quarta-feira, 30 de março de 2011

Sentença de morte e fuzilamento de Macário José em Setúbal (30 e 31 de Março de 1808)

1.ª página da sentença



Sentença proferida pelo Conselho de Guerra permanente, erigido em Comissão Militar momentaneamente, e para este caso, a qual contém a condenação de Macário José.

Da parte do Imperador.

Hoje, 30 de Março de 1808.



O Conselho de Guerra permanente, erigido em Comissão Militar criada em virtude da lei de 13 de Brumaire do ano 5.º [3 de Novembro de 1796], composto, conformemente a esta lei, dos senhores St. Clair, Major Comandante da praça de Setúbal; Vacca, Chefe de Batalhão do 3.º Regimento provisório; Liektucker, Capitão de Artilharia; Arlaut, Capitão do Regimento de Linha n.º 82; Jacob Echegaraya, Tenente do Regimento de Múrcia; Foulgeau, Segundo Tenente do 3.º Regimento provisório; Signa, Primeiro Sargento do 3.º Regimento provisório; Spínola, Capitão do 3.º Regimento provisório de Infantaria ligeira, que fez as funções de relator; e o senhor Detillier, que fez as de comissário do poder executivo, todos nomeados pelo senhor General Kellermann, Governador desta província e dos Algarves, assistido do senhor Riban, Primeiro Sargento do 3.º Regimento provisório, secretário nomeado pelo relator.  
Os quais, segundo os termos dos artigos 7.º e 8.º da lei, não são parentes por sangue ou afinidade, nem entre si, nem do réu, em grau proibido pela Constituição. 
O Conselho, convocado por ordem do Comandante, se ajuntou no lugar ordinário das suas sessões, em casa do senhor St. Clair, Major Comandante da praça de Setúbal, a fim de sentenciar o nomeado Macário José, trabalhador de profissão, natural de Arraiolos, de altura de cinco pés e duas polegadas, com olhos pardos escuros, o nariz afilado, boca mediana, testa ordinária, cabelos castanhos escuros, acusado de assassínio.  
Abrindo-se a sessão, o presidente fez trazer pelo secretário e pôr ante ele sobre a mesa um exemplar da lei de 3 de Brumaire do ano 5.º [24 de Outubro de 1796], e pediu depois ao relator a leitura do processo verbal de informação e de todos os documentos tanto a favor como contra o acusado, em número de seis.  
Finda esta leitura, o presidente ordenou à guarda que levasse o acusado, o qual tinha sido introduzido no Conselho livre e sem ferros, acompanhado do seu defensor oficioso.  
Interrogado sobre o seu nome, idade, profissão, lugar onde nasceu e domicílio, respondeu que se chamava Macário José, de idade de 26 anos, que era trabalhador de profissão, natural de Arraiolos, assistente em Montemor.  
Depois de se dar conhecimento ao réu dos factos que o acusavam, e depois de ser interrogado pelo órgão do presidente e apresentados os documentos de convicção; ouvido o relator no seu relatório e nas suas conclusões, e o acusado nos seus meios de defesa, tanto ele como o seu defensor, os quais declararam um e outro não terem nada que acrescentar aos seus meios de defesa, o presidente perguntou aos membros do Conselho se tinham observações a fazer; sobre a sua resposta negativa, e antes de votar, ele ordenou ao defensor e ao acusado que se retirassem; o acusado foi conduzido pela sua escolta à prisão, [enquanto que] o relator, o secretário e os assistentes no auditório se retiraram por insinuação do presidente.  
O Conselho, deliberando à porta fechada, em presença unicamente do comissário do poder executivo, o presidente expôs as questões da maneira seguinte:  
O chamado Macario José, acima nomeado, acusado do crime de assassínio, é culpado?  
Recolhidos os votos, começando pelo posto inferior, e dando o presidente o seu voto em último lugar, o Conselho de Guerra permanente declarou, por unanimidade de votos, que o nomeado Macário José era culpado, sobre o que o comissário do Governo fez a sua requisição para a aplicação da pena. Foram de novo recolhidos os votos pelo presidente na forma acima indicada.  
O Conselho de Guerra permanente, fazendo justiça à dita requisição, condenou com pena de morte ao nomeado Macário Correia por unanimidade votos.  
Conformemente ao artigo 11.º do Título IV da Sessão dos Crimes contra os particulares, do Código Penal, concebido como se segue: "O homicida convencido com premeditação será qualificado de assasino e condenado à morte".  
Ordena além disto a impressão, a publicação por editais e a distribuição da presente sentença em número de 200 exemplares traduzidos nas duas línguas francesa e portuguesa.  
Acrescenta que o Capitão relator leia consecutivamente a presente sentença ao condenado em presença da guarda posta em armas, e de fazer executar a referida sentença em todo o seu conteúdo.  
Ordena, outrossim, que seja enviada no tempo prescrito pelo artigo 29 da lei de 13 de Brumaire por diligência do presidente e do relator uma expedição, tanto ao Ministro da Guerra como ao General de Divisão.  
Feito, acabado e julgado em sessão pública em casa do senhor St. Clair, Major Comandante da praça de Setúbal, no dia, mês e ano acima indicados; e os membros do Conselho assinaram com o relator e o secretário a minuta da sentença. 
Signa, Primeiro Sargento;  
Foulgeau, Segundo Tenente;  
Jacob Echegaraya, Tenente;  
Arlaut, Capitão;  
Liektucker, Capitão;  
Vacca, Chefe de Batalhão;  
St. Clair, Major Comandante;  
Spínola, Capitão relator;  
Riban, Primeiro Sargento e secretário.  

[Fonte: Arquivo Histórico Militar, 1.ª div., 14.ª sec., cx. 182, doc. 83, fls. 12-15; Antonio Joaquim Moreira (org.), Colecção de sentenças que julgarão os réos dos crimes mais graves e attrozes commetidos em Portugal e seus dominios - Vol. 4, 1863 (páginas não numeradas)].


***


Tal como foi publicada, esta sentença apenas indicava que Macário José era culpado de assassínio, sem entrar em pormenores mais concretos sobre o que é que o réu tinha feito. Talvez tenha sido este motivo que abriu margem para surgirem várias versões sobre o que é que tinha acontecido (tal como aliás se passara depois do fuzilamento de Jacinto Correia em Mafra e de outros nove portugueses nas Caldas da Rainha). 
Sobre este caso, contudo, apenas encontrámos duas versões, a primeira das quais dum autor já aqui citado duma crónica coetânea sobre as vítimas da "justiça" francesa:


A terceira vítima imolada pelos nossos Protectores foi Macário José Valente, filho de João Martins Valente e de sua mulher Lourença de Jesus, natural da vila de Arraiolos, solteiro, e de idade de 25 anos, e de profissão operário do campo.  
Teve desavenças verbais com um dragão francês, originadas [em] parte das protervas maneiras deste, e [em] parte de algum ciúme daquele; das palavras passaram aos factos em que sucumbiu o dito dragão, ficando morto na vila de Montemor-o-Novo, onde as justiças territoriais o prenderam, donde veio remetido à vila de Setúbal, aos franceses aí estacionados, de cuja tropa a oficialidade compôs uma junta militar, que o condenou logo a ser arcabuzado como se vê da sua sentença, e nela se encontram os defeitos legais que saltam aos olhos de todos.  
Nomeou-se-lhe para seu confessor e assistente naquela execução o Reverendo Prior dos Agostinhos Calçados do Convento de Santa Maria da Graça da dita vila, em cuja praia dita da Saboaria padeceu aos 31 de Março de 1808, das duas para as três horas da tarde. Quando o conduziram ao suplício, ia muito desanimado e quase morimbundo, devido este estado não só ao aparato do acto, como ao mau tratamento por falta de alimento que davam os franceses aos portugueses detidos nos cárceres; pois muitos daqueles ou eram filhos dos algozes dos dias de proscrição da França, ou os mesmos verdugos de então que os praticavam no nosso país; e não admira que assim se portassem, verificando-se este célebre ver:  
Se é que ao justo segura a inocência.  
[Fonte: Discursos do Imortal Guilherme Pitt..., pp. 322-357 (doc. 22)]. 


A segunda versão aparece na obra Observador Portuguez, que para além de incluir uma transcrição da sentença (nas pp. 214-216), indica que "Macário José, trabalhador, [foi] arcabuzado pelo crime de haver morto três soldados franceses com o seu cajado". Foi certamente inspirado nesta versão que alguém acrescentou a seguinte nota manuscrita num exemplar da sentença que condenou Macário José:


O crime do sobredito réu foi matar só três franceses, com o que não se dava ainda por satisfeito; pois esperava continuar a caçada, com o seu famoso cajado. A sentença, apenas dada, foi logo executada. O réu morreu arcabuzado, sem mostrar mais pena senão a de serem mais os franceses que lhe caíssem nas unhas.  
Em Setúbal houve mais execuções, de que escaparam, fugindo, alguns portugueses.  
Nas Caldas também as houve, de que escapou o Cadete, a quem ficaram chamando o Cadete das Caldas (Francisco de Vasconcelos), homem terrível pelo seu valor, de que os franceses ficarão mencionando nas suas histórias.  
[Fonte: Antonio Joaquim Moreira (org.), Colecção de sentenças que julgarão os réos dos crimes mais graves e attrozes commetidos em Portugal e seus dominios - Vol. 4, 1863 (páginas não numeradas)].