quarta-feira, 30 de março de 2011

Sentença de morte e fuzilamento de Macário José em Setúbal (30 e 31 de Março de 1808)

1.ª página da sentença



Sentença proferida pelo Conselho de Guerra permanente, erigido em Comissão Militar momentaneamente, e para este caso, a qual contém a condenação de Macário José.

Da parte do Imperador.

Hoje, 30 de Março de 1808.



O Conselho de Guerra permanente, erigido em Comissão Militar criada em virtude da lei de 13 de Brumaire do ano 5.º [3 de Novembro de 1796], composto, conformemente a esta lei, dos senhores St. Clair, Major Comandante da praça de Setúbal; Vacca, Chefe de Batalhão do 3.º Regimento provisório; Liektucker, Capitão de Artilharia; Arlaut, Capitão do Regimento de Linha n.º 82; Jacob Echegaraya, Tenente do Regimento de Múrcia; Foulgeau, Segundo Tenente do 3.º Regimento provisório; Signa, Primeiro Sargento do 3.º Regimento provisório; Spínola, Capitão do 3.º Regimento provisório de Infantaria ligeira, que fez as funções de relator; e o senhor Detillier, que fez as de comissário do poder executivo, todos nomeados pelo senhor General Kellermann, Governador desta província e dos Algarves, assistido do senhor Riban, Primeiro Sargento do 3.º Regimento provisório, secretário nomeado pelo relator.  
Os quais, segundo os termos dos artigos 7.º e 8.º da lei, não são parentes por sangue ou afinidade, nem entre si, nem do réu, em grau proibido pela Constituição. 
O Conselho, convocado por ordem do Comandante, se ajuntou no lugar ordinário das suas sessões, em casa do senhor St. Clair, Major Comandante da praça de Setúbal, a fim de sentenciar o nomeado Macário José, trabalhador de profissão, natural de Arraiolos, de altura de cinco pés e duas polegadas, com olhos pardos escuros, o nariz afilado, boca mediana, testa ordinária, cabelos castanhos escuros, acusado de assassínio.  
Abrindo-se a sessão, o presidente fez trazer pelo secretário e pôr ante ele sobre a mesa um exemplar da lei de 3 de Brumaire do ano 5.º [24 de Outubro de 1796], e pediu depois ao relator a leitura do processo verbal de informação e de todos os documentos tanto a favor como contra o acusado, em número de seis.  
Finda esta leitura, o presidente ordenou à guarda que levasse o acusado, o qual tinha sido introduzido no Conselho livre e sem ferros, acompanhado do seu defensor oficioso.  
Interrogado sobre o seu nome, idade, profissão, lugar onde nasceu e domicílio, respondeu que se chamava Macário José, de idade de 26 anos, que era trabalhador de profissão, natural de Arraiolos, assistente em Montemor.  
Depois de se dar conhecimento ao réu dos factos que o acusavam, e depois de ser interrogado pelo órgão do presidente e apresentados os documentos de convicção; ouvido o relator no seu relatório e nas suas conclusões, e o acusado nos seus meios de defesa, tanto ele como o seu defensor, os quais declararam um e outro não terem nada que acrescentar aos seus meios de defesa, o presidente perguntou aos membros do Conselho se tinham observações a fazer; sobre a sua resposta negativa, e antes de votar, ele ordenou ao defensor e ao acusado que se retirassem; o acusado foi conduzido pela sua escolta à prisão, [enquanto que] o relator, o secretário e os assistentes no auditório se retiraram por insinuação do presidente.  
O Conselho, deliberando à porta fechada, em presença unicamente do comissário do poder executivo, o presidente expôs as questões da maneira seguinte:  
O chamado Macario José, acima nomeado, acusado do crime de assassínio, é culpado?  
Recolhidos os votos, começando pelo posto inferior, e dando o presidente o seu voto em último lugar, o Conselho de Guerra permanente declarou, por unanimidade de votos, que o nomeado Macário José era culpado, sobre o que o comissário do Governo fez a sua requisição para a aplicação da pena. Foram de novo recolhidos os votos pelo presidente na forma acima indicada.  
O Conselho de Guerra permanente, fazendo justiça à dita requisição, condenou com pena de morte ao nomeado Macário Correia por unanimidade votos.  
Conformemente ao artigo 11.º do Título IV da Sessão dos Crimes contra os particulares, do Código Penal, concebido como se segue: "O homicida convencido com premeditação será qualificado de assasino e condenado à morte".  
Ordena além disto a impressão, a publicação por editais e a distribuição da presente sentença em número de 200 exemplares traduzidos nas duas línguas francesa e portuguesa.  
Acrescenta que o Capitão relator leia consecutivamente a presente sentença ao condenado em presença da guarda posta em armas, e de fazer executar a referida sentença em todo o seu conteúdo.  
Ordena, outrossim, que seja enviada no tempo prescrito pelo artigo 29 da lei de 13 de Brumaire por diligência do presidente e do relator uma expedição, tanto ao Ministro da Guerra como ao General de Divisão.  
Feito, acabado e julgado em sessão pública em casa do senhor St. Clair, Major Comandante da praça de Setúbal, no dia, mês e ano acima indicados; e os membros do Conselho assinaram com o relator e o secretário a minuta da sentença. 
Signa, Primeiro Sargento;  
Foulgeau, Segundo Tenente;  
Jacob Echegaraya, Tenente;  
Arlaut, Capitão;  
Liektucker, Capitão;  
Vacca, Chefe de Batalhão;  
St. Clair, Major Comandante;  
Spínola, Capitão relator;  
Riban, Primeiro Sargento e secretário.  

[Fonte: Arquivo Histórico Militar, 1.ª div., 14.ª sec., cx. 182, doc. 83, fls. 12-15; Antonio Joaquim Moreira (org.), Colecção de sentenças que julgarão os réos dos crimes mais graves e attrozes commetidos em Portugal e seus dominios - Vol. 4, 1863 (páginas não numeradas)].


***


Tal como foi publicada, esta sentença apenas indicava que Macário José era culpado de assassínio, sem entrar em pormenores mais concretos sobre o que é que o réu tinha feito. Talvez tenha sido este motivo que abriu margem para surgirem várias versões sobre o que é que tinha acontecido (tal como aliás se passara depois do fuzilamento de Jacinto Correia em Mafra e de outros nove portugueses nas Caldas da Rainha). 
Sobre este caso, contudo, apenas encontrámos duas versões, a primeira das quais dum autor já aqui citado duma crónica coetânea sobre as vítimas da "justiça" francesa:


A terceira vítima imolada pelos nossos Protectores foi Macário José Valente, filho de João Martins Valente e de sua mulher Lourença de Jesus, natural da vila de Arraiolos, solteiro, e de idade de 25 anos, e de profissão operário do campo.  
Teve desavenças verbais com um dragão francês, originadas [em] parte das protervas maneiras deste, e [em] parte de algum ciúme daquele; das palavras passaram aos factos em que sucumbiu o dito dragão, ficando morto na vila de Montemor-o-Novo, onde as justiças territoriais o prenderam, donde veio remetido à vila de Setúbal, aos franceses aí estacionados, de cuja tropa a oficialidade compôs uma junta militar, que o condenou logo a ser arcabuzado como se vê da sua sentença, e nela se encontram os defeitos legais que saltam aos olhos de todos.  
Nomeou-se-lhe para seu confessor e assistente naquela execução o Reverendo Prior dos Agostinhos Calçados do Convento de Santa Maria da Graça da dita vila, em cuja praia dita da Saboaria padeceu aos 31 de Março de 1808, das duas para as três horas da tarde. Quando o conduziram ao suplício, ia muito desanimado e quase morimbundo, devido este estado não só ao aparato do acto, como ao mau tratamento por falta de alimento que davam os franceses aos portugueses detidos nos cárceres; pois muitos daqueles ou eram filhos dos algozes dos dias de proscrição da França, ou os mesmos verdugos de então que os praticavam no nosso país; e não admira que assim se portassem, verificando-se este célebre ver:  
Se é que ao justo segura a inocência.  
[Fonte: Discursos do Imortal Guilherme Pitt..., pp. 322-357 (doc. 22)]. 


A segunda versão aparece na obra Observador Portuguez, que para além de incluir uma transcrição da sentença (nas pp. 214-216), indica que "Macário José, trabalhador, [foi] arcabuzado pelo crime de haver morto três soldados franceses com o seu cajado". Foi certamente inspirado nesta versão que alguém acrescentou a seguinte nota manuscrita num exemplar da sentença que condenou Macário José:


O crime do sobredito réu foi matar só três franceses, com o que não se dava ainda por satisfeito; pois esperava continuar a caçada, com o seu famoso cajado. A sentença, apenas dada, foi logo executada. O réu morreu arcabuzado, sem mostrar mais pena senão a de serem mais os franceses que lhe caíssem nas unhas.  
Em Setúbal houve mais execuções, de que escaparam, fugindo, alguns portugueses.  
Nas Caldas também as houve, de que escapou o Cadete, a quem ficaram chamando o Cadete das Caldas (Francisco de Vasconcelos), homem terrível pelo seu valor, de que os franceses ficarão mencionando nas suas histórias.  
[Fonte: Antonio Joaquim Moreira (org.), Colecção de sentenças que julgarão os réos dos crimes mais graves e attrozes commetidos em Portugal e seus dominios - Vol. 4, 1863 (páginas não numeradas)].

terça-feira, 29 de março de 2011

Resposta de Junot a duas cartas de Napoleão (29 de Março de 1808)



Lisboa, 29 de Março de 1808

Sire,
O senhor de Bongars, oficial de ordenança de Vossa Majestade, entregou-me há pouco as duas cartas de 6 e 7 de Março que Vossa Majestade me deu a honra de escrever-me e que pensava que eu receberia a 17. Nessa data, a situação dos assuntos políticos em Espanha era absolutamente diferente da de agora, e penso que, para agir, necessito de novas instruções de Vossa Majestade. Vou ter a honra de vos dar conta das disposições que tomei para estar em condições de executar o que desejardes ordenar-me. Logo que soube da partida da Divisão Solano e Taranco, suspendi o envio das tropas portuguesas, que, embora em pequena quantidade, me poderiam servir, e tinha-lhes antecipadamente dirigido a opinião no sentido desejado por Vossa Majestade. Ao saber dos acontecimentos ocorridos em Espanha, pus essas tropas a caminho por dois itinerários de modo a poder servir-me delas quer contra a divisão da Galiza quer contra a da Extremadura, e Vossa Majestade verá pelo itinerário anexo que elas chegarão à extremidade das suas fronteiras dentro de 8 dias, isto é, a tempo de se poder dispor delas; apesar das precauções que tomamos, haverá muitos desertores, mas estas tropas estão habituadas a ficar sempre na sua região, e praticamente todos os homens são casados; é difícil fazê-los marchar; os que atravessarem a fronteira serão muito melhores para utilização em Espanha que em qualquer outro sítio; os chefes não pedem outra coisa, e estas tropas servirão bem se as misturarmos com as nossas.
Eu tinha enviado o General Kellermann a Setúbal, pensando que precisava de enviar tropas para os lados de Elvas e que ele as comandaria, pois supunha ser esse o ponto onde poderia empregar mais cavalaria.
Setúbal é um ponto importante, para impedir as frequentes comunicações do inimigo com os habitantes, e para o guardar, bem como aos fortes que defendem a margem esquerda do Tejo, tem apenas 400 homens, aos quais agreguei o Regimento espanhol de Múrcia, com cerca de 1.200 homens. Para seguir para Elvas, se Vossa Majestade ordenar, poderá levar um batalhão de 1.000 homens, e eu juntar-lhe-ei o 86.º Regimento, que tem 1.700 homens; como o 5.º Regimento de infantaria portuguesa só deve estar em Elvas a 9 de Abril, posso receber a resposta de Vossa Majestade ainda bastante a tempo de lhe impedir a partida e de juntá-lo às minhas tropas; vou ordenar a dois Regimentos de dragões, que constituem mais de metade da minha cavalaria, que sigam imediatamente, um para Évora e o outro para Elvas, onde o General Kellermann vai estar para poder vigiar as tropas espanholas da Extremadura. Vossa Majestade fala-me da artilharia ligeira; não tenho nenhuma, mas posso dar 6 ou 9 peças bem atreladas e com bons canhoeiros. Imediatamente a seguir à deslocação das tropas portuguesas, mandarei vir do Porto para o acampamento de Lisboa a infantaria espanhola da Divisão Carrafa que lá se encontra; a cavalaria e a artilharia que lá estavam já vêm a caminho deste acampamento; a impossibilidade de viver nessa estrada impede fisicamente um movimento de tropas considerável.
A quantidade de pontos que eu tenho de observar obriga-me a disseminar muito as minhas tropas. Tenho o 4.º batalhão suíço em Almeida e o 2.º batalhão suíço em Elvas, a Legião do Midi e o 26.º [Regimento] no Algarve, e isto não é bastante para guardar Setúbal, o seu forte, e os que defendem a margem esquerda do porto; há o Regimento provisório, formado com os 31.º e 32.º Regimentos, e o batalhão do 82.º.
Para guardar Cascais, o forte de S. Julião e os fortes da margem direita do Tejo até à Torre de Belém, tenho o batalhão do 47.º de linha, o batalhão do 66.º e a legião hanoveriana, que mandei render a bordo dos navios de guerra por um batalhão do 70.º de linha; formei um pequeno acampamento, composto por 1.500 homens retirados destes três corpos e que, colocados numa posição vantajosa entre S. Julião e Cascais, defenderiam bem estes dois fortes contra um eventual desembarque naquela enseada, que nos poderia inquietar se, de conluio com os habitantes, o inimigo se disseminasse na serra de Sintra; em caso de necessidade, as tropas desse acampamento podem estar facilmente nos respectivos fortes em duas horas.
Para guardar Peniche e a costa, não é de mais o Regimento provisório formado com o 32.º e o 58.º de linha; a guarnição de Lisboa, com o castelo, também não será muito considerável com o batalhão do 15.º de linha, 1 batalhão do 70.º e o batalhão dos granadeiros, um Regimento de dragões e o esquadrão dos caçadores a cavalo.



Ficarão, portanto, disponíveis apenas:

O 86.º Regimento
1.700 homens
O 1.º Regimento provisório de inf.ª ligeira
1.900 homens
O 2.º idem
2.000 homens
2 Regimentos de dragões e artilharia
   900 homens
Total
6500 homens 

Tanto para enviar ao porto como para formar um acampamento em Lisboa e seguir para Badajoz se Vossa Majestade ordenar

Pode Vossa Majestade ter a certeza de que, longe de se poder tirar um único homem dos pontos onde eles agora se encontram, quer para guardar a costa quer os fortes, seria preciso, pelo contrário, aumentá-los; os Algarves não estão bem defendidos e, se o inimigo ali entrasse por qualquer lado e instalasse um teatro de guerra como a da Calábria, teríamos grande dificuldade para lhe pôr cobro, pois não há nenhuma comunicação no interior. 

Comuniquei há dias a Sua Alteza Imperial o Grão-duque de Berg a colocação da Divisão Solano depois dos acontecimentos de Madrid, e ele escreveu-me que tinha ordem da sua corte para se concertar comigo e cumprir todos os pontos do que eu lhe ordenasse. Respondi-lhe que aguarda a esse respeito as ordens de Vossa Majestade e que teria sempre muito gosto em corresponder com ele, e pedi-lhe que me mantivesse informado dos movimentos que efectuasse.
Ordenei ao senhor Grandsaigne, Coronel meu ajudante de campo, que fosse a Burgos e se informasse no caminho sobre os locais onde agora estão as tropas espanholas da Extremadura e, tanto quanto possível, sobre o seu número; deve dar-me a saber o que apurar, e recomendei-lhe que visse tudo bem a fim de o comunicar a Vossa Majestade. Vou aguardar com impaciência as ordens de Vossa Majestade e cumpri-las-ei com o zelo e o desejo de bem fazer que Vossa Majestade me conhece no seu serviço.
Tenho a honra de enviar em anexo a Vossa Majestade um resumo da situação da marinha que responde às questões que Vossa Majestade se dignou formular na sua carta; junto também um resumo da situação do exército. [...]


______________

Fonte: Junot, Diário da I Invasão Francesa, Lisboa, Livros Horizonte, 2008, pp. 156-158 (n.º 102)-

sexta-feira, 25 de março de 2011

Decreto de Junot nomeando mr. Pepin de Bellisle de Corregedor mor da província da Estremadura (25 de Março de 1808)

Decreto de Junot nomeando mr. Lafond de Corregedor mor da província do Alentejo (25 de Março de 1808)

Decreto de Junot nomeando mr. Taboureau de Corregedor mor da província de Entre-Douro e Minho (25 de Março de 1808)

Decreto de Junot nomeando o barão de Quintela de Corregedor mor da província da Beira (25 de Março de 1808)

A deputação portuguesa enviada a Napoleão



Como atrás já inserimos uma notícia sobre a partida duma deputação portuguesa para a França, bem como uma carta do Conde da Ega a Godoy e uma outra do tesoureiro da Inquisição onde esse mesmo assunto era brevemente mencionado, julgamos oportuno aprofundar agora um pouco a origem desta deputação. 

Uma semana antes de Junot entrar em Portugal, mais precisamente a 12 de Novembro de 1807, Napoleão escreveu-lhe uma carta, onde entre outras medidas lhe ordenava que "fareis saber ao Príncipe regente que ele deve passar à França; esforçar-vos-eis que ele o consinta de bom grado. Dar-lhe-eis oficiais cuja missão aparente será escoltá-lo, mas que, na verdade, será para o guardar. [...] Fareis o mesmo a todos os que tenham direito ao trono e, sem demora e sem vexar ninguém, os fareis partir para Bayonne. [...] Convocareis os homens mais proeminentes e que vos possam inquietar, dando-lhes ordem para passarem a Paris. Todos devem esperar em Bayonne por novas ordens. [...] [Correspondance de Napoléon Ier - Tome XVI, Paris, Imprimerie Impériale, 1864, pp. 184-187 (n.º 13351)].


Já a 16 de Dezembro, duas semanas depois de ter entrado em Lisboa, Junot escrevia a Napoleão que "o que aqui chamam Conselho de Regência pediu-me autorização para enviar uma deputação a Vossa Majestade. Vou conceder-lha, e forma-la-ei com indivíduos de que desejo desfazer-me. Quando eles estiverem para partir, darei a Vossa Majestade informações a seu respeito" [Fonte: Jean-Andoche Junot, Diário da I Invasão Francesa, Lisboa, Livros Horizonte, 2008, p. 116].

Em Milão, logo após tomar conhecimento da entrada das tropas francesas em Lisboa e da fuga da família real para o Brasil, Napoleão escrevia a Junot no dia 20 de Dezembro, mandando-lhe "remover do país os príncipes da Casa [de Bragança], os generais portugueses de terra ou de mar, e os ministros ou pessoas que tenham suficiente consideração para poderem servir de pontos de coesão [contra os franceses]" [Fonte: Correspondance de Napoléon Ier – Tome XVI, Paris, Imprimerie Impériale, 1864, pp. 242 - 244 (n.º 13406)], voltando a repetir as mesmas ordens três dias depois: "que todos os príncipes, ministros e outros homens que se possam reunir [contra os franceses] sejam enviados para a França" [Fonte: Correspondance de Napoléon Ier – Tome XVI, Paris, Imprimerie Impériale, 1864, pp. 254 - 256 (n.º 13416)].

Em Lisboa, a 9 de Janeiro de 1808, ao receber estas ordens, Junot respondeu que "não estava em Lisboa nenhum Príncipe da família real além do Duque do Cadaval, que era já de outro ramo; o irmão dele, que ficou mas não goza de qualquer consideração, será apesar disso enviado para Bordéus, bem como o Marquês de Abrantes e uns cinquenta homens mais salientes das primeiras classes, conforme Vossa Majestade ordena" [Fonte: Jean-Andoche Junot, Diário da I Invasão Francesa, Lisboa, Livros Horizonte, 2008, pp. 126-128].

Entre as várias cartas que Junot teria então escrito a esses cinquenta homens mais salientes das primeiras classes, convidando-os a fazerem parte desta deputação, encontra-se a seguinte, remetida no dia 23 de Fevereiro a D. Francisco de Lemos, Bispo de Coimbra e Reitor da Universidade:


Senhor: 
A Regência mostrou-me o desejo de enviar uma Deputação a Sua Majestade o Imperador e Rei meu Amo, e esta resolução foi-me expressa por todas as classes do Reino. Sua Majestade consente e aprova a lista que lhe remeti, na qual fazeis parte. Por consequência, Senhor, procedereis bem em tomar as medidas necessárias de maneira a vos encontrardes em Baiona entre os dias um e dez de Abril próximo, sendo que nessa cidade recebereis do Ministro das Relações Exteriores as instruções que regularão a vossa marcha posterior.  
Recebei, Senhor, a segurança da minha perfeita consideração. 
Junot 
[Tradução nossa dum excerto duma Resposta que, vindo da França, fez o Bispo de Coimbra D. Francisco de Lemos a S. Alteza Real, o Príncipe Regente, Nosso Senhor, assente num caderno manuscrito e publicada parcialmente no artigo de António Manuel Hespanha, “Sob o signo de Napoleão. A Súplica constitucional de 1808”, in Almanack Braziliense, Maio de 2008, pp. 80-101, p. 81].


Finalmente, a 8 de Março, Junot informava Napoleão que "terei a honra de enviar a Vossa Majestade pelo primeiro correio a lista das pessoas mais salientes do país que enviarei à França. Partirão por estes dias, e deverão estar em Bayonne a 10 de Abril, o mais tardar. Estão prevenidos de que receberão nessa cidade novas instruções da parte do Ministro das Relações ExterioresDei ao seu envio a forma de uma deputação, sem que nenhum deles fosse de má vontade, e enviá-los à força seria, de certeza, causa de algum acontecimento que eu julguei dever evitar, pois satisfazia ao mesmo tempo as intenções de Vossa Majestade" [Fonte: Jean-Andoche Junot, Diário da I Invasão Francesa, Lisboa, Livros Horizonte, 2008, pp. 149-150].


Parece que o Bispo Inquisidor Geral do Reino foi um dos primeiros a partir para a França (tendo deixado Lisboa no dia 10 de Março), enquanto outros o seguiriam nos dias seguintes. 


Num momento mais oportuno indicaremos os resultados das suas conferências com Napoleão e seus ministros. 



Concluímos por agora com Acúrsio das Neves, que assentou que estava "premeditado ainda antes da invasão o [projecto] de tirar de Portugal todos os parentes da Casa Real e as pessoas de maior consideração, e conduzi-las ao interior da França, para ficarem servindo de reféns ao usurpador. A ideia de uma deputação, que é muito do seu gosto e andava na forja havia muitos tempos, serviu agora para facilitar a primeira remessa. 
Foram nomeados para irem cumprimentar o Imperador dos franceses da parte da nação portuguesa (e a nação não o soube senão quando os viu partir) da ordem do clero o Bispo de Coimbra, o Inquisidor Geral e o Prior-mor da Ordem de Avis; da nobreza o Marquês de Penalva, o Marquês de Marialva (este já se achava em França), o Marquês de Valença, os Marqueses de Abrantes pai e filho, D. Nuno Álvares Pereira de Mello (irmão do Duque de Cadaval ausente no Brasil), o Conde do Sabugal, o Visconde de Barbacena e D. Lourenço de Lima, o mesmo que tinha sido embaixador em França; do senado da Câmara os desembargadores Joaquim Alberto Jorge e António Tomás da Silva Leitão. O parentesco com a Casa Real foi o que sacrificou o Marquês de Valença e D. Nuno; os Marqueses de Abrantes também não podiam ficar excluídos, por terem as honras de parentes. [...]
Os predestinados foram instruídos das suas nomeações por avisos da parte de Junot, anunciando-se-lhes juntamente que deviam achar-se em Bayonne entre 5 e 10 de Abril, que era o tempo em que ali devia chegar Napoleão. Todos o cumpriram, e oxalá que o prazo fosse mais demorado, [pois] achariam já vedado o trânsito pela Espanha. Inculcavam os avisos (mais uma impostura das que são muito familiares a esta gente) que a deputação tinha sido pedida pelos próprios portugueses; mas uma deputação nacional não pode ser pedida senão pela própria nação ou por algum corpo que a represente; a nação não a pediu, porque ignorava absolutamente o facto, e o abominou quando lhe foi conhecido; corpo que a represente não o temos; e ainda que como tal se quisesse considerar o Governo legítimo, esse achava-se suprimido.
Se a deputação fosse pedida pela nação ou por alguma autoridade que se arrogasse o direito de falar em nome dela, que alarde não faria Junot deste acto de vassalagem? Que assunto para a Gazeta de Lisboa e para todos os periódicos dependentes de Napoleão? E nesse caso a nação ou a autoridade que a tivesse pedido deveria também nomear os deputados. A verdade é que a deputação foi tão pedida pelos portugueses como o tinham sido as de tantos povos que têm concorrido para arrastarem o carro ensanguentado dos triunfos de Napoleão, e como pouco tempo depois a dos 150 espanhóis que também foram convocados a Bayonne, para irem, como se pretendia, destruir as bases do antigo edifício da monarquia espanhola.
Aos 14 que se chamavam deputados, ainda se ajuntaram mais algumas pessoas de consideração, que aumentaram o número destes infelizes prisioneiros, conduzidos pelos seus interesses, bem ou mal entendidos, ou pelo delírio de quererem viajar em tempos tão críticos; mas isto era somente um ensaio: a procissão devia ir continuando, se os acontecimentos da Espanha não lhe embargassem os passos" [Fonte: Accursio das Neves, História Geral da Invasão dos Francezes em Portugal - Tomo II, Lisboa, 1810, pp. 137-141].


Notícia sobre a partida duma deputação portuguesa e sobre uma festa a bordo do navio Vasco da Gama (25 de Março de 1808)


Lisboa, 25 de Março 

Saiu desta capital uma deputação para levar aos pés de Sua Majestade o Imperador dos franceses os votos e homenagens da nação portuguesa. Todos os que a compõem são pessoas distinguidas pelo seu nascimento, mérito ou carácter, como se verá pela lista seguinte: 

O arcebispo de Lisboa, inquisidor geral do reino; o arcebispo de Coimbra; D. Nuno Álvares Pereira de Melo, irmão do duque de Cadaval, um dos primeiros magnatas do reino, e de sangue real; os marqueses de Abrantes, pai e filho; o marquês de Penalva; o marquês de Valência; o conde de Sabugal; o conde de Lima, que foi embaixador em Paris; o visconde de Barbacena; o prior da Ordem de Avis; Mr. Braamcamp, negociante; e os senadores António Tomás de Silva Leitão, e Joaquim Alberto Jorge. 

Mr. Magendie, Capitão de navio e Comandante da marinha de Sua Majestade Imperial e Real, deu ontem uma esplêndida festa ao General em Chefe Junot, a bordo do navio Vasco da Gama, de 74 canhões. Foram convidados para ela todos os chefes do Exército, como também o Almirante russo Seniavin e um grande número de oficiais da sua esquadra. 

Havia uma soberba falua destinada para conduzir o General em Chefe e outras vinte pessoas para a sua comitiva. Quando o General chegou a bordo do navio, toda a guarnição estava armada, e uma orquestra militar, situada ao pé do mastro maior, esteve tocando enquanto Sua Excelência revistou as tropas, a marinha e as baterias. Em seguida, as três corvetas Benjamim, Gaivota e Curiosa executaram várias manobras ao redor do navio. 

Tinha sido preparada uma mesa para cem pessoas na câmara, que estava decorada com magnificência e adornada com o retrato de Sua Majestade o Imperador e Rei. Servida a sobremesa, o Almirante Seniavin brindou pelo Imperador Napoleão, e o General em Chefe respondeu com outro brinde pelo Imperador Alexandre. Estes dois brindes excitaram o mais vivo entusiasmo, e dispararam-se 21 tiros de canhão como salvas por um e pelo outro. 

Concluída a festa, em que os oficiais das duas nações deram as maiores mostras de afecto recíproco, e em que reinou uma alegria viva e franca, as corvetas voltaram ao seu porto de Belém. 



Decreto promovendo Lagarde a Intendente Geral da Polícia (25 de Março de 1808)





Em nome de Sua Majestade o Imperador dos franceses, Rei de Itália, Protector da Confederação do Reno, o General em Chefe do Exército de Portugal decreta: 

O Senhor de Lagarde é nomeado Intendente Geral da Polícia do Reino de Portugal. 

Suas funções são independentes das diferentes Secretarias de Estado; e ele trabalhará directamente com o General em Chefe. 

O Secretário de Estado dos Negócios do Interior e das Finanças [Hermann] está encarregado da execução do presente decreto, pelo que respeita às autoridades portuguesas, para fazer reconhecer o senhor de Lagarde em sua qualidade de Intendente Geral. 

Dado no Palácio do Quartel-General. 

Lisboa, 25 de Março de 1808. 

Junot 


[Fonte: Gazeta de Lisboa, n.º 14, 5 de Abril de 1808].


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Nota: Sobre Lagarde ver o que aqui já ficou referido.

Considerações militares sobre as fronteiras de terra e de mar de Portugal, pelo Coronel de Engenharia Vincent (25 de Março de 1808)


O Coronel Charles-Humbert-Marie Vincent entrou em Portugal no final de 1807, como chefe do corpo de engenheiros do Corpo de Observação da Gironda (que depois tomou o nome de Armée de Portugal). Recordemos que mal chegou a Lisboa, Junot teve uma natural preocupação em ocupar as fortificações principais de defesa do Tejo, dado o receio dum ataque e desembarque dos ingleses, que se encontravam não muito distantes da foz do rio. Com a mesma preocupação, o referido corpo de engenheiros chefiado por Vincent começou então a orientar e a dirigir algumas obras de reparação e melhoria das fortificações costeiras, bem como ainda outras construções de baterias junto ao Tejo. 
Algum tempo depois, Vincent descobriu que um apetecível conjunto de documentação relativa à defesa do país estava na posse do Inspector Geral das Fronteiras e das costas marítimas, praças-fortes e pontos destinados à defesa do Reino. Vincent escreveu assim no dia 31 de Dezembro de 1807 requerendo toda essa documentação (que "interessava particularmente à tranquilidade e defesa do país") ao referido Inspector, o Marquês de la Rozière, emigrante francês que servia o exército português desde 1797. Doze dias depois, Vincent já tinha recebido a resposta do Inspector, que lhe enviara uma série de mais de cem mapas, plantas, memórias militares, cartas, itinerários, referentes às fronteiras costeiras e marítimas portuguesas. Depois da expulsão dos franceses em Setembro de 1808, muita desta documentação acabou por ir parar à França (servindo provavelmente para a preparação das duas seguintes invasões), onde ainda hoje se encontra. [Cf. António Pedro Vicente, "Para a História da Engenharia Francesa em Portugal - Aspectos da actuação do Coronel Vincent (1807-1808)", in O Tempo de Napoleão em Portugal - Estudos Históricos, Lisboa, Comissão Portuguesa de História Militar, 2000, pp. 237-251].

Pensamos assim que o documento de Vincent que em seguida se insere foi sobretudo fruto do estudo duma grande parte da documentação que lhe foi entregue pelo referido Marquês de la Rozière:










[Fonte: Simão José da Luz Soriano, História da Guerra Civil e do Estabelecimento do Governo Parlamentar em Portugal. 
Compreendendo a História Diplomática, Militar e Política deste Reino, desde 1777 até 1834 – Segunda Época - Tomo V – Parte II
Lisboa, Imprensa Nacional, 1893, pp. 57-63].

quinta-feira, 24 de março de 2011

Carta de Izquierdo a Godoy (24 de Março de 1808)




Atrás tínhamos indicado que depois duma rápida estadia em Aranjuez, Izquierdo regressou à França no dia 10 de Março. Já em Paris (onde teria chegado por volta do dia 20 do mesmo mês), depois das suas conversações com Talleyrand e Duroc, Izquierdo enviou a seguinte carta a Godoy, que contudo já não chegaria a recebê-la, dado que tinha sido preso cinco dias antes (informação que então ainda não tinha chegado a Paris). 
Esta carta (tal como provavelmente a carta do Conde da Ega atrás publicada) será recebida por Pedro Cevallos, Primeiro-Ministro e Secretário de Estado de Fernando VII (depois de tê-lo sido de Carlos IV).



A situação das coisas não permite referir com individualidade as conversações que desde o meu regresso de Madrid tive, por disposição do Imperador, tanto com o Grão-Marechal do Palácio Imperial, o General Duroc, como com o Vice-Grão Eleitor do Império, o Príncipe de Bénévent. Assim, limitar-me-ei a explicar os meios que me foram comunicados nestes colóquios para acordar e até para terminar amigavelmente os assuntos que existem hoje entre Espanha e França, meios esses que me foram transmitidos com o fim de que o meu Governo tome a mais pronta resolução acerca deles.  

Que existem actualmente vários corpos de tropas francesas na Espanha, é um facto constante. As consequências estão no futuro. Um acordo feito entre o Governo francês e o espanhol, com recíproca satisfação, pode deter os eventos, e elevar-se a um solene e definitivo tratado sobre as bases seguintes:  

Primeira base: Nas colónias espanholas e francesas comerciarão livremente o francês nas espanholas como se fosse espanhol, e reciprocamente o espanhol como se fosse francês nas francesas, pagando uns e outros os direitos que se paguem nos respectivos países pelos naturais. Esta prerrogativa será exclusiva, e nenhuma potência senão a francesa poderá obtê-la na Espanha, como na França nenhuma potência senão a espanhola.  

Segunda base: Portugal está hoje possuído pela França. A comunicação de França com Portugal exige uma rota militar, e também uma passagem contínua por Espanha para guarnecer aquele país e defendê-lo contra a Inglaterra. Há de causar muitos gastos e obstáculos, e talvez produzir frequentes motivos de desavenças. Poderia amigavelmente combinar-se este objecto, ficando todo o Portugal para a Espanha, e recebendo um equivalente a França nas províncias de Espanha contíguas a este Império.  

Terceira base: Acordar de uma vez a sucessão ao trono da Espanha.  

Quarta base: Fazer um tratado ofensivo e defensivo de aliança, estipulando o número de forças com que ambas as potências se hão de ajudar reciprocamente.  
Tais são as bases […] com que deve cimentar-se e elevar-se a tratado o acordo, como se indica, capaz de terminar felizmente a actual crise política em que se encontram a Espanha e a França. Em tão altas matérias eu devo limitar-me a executar fielmente o que me for dito. Quando se trata da existência do Estado, da sua honra e decoro, e do [decoro] do seu Governo, as decisões devem brotar unicamente do Soberano e do seu Conselho. Sem embargo, o meu ardente amor à pátria coloca-me na obrigação de dizer que nas minhas conversações fiz presente ao Príncipe de Bénévent o que segue:  
1.º Que abrir as nossas Américas ao comércio francês, é reparti-las entre a Espanha e o Império francês; que abri-las unicamente para os franceses, é (dado que não fique de uma vez destruída a arrogância inglesa) afastar cada dia mais a paz, e perder, até que se firme [o aludido tratado], as nossas comunicações e as dos franceses com aquelas regiões. Disse que ainda que se admita o comércio francês, não deve permitir-se que se avizinhem vassalos da França nas nossas colónias com desprezo das nossas leis fundamentais.  
2.º Em relação a Portugal, fiz menção às nossas estipulações de 27 de Outubro último; fiz ver o sacrifício do Rei de Etrúria, o pouco que vale Portugal separado das suas colónias, a sua nula utilidade para a Espanha, e fiz uma fiel pintura do horror que causaria aos povos próximos dos Pirenéus a perda das suas leis, liberdades, forais e língua, e sobretudo o passar a domínio estrangeiro. Acrescentei que não poderei eu firmar a entrega de Navarra, para não ser o objecto de execração dos meus compatriotas, como o seria se constasse que um navarro tinha firmado o tratado em que a entrega de Navarra à França estava estipulada. Finalmente, insinuei que se não houvesse outro remédio, poderia erigir-se um novo Reino ou Vice-Reino da Ibéria, estipulando que este Reino ou Vice-Reino não recebesse outras leis nem outras regras de administração que as actuais, e que os seus naturais conservassem os seus actuais forais e isenções. Este Reino ou Vice-Reino poderia dar-se ao Rei de Etrúria ou a outro Infante de Castela.  
3.º Tratando-se de fixar a sucessão de Espanha, manifestei o que o Rei nosso senhor me mandou que dissesse da sua parte, fazendo-o de modo que creio que ficam desvanecidas quaisquer calúnias inventadas pelos malévolos nesse país, e que chegaram a contaminar a opinião pública neste.  
4.º No que diz respeito à aliança ofensiva e defensiva, o meu zelo patriótico levou-me a perguntar ao Príncipe de Bénévent se se pensava em fazer da Espanha um equivalente à Confederação do Reno, e em obrigá-la a dar um contingente de tropas, cobrindo este tributo com o decoroso nome de tratado ofensivo e defensivo. Manifestei que nós, estando já em paz com o Império francês, não necessitamos de socorros da França para defender os nossos lares; que Canárias, Ferrol e Buenos Aires o testemunham; que África é nula, etc.  
Nas nossas conversações ficou já como negócio assente o do casamento. Terá efeito, mas será um acordo particular, do qual não se tratará no acordo sobre o qual se enviam as bases.  
Enquanto ao título de Imperador, que o Rei nosso senhor deve tomar, não há nem haverá dificuldade alguma. [O Príncipe de Bénévent] encarregou-me que não se deveria perder um momento em responder, a fim de precaver as fatais consequências a que pode dar origem a demora de um dia para pôr-se de acordo. 
Disse-me que se deve evitar todo o acto hostil e todas as movimentações que pudessem afastar o saudável acordo que ainda se pode fazer.  
Ao ser questionado se o Rei nosso senhor partiria para a Andaluzia, respondi a verdade: que nada sabia. Ao ser também questionado se eu julgava que ele partiria, respondi que não, dada a segurança em que se achavam (concernentes ao bom proceder do Imperador) tanto os Reis como Vossa Alteza.  
Pedi (uma vez que se medita um tratado), que enquanto se espera a resposta, se suspendesse a marcha dos exércitos franceses em direcção ao interior da Espanha. Pedi também que as tropas saiam de Castela. Nada consegui; mas presumo que se as bases vierem aprovadas, poderão as tropas francesas receber ordens para se afastarem da residência de Suas Majestades.  
Daí se escreveu que se aproximam tropas por Talavera para Madrid, e que Vossa Alteza me enviou um correio extraordinário. A tudo satisfiz, expondo com verdade o que me constava.  
Segundo se presume aqui, Vossa Alteza tinha saído de Madrid acompanhado os Reis até Sevilha; eu nada sei; e assim disse ao correio que vá até onde Vossa Alteza estiver. 
As tropas francesas deixarão passar o correio, segundo me assegurou o Grão-Marechal do Palácio Imperial.  
Paris, 24 de Março de 1808.  

Sereníssimo Senhor, de Vossa Alteza,  

Eugenio Izquierdo 




[Fonte: Cuenta dada de su vida política por Don Manuel Godoy, Príncipe de la Paz - Tomo V, Madrid, Imprenta de I. Sancha, 1838, pp. 492-504].


Novo edital da Real Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação referente ao pagamento do decreto de 1 de Fevereiro (24 de Março de 1808)


A Real Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação destes Reinos e seus domínios, não tendo recebido resultado algum das ordens precisas que passou aos corregedores de todas as comarcas do reino a respeito da contribuição extraordinária de guerra, havendo só alguns deles que fizeram perguntas, a que se lhes não pôde responder, sobre a inteligência das mesmas ordens, que foram concebidas com toda a clareza que permitiam as circunstâncias e a natureza do negócio; manda declarar que, cingindo-se todos ao teor da circular, guiados pelo artigo 1.º do decreto imperial e real, que a cada um deles foi remetido, procedam à derrama na forma prescrita no mesmo artigo, o qual a caracteriza: resgate de todas as propriedades, debaixo de quaisquer denominações que tenham. A taxa de todas as rendas, públicas ou particulares, deve ser 5 por cento no preço de um ano. Os prazos dos pagamentos estão assinalados no subsequente decreto do General em Chefe do exército francês em Portugal. É, portanto, desnecessário persuadir a actividade que exige a conclusão desta diligência, que já se mostra retardada. 
Para constar a todos, e se verificar a sua execução, se mandaram expedir os presentes editais. 
Lisboa, 24 de Março de 1808. 

Francisco Soares de Araújo e Silva 

[Fonte: Simão José da Luz Soriano, História da Guerra Civil e do Estabelecimento do Governo Parlamentar em Portugal. Compreendendo a História Diplomática, Militar e Política deste Reino, desde 1777 até 1834 – Segunda Época - Tomo V – Parte I, Lisboa, Imprensa Nacional, 1893, pp. 37-38].

terça-feira, 22 de março de 2011

Carta do Conde da Ega a Godoy (22 de Março de 1808)



Sereníssimo Senhor: 

Mui Señor meu e estimadíssimo amigo; esta qualidade deve conservar e aumentar a nossa confiança e jamais afrouxar em pessoas que, como nós, sabem ser constantes quaisquer que sejam as circunstâncias que ocorram. Nesta certeza estava eu, mas faltava-me contestação a uma carta que te escrevi pouco depois da retirada da família real desta capital; mas agora sei que fora desencaminhada e que não chegara à tua mão, e por isso continuo sem sossego a buscar-te por este meio, para assegurar-te a minha verdadeira amizade. 
Uma deputação composta das primeiras pessoas da nobreza portuguesa vai apresentar-se a Sua Majestade o Imperador dos franceses; o não ser designado membro dela me privou da grande satisfação que teria de ver-te nessa Corte; mas havendo nela ocupado «só» o emprego que exercitei junto de Sua Majestade Católica*, não me era próprio a concorrência de muitos, e esta, estou seguro, será a tua opinião. 
Aqui estou e aqui conservo a memória das distintas honras que Suas Majestades Católicas me favoreceram, e que farão o meu eterno reconhecimento; rogo-te** pois que a seus augustos pés ofereças os meus respeitos e os mais sinceros votos pela sua existência, paz e felicidades. A Condessa te pede juntamente [para que] queiras ter a bondade de dizer da sua parte a Sua Majestade a Rainha que ela tem presente na sua imaginação e impresso no seu coração todos os favores e distinções que sempre devera a Sua Majestade e muito mais às expressões lisonjeiras com que a honrou quando se separou ultimamente da Sua Augusta Presença, e que espera igualmente que Sua Majestade conserva aquela benevolência que a Condessa procurou constantemente merecer-lhe, e que toma a liberdade de assegurar a seus Reais pés que tem o maior pesar de que as circunstâncias políticas a fizessem separar dessa Corte, que considera como uma nova pátria. Estes são, meu amigo, os puros sentimentos de toda esta família. 
Um amigo grato, um coração sincero e uma amizade sem interrupção me fazem apreciar sempre o tempo que tive a satisfação de achar-me mais perto de ti; de quem protesto [=declaro] ser fiel e verdadeiro amigo e respeitoso q. t. m. b. 



[Fonte: Raul Brandão, El-Rei Junot, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, s.d. p. 155-156].


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Notas:

Previamente, o Conde da Ega tinha sido embaixador de Portugal junto da Corte espanhola. 

*É óbvio que esta carta foi escrita antes que o Conde da Ega tivesse tomado conhecimento da prisão de Godoy (ocorrida apenas 3 dias antes).