa Excelência de aceitar a homenagem dos meus sentimentos respeitosos, etc. 

O Conde do Império, General de Divisão, 
O. Loison 

P.S. Entre os mortos da parte do inimigo se acham vários Oficiais superiores espanhóis e portugueses. Dizem que mr. [Francisco de Paula] Leite entra neste número. O que induz a crê-lo é a grande venera da Ordem de Cristo e esporas douradas que se acharam a um dos cadáveres. Entre os prisioneiros, temos um Tenente Coronel espanhol e alguns Oficiais portugueses sobre quem faço vigiar com todo o cuidado. 
Ocupo-me agora em organizar as autoridades e em dar busca à cidade onde estão escondidos alguns espanhóis e rebeldes. 

[Fonte: 2.º Supplemtento à Gazeta de Lisboa, n.º 29, 2 de Agosto de 1808].

Edital do Bispo de Évora favorável aos franceses (30 de Julho de 1808)



Enquanto o meu género de vida não me facilita para um longo discurso sobre a matéria que devo tratar, contudo sua qualidade importante e os seus abusos, que se devem evitar, penhoram-me para enunciar do modo possível até que melhorados dias dêem ócio e frase. O objecto não é menos que a reprovação de um abuso pernicioso ao estado moral e eclesiástico. É a reprovação, digo, de se armarem os eclesiásticos, militarmente, segundo lhes inspirar a sua imaginação indisciplinada, e extravagante sistema é este oposto ao Evangelho que professamos. Este manda ser o eclesiástico manso e humilde: ele veda o fogo e ferro manejado pelo eclesiástico; ele nos proíbe ser guerreiros e gente armada; nossa milícia é para contender com os vícios e propagar a virtude. Quanto é dissonante destes exercícios uma vida guerreira, mal animada e mal comportada! O braço que sustenta a Arca do Testamento seria torpemente distraído para empunhar o ferro e o aço. Seria introduzir no Santuário o abuso e o vício. Não há engenho nem arte que façam concordar a doçura evangélica e o estrondo das armas. Aquela é a nossa vocação legítima. O contrário seria viver exposto à sanha militar para descrédito e demonstrações tristes. Para estas ideias deve o eclesiástico regular sua vida para nem desagradar à Divindade, que o quer humilde, nem às Potências temporais, que tiram escândalo de semelhante abuso. O alvoroço militar que lhe recomendamos é a pronta obediência às vozes da sabedoria, quando chama para a sua fortaleza e para guarnecer as muralhas da cidade, com a valentia da doutrina e virtude; quando os interessa na vigia contra os assaltos dos inimigos da alma, e põem em alerta para a preservar dos insultos. Ocupados os eclesiásticos destas obrigações, jamais se deixarão enganar pelo atractivo da armadura que lhes é incompetente. A armadura doutrinal para que a sabedoria nos convida é o que a mesma sabedoria encarnada ostentou entre os homens, e dela deu mostras no Tabor, onde ensinou a ocupação sacerdotal, servindo aos ministros e sacramentos da Lei, dos Profetas e do Evangelho. Confiamos que pelo arbítrio de inspirar aos professores do nosso estado os argumentos por que se devem dirigir nos actos da sua vida, haverão de conformar-se todos ao Clero escolhido e modesto e ao espírito das Santas Escrituras. Contudo, para o fazerem meritoriamente, mandamos ao Clero de um e outro estado, secular e regular, [que] não tenham em seu poder nem usem de armas que lhe são defesas, e [que] as deponham no depósito público, aonde o governo desta cidade as tem mandado fechar. Este nosso edital será lido nas Igrejas desta cidade.
Dado em Évora sob nosso sinal, aos 30 de Julho de 1808

Frei Manuel, Arcebispo de Évora


[Fonte: Frei Manuel do Cenáculo Villas-Boas, Diário - 5.º Códice, fls. 108-109 (disponível para consulta on-line na Biblioteca Digital do Alentejo)].

Exortação do Bispo de Évora favorável aos franceses (30 de Julho de 1808)



Da Pacem Domine in diebus nostris. 
Dai-nos, Senhor, paz em nossos dias.

Dom Frei Manuel do Cenáculo Vilas Boas, por mercê de Deus e da Santa Sé Apostólica, Arcebispo Metropolitano de Évora, etc.
A todos os fiéis desta nossa diocese, saúde e bênção em Jesus Cristo. 

Acudir às urgências do povo com as instruções necessárias e avisos oportunos é da nossa obrigação pastoral. Nesta inquietação conseguinte às adopções do Governo é necessário fazer ver aos fiéis o perigo de um arbítrio que nem seja saudável nem útil. Quis a Providencia Divina que a nossa obediência a sujeição fosse dirigida e determinada pelo Governo do Invencível Napoleão. É necessário assentar em vaso firme, para a segurança dos nossos passos. A instrução apostólica não se ocupa de questões; o que de direito se nos apresenta é o que lemos nas Sagradas Escrituras: obedecer a quem nos preside. Isto assim observado vem a tranquilidade com todos os bens consecutivos. A este desempenho vos exorto e aconselho; certos em que esta obediência é acção cristã. Não há lugar para questões. Sempre delas se tira moléstia e desassossego. Por outra parte, nos bens negativos o bom cristão deve obrar em virtudes positivas: acreditar o melhor e obrar com aprovação meritória e decisiva. Isto assim entendido e tomado em justa resolução cumpramos, obedecendo aos Superiores da actual situação e do Império do Invencível Imperador e Rei Napoleão, e entremos em sossego no governo das nossas vidas, cada um na sorte que Deus nos dispensar. Viveremos contentes e em tranquilidade.
Dado em Évora, sob o nosso sinal, aos 30 de Julho de 1808.

Frei Manuel, Arcebispo de Évora

[Fonte: Frei Manuel do Cenáculo Villas-Boas, Diário - 5.º Códice, fls. 107-107v (disponível para consulta on-line na Biblioteca Digital do Alentejo)].


Proclamação do General Loison aos habitantes de Évora (30 de Julho de 1808)


Exército de Portugal 

O Conde do Império, General da Divisão Loison, Comandante do Corpo de Exército em Evora, ordena a todos os habitantes de declarar, durante o dia, os soldados espanhóis e habitantes do campo e estrangeiros de fora da cidade que se achem nas suas casas, como também de virem entregar, durante o dia, ao Palácio do Arcebispo, todas as diferentes armas, como espingardas, pistolas, chuços, espadas, isto sob pena de morte; há de passar uma revista exacta em todas as casas, campos e quintais da cidade, e se depois desta presente ordem, for achado algum dos indivíduos declarados ou algumas das referidas armas será o dono sujeito à mesma pena de morte.
No Quartel General de Évora, em 30 de Julho de 1808

Loison

[Fonte: Frei Manuel do Cenáculo Villas-Boas, Diário - 5.º Códice, fl. 112 (disponível para consulta on-line na Biblioteca Digital do Alentejo)].