quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Continuação da chegada das tropas francesas a Lisboa

Enquanto a 1.ª Divisão do Corpo de Observação da Gironda ia ocupando os fortes e castelos da zona de Lisboa, no dia 4 de Dezembro, chegava a Lisboa a 2.ª Divisão, comandada pelo General Loison (o Maneta). Junot ordenou que um Batalhão desta Divisão fosse ocupar Mafra, um Regimento fosse enviado para Peniche, enquanto o resto ficaria reunido em Torres Vedras
No dia 5 começaram a chegar as forças da 3.ª Divisão, embora bastante desfalcadas: dos 12.600 homens com que esta se compunha, apenas tinham chegado cerca de 3.500, que por esse motivo foram aboletados perto de Lisboa...  É certo que, como o próprio Junot assumia então, em carta a Napoleão, "as outras Divisões estão consideravelmente debilitadas; quando a Cavalaria chegar, o meu Exército não terá mais de 15.000 homens, e será preciso muito tempo para lhe reunir os homens que ficaram retidos nos hospitais; dizem os médicos que, depois da marcha que fizemos, pelo menos um terço das tropas irá para os hospitais e que vamos ter muitas febres pútridas; para obviar de algum modo a esse inconveniente, vou mandar aumentar em um quarto a ração de vinho durante os dois primeiros meses. Espero salvar alguns com isso" (Junot, Diário da I Invasão Francesa, p. 111).  





Principais pontos de ocupação francesa na península de Lisboa, 
no início de Dezembro de 1808


Perante este cenário, Junot vê-se obrigado a não poder dispensar nos primeiros momentos o Exército português, que deveria constar, segundo os seus cálculos, de certa de 12.000 efectivos. Não só os franceses aparentavam vir como amigos, como Junot tinha receio de um eventual desembarque dos ingleses na costa portuguesa (logo no dia 1, quando o Exército francês dispunha de fraquíssimos recursos, chegaram aos ouvidos do dito General boatos de que tal ocorrera em Peniche), sendo por isso perfeitamente justificável que se conservassem os militares portugueses, único auxílio possível em caso de se efectuar realmente uma tentativa de invasão inglesa.
No dia 6 de Dezembro, era a vez de chegar a Cavalaria francesa, mas dos 3.000 cavalos que partiram de Bayonne não chegaram mil a Lisboa... Junot não tinha outro remédio senão ter de retirar à Cavalaria portuguesa o que faltava para completar este desfalque. 
Por outro lado, Junot voltava a expor ao Imperador francês o estado miserável em que estas tropas iam chegando: "O vestuário que em Bayonne era muito bonito está em Lisboa completamente inutilizado. [...] A artilharia merece elogios particulares pela maneira como se comportou no caminho e pelas dificuldades que teve para conduzir as suas peças nos horríveis caminhos que nós percorremos. Todo o seu fardamento está em farrapos" (id., pp. 114-115).
Não era por acaso que Junot propunha a Napoleão um novo trajecto da França para Portugal ("aquele [caminho] por onde nós viemos é muito mais longo e apresenta infinitamente mais dificuldades, não digo hoje, porque está impraticável, mas para o tornar praticável depois" [id., p. 113]): em vez das tropas francesas entrarem pela Beira Baixa, como até aí tinham feito, deveriam começar a passar a fronteira junto a Almeida, em direcção a Viseu e Coimbra: 

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Primeiras medidas do General Junot e a preciosa ajuda da Regência



Na manhã do dia 1 de Dezembro (ironicamente, o 167.º aniversário da restauração da independência), uma comitiva composta pelos membros da Regência, pelo Senado da Câmara de Lisboa, por vários nobres, magistrados e eclesiásticos dirigiu-se a saudar o General em Chefe Junot, que os cumprimentou de pé e à entrada da casa do Barão de Quintela... 
Nesse dia e seguintes continuaram a chegar mais tropas francesas a Lisboa, sendo logo um batalhão expedido para a fortaleza de Cascais e outras tropas para o porto de Lisboa, e também os arsenais de guerra e os estaleiros navais da capital e arredores foram sendo ocupados pelos franceses. Vê-se claramente que Junot temia um eventual ataque da esquadra britânica ancorada na foz do Tejo. Também foram impedidos de saírem para fora da barra os navios que se achavam no dito porto.  
Porém, a mais importante medida tomada neste dia foi a introdução de François-Antoine Hermann (enquanto comissário do governo francês) nas reuniões da Regência instituída por D. João, o que serviu para facilitar sobremaneira as operações de Junot. 
A 3 de Dezembro, através dum decreto de Junot, o mesmo Hermann (na gravura à direita) era nomeado administrador geral das finanças, passando então a ter o controle do Real Erário (que no entanto o príncipe regente se apressara em esvaziar, antes de partir para o Brasil). Não tardou muito para que os bens da família real e da corte que a acompanhara começassem a ser inventariados e apreendidos.

No mesmo dia 3 de Dezembro, Junot decreta a imposição de uma contribuição extraordinária de dois milhões de cruzados (quantia equivalente a cerca de oitocentos mil réis), a ser paga pelos negociantes e banqueiros portugueses até ao dia 24 de Dezembro. Os membros da Regência, logo no dia 4, mandando executar o dito decreto, nomearam uma Junta de Negociantes presidida pelo barão de Quintela, a fim de se deliberar, para cada indivíduo em particular, a respectiva quantia a ser paga, conforme e de acordo com as posses e rendimentos (conhecidos ou presumidos) de cada um. (A lista de todos estes indivíduos e a sua quota-parte  para este assim chamado "empréstimo forçado" consta na obra manuscrita de Domingos Alves Branco Muniz Barreto, Memoria dos Successos acontecidos na cidade de Lisboa, fls. 10-13]). 


No dia 4 de Dezembro (4 dias depois de se encontrar em Lisboa!), Junot decreta finalmente que se apreendessem as propriedades e manufacturas inglesas:




O Governo da Regência, por sua vez, através da Câmara de Lisboa, proclamava um edital proibindo o aumento dos preços que, dadas as circunstâncias, tinham repentinamente subido:




 Ainda no mesmo dia 4, Junot ordenou também as primeiras medidas que visavam desarmar o país, através da proibição da caça e do uso de armas sem licença:




 No dia 5, era a vez da Regência publicar a seguinte portaria, prevendo pôr fim a alguns desacatos que tinham ocorrido entre soldados franceses e portugueses embriagados nas tabernas de Lisboa:






No dia 17 de Dezembro, a Regência expedia ainda o seguinte aviso relativo a providências de mantimentos:

Os Governadores deste Reino determinam que a Real Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação deste Reino convoque os comerciantes e especuladores que costumam e podem fornecer de mantimentos esta capital e mais portos do Reino, para que efectivamente os mandem vir sem perda de tempo, debaixo da certeza que terão pronta venda, sem embaraço algum, e que serão eficazmente protegidos pelo Governo com os meios que forem necessários para o transporte. Outrossim ordenam que a Real Junta persuada os administradores das fábricas a que dirijam os seus trabalhos quanto lhe for possível para os objectos necessários ao consumo do Reino, em lugar dos que se importavam dos países estrangeiros; e ultimamente lhe declaram que estas providências são insinuadas pela benevolência e desejo que tem o General em Chefe de Sua Majestade Imperial e Real de felicitar todo este Reino, com toda a sua autoridade e sábias providências. O que V.ª S.ª fará presente na mesma Real Junta para sua inteligência e execução.
Deus Guarde a V.ª S.ª
Secretaria de Estado dos Negócios do Reino, em 17 de Dezembro de 1807.
João António Salter de Mendonça.
[Fonte: Discursos do Imortal Guilherme Pitt..., p. 423 e ss. (compilação de vários textos impressos e manuscritos desta época)].


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Fonte dos documentos aqui inseridos, à exepção do indicado: Joaquim José Pereira de FREITAS, Biblioteca Histórica, Política e Diplomática da Nação Portuguesa – Tomo I, Londres, Casa de Sustenance e Strecht, 1830.

Ordem do dia do General Solano

As tropas espanholas estacionadas em Badajoz e em Vigo não entraram em Portugal ao mesmo tempo que Junot, aparentemente porque ainda não estavam suficientemente preparadas. 
A seguinte Ordem do dia foi emitida pelo General Solano, Marquês del Socorro, na qualidade de Comandante das tropas espanholas destinadas a entrar no Alentejo, um dia antes de invadirem Portugal.  


A ferocidade nunca foi valor; é sempre uma prova de barbaridade, e as mais das vezes de cobardia. A maior confiança, a maior honra que El-Rei pode fazer a um vassalo é entregar-lhe as suas armas, consagradas sempre à conservação da monarquia, ao amparo da religião e das leis, à defesa dos seus vassalos e à protecção dos seus amigos. Quando o governo português nos dá provas da sua amizade, recebendo-nos no seu território, seria corresponder-lhe de um modo indigno do carácter espanhol, seria falar a todas as leis o converter em inimigas estas mesmas armas protectoras. A guerra tem os seus direitos e as suas leis, e só pode ter lugar entre os chefes dos governos: nós os governados não estamos autorizados a fazê-la senão à voz dos chefes; tudo o mais é assassínio, e à justiça universal pertence o castigo deste cobarde delito, odioso à humanidade inteira.
Encarregados de uma importante expedição, vamos desempenhar as esperanças do nosso soberano; orgulhosos desta confiança honrosa para nós, não nos mostraremos indignos dela; não podemos consentir que permaneça connosco quem nos prive desta honra e manche o nome de todos, confundido a opinião geral do exército. Eu não sofrerei tal; toda a injúria de facto, de palavras e apodos, e ainda também por gestos de desprezo, insulto ou provocação a renovar rixas bárbaras e preocupações populares, será irremissível e severissimamente castigada por mim, não só com as penas positivas e legais em que possam incorrer, mas ainda com as arbitrarias ditadas pela importância extraordinária das circunstâncias, pela sua consequência, pela baixeza do proceder, pela desobediência a El-Rei, pelo comprometimento das suas reais intenções e pelo desdouro do nome espanhol.
O soldado receberá todos os socorros; havendo carestia saberemos embora suportar privações momentâneas a troco do bom nome e da honra de desempenhar um grande objecto. Os chefes dos corpos de meu mando me são conhecidos, os soldados sabem que eu os conheço pessoalmente; não se envilecerão; eles não vieram da Andaluzia comigo para desobedecer a El-Rei, nem para desonrar a nação. 
Quartel General de Badajoz, 30 de Novembro de 1807
Marquês del Socorro








In Simão José da Luz SORIANO, História da Guerra Civil e do Estabelecimento do Governo Parlamentar em Portugal. Compreendendo a História Diplomática, Militar e Política deste Reino, desde 1777 até 1834 – Segunda Época - Tomo V – Parte I, Lisboa, Imprensa Nacional, 1893, pp. 4-5.

O primeiro dia em Lisboa

Apesar de chegar a Lisboa sob uma chuva copiosa e um vento rijo, Junot não perde tempo na cidade, indo logo à bateria do Bom Sucesso, ao lado da Torre de Belém, "desenganar-se com os seus próprios olhos de que a esquadra portuguesa tinha saído e a inglesa não entrara, limitando-se somente ao bloqueio do porto". Em seguida expediu parte do Regimento n.º 70 para o forte de S. Julião, regressando a Lisboa. Foi então "aquartelar-se em casa do Barão de Quintela, uma das mais ricas e opulentas da capital. Não entrarei, como outros fizeram, na indagação dos motivos que o decidiram nesta escolha, objecto de que nenhum interesse resultaria à posterioridade; direi somente que Junot melhorou muito em hospedar-se numa casa tal, onde foi tratado e assistido esplendidamente enquanto residiu em Lisboa, não só do preciso, mas até dos objectos do seu grande luxo, sem lhe custar um real, não obstante o receber do Senado da Câmara para o seu tratamento uma contribuição mensal de doze mil cruzados" (in José Accursio das NEVESHistória Geral da Invasão dos Franceses em Portugal, e da Restauração deste Reino – Tomo I, 1809, Lisboa, pp. 215-217). 


Também não se vai aqui indagar os motivos pelos quais Junot se instalou naquela casa. Não obstante, inserem-se aqui as ordens do Marquês de Vagos a José Carcome Lobo acerca das tropas que deveriam escoltar a casa do Barão de Quintela: 

O Sr. General Marquês de Vagos ordena que V.S. se ponha à frente do Batalhão de Granadeiros e de dois Esquadrões de Cavalaria que devem marchar para o cruzeiro de Arroios para os comandar, e igualmente que mande já marchar uma guarda de Capitães, Tenentes, Alferes inferiores e 80 soldados para as casas do Barão de Quintela, aonde vai residir o General Junot.
Deus Guarde a Vossa Senhoria.
Quartel-General da Junqueira, 30 de Novembro de 1807.

Fonte: Arquivo Histórico Militar (cota: AHM/DIV/1/14/002/15)


Nesse mesmo dia expediram-se outras ordens relativas à evacuação de tropas portuguesas dos seus quartéis para darem lugar às tropas francesas, que deviam ser acolhidas com tranquilidade e harmonia (cf. AHM/DIV/1/14/002/15).



Fonte: BND

Barra de Lisboa, onde se assinalaram o forte ou torre de S. Julião da Barra, a bateria de Belém (ou forte do Bom Sucesso) e a Junqueira




Finalmente, segundo Domingos Alves Branco Muniz [sic] Barreto, na sua  Memoria dos Successos acontecidos na Cidade de Lisboa, desde vinte e nove de Novembro de mil oito centos e sete athe trez de Fevereiro de mil oito centos e oito [sic], (fl. 6), "nesse mesmo dia apareceu afixado nas esquinas e lugares públicos de Lisboa o Edital seguinte, promulgado pelo Intendente Geral da Polícia, para que nas compras não se recusassem a moeda francesa e espanhola":


 Edital


Faço saber a todos os moradores desta capital e seu termo, que ninguém deve recusar a moeda francesa e espanhola com que as tropas de Sua Majestade o Imperador e Rei se oferecem a comprar os géneros de que precisam: quem assim o não praticar será punido com graves penas a arbítrio da polícia. E para que assim indefectivelmente se observe, enquanto o Governo não dá mais circunstanciadas providências, mandei lavrar e afixar o presente Edital.
Lisboa, 30 de Novembro de 1807


Lucas de Seabra da Silva




[nota: segundo o mesmo Muniz Barreto, "para evitar todas as dúvidas se mandou estampar todas as moedas francesas e espanholas"]

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Caricatura sobre a entrada das tropas invasoras em Lisboa




Bonaparte louco de raiva ou mais navios, colónias e comércio.
Caricatura de Isaac Cruikshank, publicada a 1 de Janeiro de 1808.


Apesar de se referir à chegada das tropas invasoras a Lisboa, o autor desta caricatura não desenhou o General Junot, mas sim o ex-ministro dos negócios estrangeiros de Napoleão, Talleyrand, que tinha sido demitido desse cargo (precisamente por se opor às políticas expansionistas de Napoleão, nomeadamente no que respeita à Península Ibérica) a 9 de Agosto de 1807. Porquê então a sua aparição aqui? Segundo Philippe Maillard (membro da associação Les Amis de Talleyrand e especialista em iconografia relativa este personagem), a quem fizemos esta pergunta, a presença desta figura deve-se mais à sua celebridade do que propriamente à sua participação na invasão aludida no desenho. De facto, nesta data, Talleyrand já tinha sido representado em cerca de trinta caricaturas inglesas (ver o título de algumas abaixo), enquanto que a primeira aparição de Junot numa caricatura seria em Setembro de 1808. 
Não deixa, no entanto, de ser irónica e até injusta esta representação, ainda mais que, segundo as próprias palavras de Talleyrand, o início da guerra peninsular foi le commencement de la fin [do Império francês, entenda-se]...

No lado direito da gravura, as esquadras portuguesa e inglesa abandonam Lisboa rumo ao Brasil, levando a bordo a família real portuguesa e uma corte de milhares de pessoas. De pé, Sir Sidney Smith, embaixador inglês responsável pela decisão de se mudar a corte para o Rio de Janeiro, fala através de uma trompeta, dirigindo-se a Napoleão: "Bon jour Monsieur, se quiser viajar para o Brasil eu terei o prazer de o conduzir, talvez queira provar um vinho da Madeira pelo caminho". Os marinheiros que conduzem a embarcação de Sir Smith também enviam outros galhardetes a Napoleão. No centro aparece Napoleão (Boney, diminutivo de Bonaparte e sinónimo de ossudo, alcunha inglesa para o imperador), bastante enfurecido por esta partida, agarrando Talleyrand pela peruca e dando-lhe um pontapé nas traseiras. Grita-lhe: "Pára-os, pára-os, assassino, porque é que não andaste mais depressa, seu preguiçoso cheio de esperanças!!! Agora os meus desejos estão desfeitos, a minha vingança desapontada, e estou farto de ti, monstro, vagabundo, vilão!!!". Desalinhado e tresloucado, Napoleão deixa cair o chapéu. Impulsionado pelo pontapé de Napoleão, Talleyrand está à beira de cair para o Tejo. No lado direito, ao longe, soldados franceses marcham para entrar dentro das muralhas de Lisboa, que estão com a porta elevadiça baixada. Do baluarte da muralha, um francês, bastante desapontado, exclama que os portugueses destruíram todas as armas. A cavalaria, por sua vez, corre a galope como que para tentar impedir que as embarcações partam, mas com a pressa que vai parece que acabará por não travar a tempo, afundando-se na água do Tejo...


Algumas caricaturas em que Talleyrand aparecia representado antes desta:




A verdadeira entrada dos protectores em Lisboa

Fonte: Gabinete de Estudos Olisiponenses
Gravura da época, atribuída a Luís António Xavier, 
com a legenda La veritable entrée des proteteurs en Lisbonne le 30 de Novembre de 1807.

Perante uma concentração de populares de guarda-chuva na mão e alguns militares (reconhecíveis pelo chapéu), vão entrando os franceses em Lisboa, de modo desordenado, em grupo dispersos e com as armas aos ombros. Vê-se uma mulher carregando uma espingarda, à frente dum soldado com muletas, enquanto outros soldados, mais atrás, vão-se sentando pelo chão...




Acúrsio das Neves descreve assim "a quantidade, a qualidade e o estado das tropas com que Junot entrou em Lisboa": "Consistiam em um Regimento de granadeiros, e no n.º 70 de linha, sem uma peça de artilharia; algumas outras tropas o seguiam de perto, mas em pequeno número, porque a rapidez das marchas e o mau tempo fazia com que as demais ficassem muito atrasadas. [...] Uma grande parte dos soldados eram imberbes, e tendo-se ajuntado uma diarreia a todas as incomodidades das marchas do tempo, do mau trato e dos caminhos, vinham todos, incluso os Generais, tão fatigados, rotos e desfigurados que mais excitavam a piedade do que o terror dos espectadores. Não se via entrar um Regimento, um batalhão ou outro algum corpo de tropa, sem que ficassem passando por horas inteiras os estropiados que, coxeando, o seguiam de longe; muitos ficavam deitados pelas estradas ou encostados às paredes, e os habitantes dos campos, menos compassivos que os das cidades, não deixavam, quando se lhes oferecia a ocasião, de ir aliviando a estes infelizes de uma vida tão pesada"... 


in José Accursio das NEVESHistória Geral da Invasão dos Franceses em Portugal, e da Restauração deste Reino – Tomo I, 1809, Lisboa, pp. 212-214.

Entrada dos protectores em Portugal


Gravura da época, satirizando a entrada dos "protectores", vencidos e curvados de esforço. Alguns aparecem descalços,  e outro (bastante pequeno) é levado às costas por uma mulher, que também carrega a sua espingarda. A gravura é acompanhada pela seguinte quadra:

A entrada destes guerreiros
Foi com grande intrepidez;
descalços de pé e perna,
dois aqui, acolá três. 

Entrada de Junot em Lisboa

No dia 30 de Novembro, pelas 8 horas da manhã, Junot entra em Lisboa, apenas com a sua vanguarda, "constituída por um Regimento de Granadeiros e pelo 70º Regimento, e sem uma única peça de artilharia, mas era preciso salvar a cidade da desordem em que se encontrava" (JUNOT, Diário da I Invasão Francesa, p. 100).
Que confusão era esta? Segundo o General Foy, no segundo tomo da sua Histoire de la guerre de la péninsule,





A confusão, no entanto, se realmente ocorreu, dissipara-se de tal modo no dia seguinte que Junot, depois de falar nos receios de Hermann, diz que este "tinha olhado por um microscópio de aumento, [pois] nada do que ele previra aconteceu, e eu entrei na bela cidade de Lisboa hoje de manhã às 8 horas, à frente da minha vanguarda. Fui recebido com uma confiança que não esperava; todos supunham ver aquele que os salvara do destino de Copenhaga, pois era este todo o seu temor. Fui recebido por membros da Regência e fiz-me rodear de uma guarda portuguesa que tinha formado com diversos destacamentos que recolhera no caminho. Esta confiança da minha parte tinha-os deixado encantados; desloquei-me directamente ao porto; enviei para o forte de S. Julião o 2.º Batalhão do 70.º [Regimento]. O 1.º Batalhão seguirá amanhã para Cascais; são estes os dois pontos importantes do porto. Ficarei sozinho em Lisboa com o meu Regimento de Granadeiros se a primeira divisão não chegar amanhã, o que será possível por causa da horrorosa chuva que hoje tem caído.
Voltei do porto pelas ruas mais ricas; nenhuma loja fechou, e na rua dos Ourives [rua Áurea, vulgarmente chamada do Ouro] estava tudo exposto; a maneira como as minhas tropas entraram tranquilizou completamente o povo acerca do futuro" (JUNOT, Diário da I Invasão Francesa, p. 102).


Era caso para se dizer: Tudo como dantes, Quartel-General de Abrantes...

Acolhimento das tropas de Junot

Após se saber em Lisboa que Junot tinha chegado a Sacavém, o Marquês de Vagos, Comandante das armas da província da Estremadura, possivelmente avisado pela Regência, ordenava que se prestassem, na manhã de 30 de Novembro, as respectivas honras militares ao General Junot, e que alguns Regimentos portugueses cedessem as suas instalações para se aquartelarem as tropas francesas: 



O Senhor General Marquês de Vagos ordena que do 7.º Regimento de Cavalaria se achem amanhã, 30 do corrente, pelas 8 horas da manhã, 2 Esquadrões no cruzeiro de Arroios. Igualmente, um Batalhão de Granadeiros composto das 4 Companhias dos Regimentos 1.º [?], 13.º, 16.º, 19.º, às mesmas horas; estes dois corpos esperarão o Senhor Junot, Comandante em Chefe do Exército francês, e marcharão, depois de lhe ter passado e feito a devida continência na retaguarda da sua escolta. O Regimento de Infantaria n.º 16 evacuará sem perda de tempo o Quartel do Convento de S. Bento, aonde deverá aquartelar-se um Batalhão francês, e marchará a aquartelar-se no Quartel de Campo de Ourique. A Cavalaria da Polícia deverá patrulhar pelas ruas da cidade. O seu Ajudante Francisco de Melo se achará às mesmas horas no referido sítio para conduzir a Artilharia francesa pelo caminho de Benfica para a Torre de S. Julião da Barra, dizendo[?] ao General Junot, que não coube no tempo mandar ir um oficial de Artilharia por estar o Regimento em grande distância.

Deus Guarde a Vossa Senhoria.
Quartel-General da Junqueira, 29 de Novembro de 1807, pelas 11 horas da noite.


D. José Carcome Lobo [Brigadeiro Comandante da Divisao de Lisboa e Belém]


Marquês de Tancos [?]


Ajudante de ordens







Percurso de Junot em Portugal



Fonte: Google Earth


Percurso do General Junot e da vanguarda do seu Exército, acompanhado por uma Divisão espanhola comandada pelo General Carrafa, de Segura até Lisboa, onde chegam na manhã do dia 30 de Novembro. São cerca de 250 km, grande parte autênticos caminhos de cabras, que foram percorridos em 12 dias, à velocidade média de pouco mais de 20 km por dia. A maioria do exército invasor, no entanto, ficou para trás, acabando por chegar a Lisboa somente nos dias e semanas seguintes, em grupos esporádicos e relativamente pequenos.

Proclamação de Junot aos habitantes de Lisboa (29 de Novembro de 1807): o começo da protecção à francesa



O Governador de Paris, Primeiro Ajudante de Campo de Sua Majestade o Imperador e Rei, General em Chefe, Grã-Cruz da Ordem de Cristo neste Reino:

Habitantes de Lisboa:
O meu exército vai entrar na vossa cidade. Eu vinha salvar o vosso porto e o vosso Príncipe da influência maligna da Inglaterra. Mas este Príncipe, aliás respeitável pelas suas virtudes, deixou-se arrastar pelos conselheiros pérfidos de que era cercado, para ser por eles entregue aos seus inimigos; atreveram-se a assustá-lo quanto à sua segurança pessoal; os seus Vassalos não foram tidos em conta alguma, e os vossos interesses foram sacrificados à cobardia de uns poucos de cortesãos.
Moradores de Lisboa, vivei sossegados em vossas casas: não receeis coisa alguma do meu Exército, nem de mim; os nossos inimigos e os malvados somente devem temer-nos. O Grande Napoleão meu Amo envia-me para vos proteger, eu vos protegerei.




in Correio Braziliense, Junho de 1808, p. 8.

Continuação do percurso das tropas invasoras enquanto a corte partia para o Brasil

Depois de saber em Abrantes que toda a corte se preparava para partir de Lisboa, Junot ainda envia uma carta ao príncipe, esperando-o reter na medida do possível. Ao mesmo tempo, continua a avançar "a toda a velocidade", chegando a Santarém no dia 27, apesar de ter tido, segundo as suas palavras, "de marchar durante um dia inteiro dentro de água e, por vezes, até à cintura; as minhas tropas estavam estafadas; em Santarém, soube que estava tudo pronto para a partida". Já nada havia a fazer... 
Continua ele: "Encontrei então o senhor [José de Oliveira] Barreto e, embora tivesse adivinhado muito bem o objecto da sua missão, fingi acreditar nele e reenviei-o imediatamente para Lisboa, pelo Tejo, com o senhor Hermann1; era minha única intenção que se soubesse que eu estava muito perto da cidade e que isso pudesse determinar o povo a impedir a saída da esquadra. [...] O senhor Hermann não pôde ver o Príncipe nem o senhor d'Araújo; este último apenas lhe mandou dizer que estava tudo perdido; entretanto, cheguei no dia 29 às 10 horas [da noite] a Sacavém, a 2 léguas de Lisboa, e tive de dar ali repouso às minhas tropas; de resto, não queria chegar a Lisboa de noite, no meio da desordem que a minha entrada faria aumentar. [...] Eu tinha recebido durante o dia muita gente, na sua maioria franco-maçons, que muito me serviram para fazer voltar a tranquilidade ao povo. Também recebi, da parte da chamada Regência, o senhor Tenente-General D'Albuquerque; vali-me dele para mandar dar as ordens que julguei necessárias às tropas portuguesas, que foram todas utilizadas para manter a tranquilidade na cidade, pela qual as tornei responsáveis, e para remontar as peças de canhão que defendiam o porto e que tinham sido viradas e, algumas delas, encravadas.
Mandei no mesmo dia imprimir e afixar em todas as ruas de Lisboa uma proclamação que segue em anexo [...]. Os espíritos estavam muito agitados, e os habitantes receavam pilhagens; o senhor Hermann escreveu-me uma longa carta, na qual me pareceu que ele tinha recomendado a alma a Deus e me encarregava de recomendar à bondade de Vossa Majestade a mulher e os filhos" (JUNOT, Diário da I Invasão Francesa, p. 101). 

Na manhã desse mesmo dia 29 tinha havido um eclipse, segundo conta o General Foy2




Sete dias antes tinha havido ainda um pequeno tremor de terra, segundo anotou Eusébio Gomes...

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 1  Hermann, cônsul francês em Lisboa, encarregado de negócios da França em Portugal desde o abandono da embaixada por Junot, em 1805, será nomeado em Dezembro de presidente do Real Erário, com o título de administrador-geral das finanças (in arqnet).

 2 Este curioso pormenor pode ser confirmado através do site da NASA, onde se pode determinar que o eclipse teve o seu pico máximo, na zona de Lisboa, por volta das 11 horas da manhã.

Poesia popular relativa à entrada das tropas invasoras em Portugal



Quadras morais de conformidade para a presente opressão  que nos fazem os franceses e castelhanos, entrados neste Reino em 30 de Novembro de 1807, na retirada do Nosso Príncipe


É chegado, Portugal,
o tempo de padecer;
se te oprime a cruel França
verás melhor sorte a ter.


Portugal não está vencido,
foi entrada por destino.
O que será dos franceses
Está no segredo divino.


Não entraram por capricho
de quem tem maior poder.
Segredos da Providência
não se podem compreender.


Os decretos soberanos 
altamente concebidos,
faltaram ao Céu e à terra
por deixar de ser cumpridos.


Entraram sem resistência 
porque Deus lhe abriu as portas.
Portugal neste conflito
sentiu suas forças mortas.


Se Deus quis que eles entrassem,
cumprimos sua vontade,
até aquele certo dia 
de sua eterna bondade.


Com a peste, fome e guerra
Castiga Deus os pecados;
soframos pois com paciência
castigos por Deus mandados.


Aceitemos os castigos 
por virem de quem nos vêm;
porque Deus quanto ordena
se converte em nosso bem.


Respeitai povos[?] a França
que sobre vós já tem mando.
Não useis do valor vosso 
que Deus vos dirá o quando.


Cumpramos as leis de França,
carregue mais seu poder.
Com sofrimento humilde
poderemos mais vencer.


Um Reino santificado
por Cristo seu Rei eterno,
contra tal Rei nunca pode 
prevalecer o Inferno.


Conservemos sempre a fé
amando a Deus sobre tudo
e a Conceição de Maria
Venceremos todo o Mundo.


Quem for cristão verdadeiro
esteja firme na Lei
Esperando em Jesus Cristo
nosso Deus, e nosso Rei.


Não se percam os bons costumes
da Santa Igreja Romana,
adorando as naturezas 
de Cristo, divina e humana.


Portugal sempre ostentou 
a Lei de Cristo sem erro; 
por muitas vezes venceu
a pena de seu degredo.


Trémulas bandeiras ponham
nessas torres e castelos,
que a bandeira portuguesa 
terá triunfos mais belos.


Não vos importe os franceses 
nem o que podem fazer.
Ofereçamos a Deus tudo
para mais lhe merecer.


Não levantemos os olhos 
nem armas de rebeldia,
que só Deus da noite escura
faz o mais brilhante dia.


Não desmaieis portugueses,
na vossa triste aflição.
Rendei corações constritos,
sereis livres de opressão.


Para coisas de mais porte
tem Deus Portugal guardado
do seu eco e seu valor
será o Mundo espantado.


Se o nosso Príncipe deixar 
este Reino ao desamparo
nos braços de Jesus Cristo 
temos nós todo o amparo.


Assim Deus o permitiu
por Destino assinalado
o povo vai padecendo
Bragança correu seu fado.


Mostrou não querer que visse
Soberbas águias de França
e das próprias mãos tirar-lhe
Régio Ceptro de Bragança.


Fim


Temos vassalos de Cristo
desde a Batalha de Ourique.
Reino que tem um tal Rei
Nunca jamais vai a pique.




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Fonte: Arquivo Histórico Militar, 1.ª div., 14.ª sec., cx. 185, doc. 32].


Nota: Existe uma outra versão deste poema, com bastantes variantes e sob o título "As nossas afflicções" [sic], copiada dum manuscrito da época e transcrita na obra de Raul Brandão, El-Rei Junot, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, s.d., pp. 150-152.

Avisos tardios e últimas tentativas de resistência

Ao mesmo tempo que a corte se preparava para rumar para o Brasil teriam chegado a Lisboa algumas cartas dos governadores e generais das cidades por onde passavam as tropas ou aonde iam chegando as primeiras notícias da invasão. O primeiro documento que se transcreve de seguida é um ofício do General da Beira, Florêncio José Correia de Melo (futuro Governador da ilha da Madeira), avisando António de Araújo Azevedo (ministro que acabou por rumar para o Brasil) que os franceses estavam invadido o país, conforme o documento que recebera, por sua vez, de Joaquim Rebelo Trigueiros Martel, Coronel do Regimento de Milícias de Castelo Branco (abaixo também transcrito). Ambas as notícias, considerando-se que realmente chegaram a Lisboa antes do embarque da corte, vinham, no entanto, já bastante tarde... Percebe-se no entanto que tinha havido uma ordem datada de 14 de Novembro que visava alguma tentativa de resistência face à invasão. Rapidamente tudo mudaria...




No dia de hoje às três horas da tarde, tendo o desprazer de receber a notícia inclusa que me dá o Coronel do Regimento de Milícias de Castelo Branco, sem eu ter tido tempo de me prevenir a tomar as disposições necessárias para repelir a invasão dos inimigos, pois que recebendo os avisos de V.Ex.ª em 14 do corrente, e sendo necessário distribuir as ordens precisas depois, bem se conhece a impossibilidade que habia de juntar forças nos portos [=passagens] precisos para estorvar toda a agressão dos contrários; nestas circunstâncias só me resta o expediente de fazer marchar logo o Regimento de Infantaria n.º 11, que se acha neste Quartel, para ir com alguma tropa miliciana e com as ordenanças que se ponham [?] juntar a alguma posição vantajosa sobre a serra da Estrela se houver tempo para isso; quando não, irei fazer-me forte sobre a ponte do Murrela[?] indicada no referido aviso de V.Ex.ª; e ali esperarei as ordens ulteriores sobre o partido de que verei tomar.
Deus guarde a V.Ex.ª.
Viseu, 24 de Novembro de 1807


Florêncio José Correia de Melo
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Por um soldado do Regimento do meu comando recebo hoje, 19 do corrente, às quatro horas da tarde, notícia que ontem de tarde chegara uma partida de Cavalaria espanhola a Zebreira com o fim [?] de fazer quartéis para os franceses naquela vila, Rosmaninhal e Alcafozes; e como ignoro a autoridade daquela ordem e o modo com que me hei de comportar, e o número de tropa francesa que vem, rogo a V.Ex.ª me determine o que devo obrar a este respeito.

Deus guarde a V.Ex.ª
Idanha-a-Nova, 19 de Novembro de 1807.


Joaquim Rebelo Trigueiros Martel