Como é volúvel a Roda da fortuna, que num momento corta a fio da mais sólida ventura! Nunca imaginei que vos havia de chegar a Santa-Unção primeiro que a Quintela. Que desconsolação para os vossos amigos e para a vossa Madame Ega, ver-vos expirar depois dum Ducado tão glorioso no Mundo como o Reinado de vosso amo! Vós tínheis os fundamentos lançados de uma fama tão assinalada como a daquele Herói que incendiou em Éfeso o Templo de Diana, e em tudo, e por tudo, seriam reproduzidas em vós as virtudes deste. Porém, quanto pôde a ingratidão dos portugueses tomando as armas contra vós! Como depressa se esqueceram da Protecção que trouxestes ao seu país, fazendo dele uma conquista de amigo, abrindo estradas, rompendo canais, e pondo a coberto o seu ouro e prata da influência maligna da Inglaterra; ah, meu amigo, quanto sinto ver-vos à borda do precipício, verificando-se em vós o rifão antigo: Entradas de leão e saídas de sendeiro. Quem me dera uma voz tão robusta que ressoasse nos montes e vales, ou tão irada como o som da artilharia; eu bradaria então:
Portugueses, que mal vos fez o vosso protector, para assim o acometerdes com ferro e fogo? Não é à iluminada Política deste General que o pobre Tejo deve o incomparável benefício de se ver desafrontado daqueles Exércitos de vasos que faziam gemer as suas águas com o enorme peso dos trigos, queijos, manteigas, arrozes, açúcares, farinhas de pão, algodões, panos, drogas e outras ridicularias deste género? Não é à grande protecção deste virtuoso chefe que a famosa Lisboa deve o ver-se evacuada de ingleses, americanos, gregos, marroquinos, holandeses, e de outros pobretões deste género, que nunca souberam comerciar como Mr. Junot, nem possuíram a grande arte de felicitar os povos como Napoleão; e não é por ele que se viu extinta na vossa capital a grande praga da traça, ficando tudo aliviado do peso das lãs, e remediada a sórdida indigência? Não é nas suas mãos que se viu reunido como num só ponto todo o vosso comércio; as artes num vigor tão prodigioso, que não fatigavam já os membros dos operários; as ciências em tanto gás que brevemente vos dariam um novo Camões; a Religião tão despida das superstições que a desonram, que sem demora seria o vosso catecismo o Filósofo militar, o Emílio, e outros iluminados Apóstolos que não teve a Igreja nos seus fundamentos; e em conclusão, uma polícia também ordenada, que tudo era uma limpeza decidida e elevada ao seu cume. E é contra um político desta ordem que vos tomais às armas? Assim insultais o Omnipotente que o enviou a proteger-vos, e que decidiu a vossa sorte dum modo tão glorioso e honrado? Assim se recompensam as acções grandes que ele obrou entre vós, e aquela piedosa protecção que enviou aos cidadãos das Caldas, pelo ministério dum General tão grande na virtude como mesquinho nos membros?
Amigo Junot, assim falaria eu por vós, porém a Natureza [...] não me fez gigante [como] Golias, nem me deu a lira de Orfeu. Eu ouço já o estrondo das armas portuguesas que marcham em vosso alcance, e se o vento vos deixa ainda articular alguns sons, pedi a Vossa Amante ou que tome as armas da sua casa para vingar como Heroína o insulto que se dirige à Vossa Pessoa, ou que diga um eterno adeus aos arbustos do Ramalhão, com que coroaste os seus mimosos sorrisos.
Vale
Portugueses, que mal vos fez o vosso protector, para assim o acometerdes com ferro e fogo? Não é à iluminada Política deste General que o pobre Tejo deve o incomparável benefício de se ver desafrontado daqueles Exércitos de vasos que faziam gemer as suas águas com o enorme peso dos trigos, queijos, manteigas, arrozes, açúcares, farinhas de pão, algodões, panos, drogas e outras ridicularias deste género? Não é à grande protecção deste virtuoso chefe que a famosa Lisboa deve o ver-se evacuada de ingleses, americanos, gregos, marroquinos, holandeses, e de outros pobretões deste género, que nunca souberam comerciar como Mr. Junot, nem possuíram a grande arte de felicitar os povos como Napoleão; e não é por ele que se viu extinta na vossa capital a grande praga da traça, ficando tudo aliviado do peso das lãs, e remediada a sórdida indigência? Não é nas suas mãos que se viu reunido como num só ponto todo o vosso comércio; as artes num vigor tão prodigioso, que não fatigavam já os membros dos operários; as ciências em tanto gás que brevemente vos dariam um novo Camões; a Religião tão despida das superstições que a desonram, que sem demora seria o vosso catecismo o Filósofo militar, o Emílio, e outros iluminados Apóstolos que não teve a Igreja nos seus fundamentos; e em conclusão, uma polícia também ordenada, que tudo era uma limpeza decidida e elevada ao seu cume. E é contra um político desta ordem que vos tomais às armas? Assim insultais o Omnipotente que o enviou a proteger-vos, e que decidiu a vossa sorte dum modo tão glorioso e honrado? Assim se recompensam as acções grandes que ele obrou entre vós, e aquela piedosa protecção que enviou aos cidadãos das Caldas, pelo ministério dum General tão grande na virtude como mesquinho nos membros?
Amigo Junot, assim falaria eu por vós, porém a Natureza [...] não me fez gigante [como] Golias, nem me deu a lira de Orfeu. Eu ouço já o estrondo das armas portuguesas que marcham em vosso alcance, e se o vento vos deixa ainda articular alguns sons, pedi a Vossa Amante ou que tome as armas da sua casa para vingar como Heroína o insulto que se dirige à Vossa Pessoa, ou que diga um eterno adeus aos arbustos do Ramalhão, com que coroaste os seus mimosos sorrisos.
Vale
[Fonte: Arquivo Histórico Militar (cota: AHM/DIV/1/14/006/32, fls. 1-3)].
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Nota:
Devemos o conhecimento deste documento, disponível fisicamente no Arquivo Histórico Militar, ao historiador Rui Manuel C. Prudêncio, que o disponibilizou integralmente no seu Blogue de História e Estórias, respeitando a ortografia original. Como referiu então Rui Prudêncio, ainda que o documento não se encontre datado, percebe-se pelo seu conteúdo que “é provável que date do período dos levantamentos populares organizados pelas sucessivas juntas formadas ao longo do país a partir de Junho de 1808 e antes do fim do governo de Junot com a Convenção de Sintra em Agosto do mesmo ano”. Resta-nos somente acrescentar que o seu tom de (aparente) incredulidade e de (falsa) ingenuidade parece ter sido inspirado por textos como a proclamação que Junot fez aos portugueses na data de 26 de Junho de 1808, precisamente a primeira onde o General francês se manifestou contra as incipientes revoltas que tinham então começado a surgir em vários pontos do país.
Em relação à autoria deste documento anónimo, não devemos confundir a última palavra do texto (Valle, no português antigo do manuscrito original) com o nome do autor. De facto, trata-se duma palavra latina que significa "adeus", e que era antigamente usada ao jeito de despedida, aparecendo precisamente com esse sentido no final de prefácios de outras obras portuguesas da época, e sendo exactamente assim definida no Diccionario da Lingua Portugueza de Rafael Bluteau de 1799).
Escrita por um suposto amigo e apologista de Junot, esta "carta" é na verdade um documento bastante sarcástico que satiriza subtilmente o papel de Junot em Portugal através duma aparente crítica directa (embora nitidamente irónica) à ingratidão dos portugueses para com os seus protectores. Para além de várias referências irónicas às inúmeras promessas presentes nas proclamações de Junot (particularmente a de 1 de Fevereiro de 1808), este texto anónimo também alude ao suposto affaire que as más línguas da época diziam existir entre Junot e a Condessa de Ega (contando supostamente com o consentimento do próprio Conde da Ega), havendo inclusive rumores que o General francês a instruía na arte equestre em sítios como a quinta do Ramalhão. Raul Brandão, na sua obra El-Rei Junot, recolheu algumas poesias coetâneas que abordam este caso: "[...] O Ega a mulher / Ao Junot foi entregar. // É onde pode chegar / O génio de ser cabrão. / Enfim, já chamam à Ega / Princesa do Ramalhão"; "O tal amigo Jinó [= Junot] / Sem ser do seu mandado / Fez o Ega coronel / Deixando-o mui bem armado"; "Dizem que se transformaram / O conde da Ega e a mulher, / Ele em burro paneleiro, / Ela em besta de aluguer"; "P. - Trus, trus. R. - Quem é? / P. - Aqui é que mora o almocreve / que aluga a égua e anda a pé?" [Fonte: Raul Brandão, El-Rei Junot, Porto, Renascença Portuguesa, 1919 (2.ª ed.), p. 276, p. 449 e p. 454]. Por curiosidade, e independentemente da veracidade de tais boatos, a convivência harmónica entre os Condes da Ega e Junot viria a motivar a fuga do casal para a França após a chamada Convenção de Sintra, acabando mesmo o Conde da Ega por ser condenado à morte em 1811, pena esta que foi finalmente anulada em 1823.
Escrita por um suposto amigo e apologista de Junot, esta "carta" é na verdade um documento bastante sarcástico que satiriza subtilmente o papel de Junot em Portugal através duma aparente crítica directa (embora nitidamente irónica) à ingratidão dos portugueses para com os seus protectores. Para além de várias referências irónicas às inúmeras promessas presentes nas proclamações de Junot (particularmente a de 1 de Fevereiro de 1808), este texto anónimo também alude ao suposto affaire que as más línguas da época diziam existir entre Junot e a Condessa de Ega (contando supostamente com o consentimento do próprio Conde da Ega), havendo inclusive rumores que o General francês a instruía na arte equestre em sítios como a quinta do Ramalhão. Raul Brandão, na sua obra El-Rei Junot, recolheu algumas poesias coetâneas que abordam este caso: "[...] O Ega a mulher / Ao Junot foi entregar. // É onde pode chegar / O génio de ser cabrão. / Enfim, já chamam à Ega / Princesa do Ramalhão"; "O tal amigo Jinó [= Junot] / Sem ser do seu mandado / Fez o Ega coronel / Deixando-o mui bem armado"; "Dizem que se transformaram / O conde da Ega e a mulher, / Ele em burro paneleiro, / Ela em besta de aluguer"; "P. - Trus, trus. R. - Quem é? / P. - Aqui é que mora o almocreve / que aluga a égua e anda a pé?" [Fonte: Raul Brandão, El-Rei Junot, Porto, Renascença Portuguesa, 1919 (2.ª ed.), p. 276, p. 449 e p. 454]. Por curiosidade, e independentemente da veracidade de tais boatos, a convivência harmónica entre os Condes da Ega e Junot viria a motivar a fuga do casal para a França após a chamada Convenção de Sintra, acabando mesmo o Conde da Ega por ser condenado à morte em 1811, pena esta que foi finalmente anulada em 1823.