Fonte: Biblioteca Digital Hispánica
E não há remédio
Gravura que faz parte da série Desastres de la Guerra de Goya
(executada entre 1810-1815)
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Em finais de Janeiro de 1808 (ou inícios de Fevereiro, conforme as versões), alguns soldados franceses que se achavam na então vila das Caldas da Rainha foram insultados e feridos pelos populares. Nestes desacatos participaram ainda alguns soldados portugueses do 2.º Regimento do Porto, que também se encontravam nas Caldas. Recordemos que Junot, antes de entrar em Portugal, proclamara que puniria qualquer violência praticada sobre os franceses, repetindo-o depois de uma pequena revolta ocorrida a 13 de Dezembro do ano anterior, em Lisboa. De facto, assim se mandou executar, e de uma maneira bastante ostensiva: talvez para mostrar de forma exemplar o que se faria a quem não se submetesse ao recém instaurado Governo francês, no dia 5 de Fevereiro apareceram nas Caldas os General de Divisão Loison e o General de Brigada Thomières, secundados por mais de 4 mil soldados, que se espalharam pelas ruas, assestando peças de canhão, e dispondo a vila num autêntico estado de sítio.
Já antes disto o Juiz de Fora da vila tinha ordenado um inquérito para se averiguarem os culpados dos desacatos (que pareciam ser os próprios franceses). Porém, Thomières ordenava agora uma segunda devassa, que se caracterizou pela arbitrariedade dos procedimentos e pela sua rápida conclusão, pois logo no dia 8 de Fevereiro foram sentenciados quinze homens à pena de morte, embora só se tenham conseguido prender dez, uma vez que os outros tinham conseguido fugir. No dia seguinte, este dez homens foram conduzidos a um campo perto da vila a fim de serem fuzilados, sendo forçados a assistirem ao acto os camaristas e cerca de uma dezena de pessoas "de distinção", entre os quais se encontrava, também obrigado, o tio duma das vítimas. Um dos dez presos, cirurgião do referido Regimento do Porto, teve a sorte de conseguir escapar à morte por ter uma perna fracturada. Ao ver o estado em que se encontrava este réu, um oficial do exército francês, o Príncipe de Salm-Kirburg1, condescendeu-se e alargou a execução da pena até que este se recuperasse (vindo posteriormente a conseguir fugir).
Foram assim nove as vítimas que perderam a vida às mãos dos franceses (três civis e seis militares): Pedro José Pedrosa, escrivão da Câmara das Caldas da Rainha, e João de Proença, filho do Correio Mór (ambos jovens de vinte anos); Casimiro José Henriques, padeiro da vila; Manuel Joaquim, Tenente do 2.º Regimento do Porto; e um Cadete, três Soldados e um Tambor, todos do mesmo Regimento.
Finalmente, para não haver dúvidas da exemplaridade que se queria deixar patente, no dia seguinte (10 de Fevereiro) os franceses licenciaram o referido Regimento do Porto, retirando às suas tropas as suas fardas e armas.
Como atrás se procedeu em relação à morte de Jacinto Correia, indicam-se em seguida vários relatos coetâneos sobre estes acontecimentos, tendo-se em conta que todos as versões divergem em alguns pormenores. Note-se que corrigimos os nomes dos Generais Thomières (que ora aparece Thomiers, ora Taunier) e Loison (que numa das versões aparece como Loioson).
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A primeira versão que transcrevemos sobre este acontecimento é do incontornável Acúrsio das Neves:
Fonte: Cavacos das Caldas |
"Grassava entre os soldados franceses uma sarna impertinente, doença muito frequente nos exércitos, e muito mais num exército tão atenuado de fadigas e misérias como se achava o francês, quando entrou em Portugal. Para se curarem dela os doentes da guarnição de Peniche e demais destacamentos daqueles sítios, estabeleceu-se um hospital na vila das Caldas; e foi em 28 do mesmo Dezembro [de 1807] que nele entraram os primeiros. Ainda eles não se achavam restabelecidos das fomes, frios e demais calamidades e privações que haviam sofrido na sua penosa marcha, o que, tudo junto, os desfigurava de tal modo que excitavam nuns a piedade, e noutros o escárnio e o desprezo; sendo estes últimos sentimentos os mais gerais, por serem os que a natureza inspira aos oprimidos, quando são espectadores da fraqueza e do abatimento dos seus opressores. Queixaram-se ao General Thomières, comandante daquela brigada, de que os paisanos daqueles contornos os desprezavam e insultavam, o que ofendia altamente o seu natural orgulho; e Thomières, para os despicar e proteger, mandou 7 resolutos granadeiros do Regimento n.º 58, que a 26 de Janeiro foram dormir às Caldas.
No dia seguinte, passearam pela vila, ora juntos, ora separados, entraram nos cafés, beberam e continuaram a sua ronda com aquela altivez que lhes inspirava o presumido título de conquistadores. Um paisano, que também tinha bebido bastante, vendo passar 3 ou 4 daqueles campeões, diz para outro paisano que ali se achava: daqueles matava eu 7. Um dos franceses, que entendeu a expressão, tira a espada da bainha e investe no paisano, o qual, posto que casado e morador em diferente rua, se achava junto à casa de sua mãe, e foge para esta, gritando para uma irmã que estava na porta: acode-me Francisca. Francisca deixa-o entrar, e fechando por fora a porta, oculta a chave debaixo da saia que tinha vestida. Mas a decência não lhe vale; os franceses atiram-se a ela e, lançando-a sobre um monte de esterco, forcejam por lhe tirar a chave. Os gritos de Francisca são ouvidos num bilhar vizinho, e o animoso cadete Vasconcelos, do 2.º Regimento do Porto, que nele se achava com outras mais pessoas, salta por uma janela, e lançando mão ao primeiro pau que encontra, investe com ele aos franceses. O cirurgião e outros militares do mesmo Regimento, então aquartelado naquela vila, seguem-o; mas o cadete não precisa de ajuda para desembaraçar a mulher dentre os agressores, resultando ficarem levemente feridos dois ou três dos mesmos, e Francisca com os peitos todos negros e contusos de pancadas que um deles lhe tinha dado com o punho da espada.
Achava-se à porta do hospital o capitão francês de caçadores Favet, com 100 soldados que chegavam para se curarem da sarna, e corre ao tumulto; mas tendo-se já a este tempo ajuntado muito povo, como era natural, uma pedra que saiu do monte dá no braço do capitão e lhe faz cair a espada, que depois se achou retorcida; e correria risco a sua vida, se um sargento português não gritasse [para] que o deixassem, que era um oficial francês. Neste momento, os cem franceses põem-se em armas, e um oficial do Regimento do Porto faz também tocar a rebate e formar o Regimento, o que deu motivo a se lhe incorporarem os soldados dispersos que iam correndo para o motim, e serenar este, sem mais desordens.
De tudo foi logo informado Thomières, e o primeiro passo que deu foi mandar ir à sua presença o Comandante e quatro oficiais do Regimento do Porto. Foram, e aí encontraram o Juiz de Fora das vilas das Caldas e Óbidos, António Amado da Cunha Vasconcelos, com os seus juízes da vintena, os quais tinham recebido uma ordem semelhante para darem conta do acontecimento de um soldado espanhol que poucos dias antes aparecera ferido, queixando-se de que o tinham atacado, para ocultar a sua fraqueza, como depois se verificou; porque, embriagando-se e precipitando-se, tinha sido o próprio e único agressor de si mesmo.
Pareceu que Thomières se interessava em salvar o Regimento do Porto e o povo das Caldas, ordenando ao Juiz de Fora que lhe remetesse imediatamente presos quatro homens maus da vila, para conservar os demais. Os que tinham concorrido ao tumulto puseram-se em pronta fugida; e foi portanto necessário ao Juiz de Fora escolher quatro homens dos mais mal conceituados na terra, e contra os quais tinham tido queixas de suas próprias mulheres, mas absolutamente inocentes nos factos de que era questão. Foram com efeito os presos que ao depois se soltaram; mas tudo inutilmente, porque fossem quaisquer as primeiras ideias de Thomières, a atroz política francesa pedia sangue e com abundância.
Fonte: allworldwars.com Granadeiro da Guarda Imperial, segundo Hippolyte Bellangé (ilustração originalmente publicada na Histoire de Napoléon de Laurent de l'Ardèche, de 1843) |
O Juiz de Fora procedeu a uma devassa [=inquérito], na qual aparecia como culpado e principal motor da desordem o granadeiro francês que tinha corrido sobre o paisano e se havia lançado com os companheiros sobre Francisca; dentre os paisanos não se mostrou culpa, senão contra o cirurgião do Regimento do Porto, se era culpa acudir a um motim para arrancar uma vítima inocente das mãos de algozes que a estavam imolando. A vítima também aparecia com as contusões e nódoas nos peitos que deixo notadas, e [que] se verificaram na mesma devassa, por inspecção ocular.
A 5 de Fevereiro, apareceram nas Caldas Thomières e Loison com a sua Divisão. Thomières era o executor; Loison, o mesmo que poucos dias antes fizera assassinar com solenidade um português em Mafra [Jacinto Correia], por um indiscreto desafogo de palavras proferidas contra os franceses diante duma autoridade portuguesa que não praticou a virtude de ocultá-las, ia autorizar o juízo com a força armada. Tinham-se pedido rações para 10.000 infantes e 2.000 de cavalo, mas somente se apresentaram 4 a 5 mil homens de ambas as armas; número muito mais que bastante para espalhar o terror por aqueles contornos e dar a conhecer a horrorosa cena que se preparava. A vila foi posta em rigoroso sítio, embocaram-se peças [de artilharia] pelas ruas, tudo foi ocupado de tropa armada, e tudo tremeu de susto.
Avocada por Thomières a devassa do Juiz de Fora, principiou aquele General uma outra à sua feição, a qual consistia em apontamentos que ia fazendo em bocadinhos de papel avulsos do que lhe diziam ou [do que] fazia dizer às testemunhas. Também fez vir à sua presença a pobre Francisca e os 7 granadeiros franceses, para que ela dissesse qual era o que a tinha maltratado; ela o apontou, mas não se viu que daí resultasse coisa alguma contra ele. Os oficiais do Regimento do Porto, aterrados com ameaças de serem quintados[=castigados], foram as testemunhas e ao mesmo tempo os executores que iam prendendo todos aqueles contra quem depunham.
Apenas concluída esta devassa, convocou Thomières um Conselho Militar, composto de 6 vogais e um presidente, para sentenciarem os culpados. É digna de saber-se a formalidade deste processo:
O presidente e vogais, assentados à roda de uma mesa, interrogavam os réus, e depois procediam a votos; entretanto, Thomières entrava e saía para dirigir as operações do Conselho. O Juiz de Fora e o escrivão da sua devassa, gelados de medo, assistiam até certo ponto em banco separado, longe da mesa. Entrava um réu, e presentes também as testemunhas, perguntava-se-lhes se tinham alguma coisa contra elas; e respondendo que não, como todos responderam, replicava-se-lhe: pois são eles os que depuseram contra vós de tal e tal facto. Consequentemente, era interrogado pelos mesmos factos e escritas, bem ou mal, as suas respostas, levantava-se dentre os vogais um relator, que expondo o resultado do interrogatório, concluía que aquele réu estava incurso na pena de morte, na forma da lei de tal. Era então que saíam da sala o Juiz de Fora e o seu escrivão, o réu e as testemunhas, ficando somente o Conselho em acção de votarem.
Merece especial menção o caso de três paisanos que apareceram como réus perante aquele tribunal de sangue: Um padeiro, ouvindo tocar a rebate, pegou numa espingarda e foi até ao lugar do tumulto, mas voltou sem fazer uso dela; o escrivão da Câmara e um sujeito de distinção, por sobrenome o Proença, que estavam ambos em casa do mesmo escrivão quando ouviram aquele sinal, também foram vistos duma casa fronteira pegar cada um em sua espingarda e escorvá-las, mas não praticaram outra alguma acção, nem mesmo saíram à rua. Foram todos presos, e depois de terem confessado estes factos, o relator tirava a conclusão: que pois confessavam terem pegado em armas no dia do tumulto, era de presumir que fosse com ânimo de fazerem uso delas contra as tropas francesas, e como tais estavam incursos na pena de morte. Que terrível lógica, que bárbara jurisprudência a destes cruéis assassinos! Os três infelizes aumentaram o número dos condenados à pena última, que foram 15; destes se achavam presos 10; os outros tinham fugido.
Tanta foi a rapidez destes procedimentos, que no dia 8 estavam todos sentenciados. Nesse dia à noite um oficial francês foi à cadeia ler a sentença aos presos; mas na língua francesa, de forma que nada perceberam dela. A 9, pelas 10 horas da manhã, teve ordem o Juiz de Fora para aprontar 6 padres para irem à cadeia, 3 carros e alguns homens de enxada; então ficou removida toda a dúvida. Não apareceram senão 4 padres, os quais chegaram à cadeia depois das 11 horas, quando os presos já vinham saindo, de modo que só os puderam ir confessando pelo caminho até ao campo de burlão, próximo à vila, onde foram fuzilados estes infelizes, na presença da Divisão francesa postada em armas e do Regimento português sem elas. Os carros foram para conduzirem os cadáveres; os homens de enxada para os enterrarem.
Não se limitou a isto a barbaridade daqueles monstros. Obrigaram o Juiz de Fora, os camaristas e 9 ou 10 pessoas das principais da terra, a que fossem assistir àquele horroroso acto. Um dos camaristas era tio direito do escrivão da Câmara, e foi tal o terror ou a violência, que não pôde dispensar-se de presenciar em cerimónia o fim trágico do seu inocente e desgraçado sobrinho. [...]
Ainda que eram 10 os presos, foram somente 9 os fuzilados: um feliz acaso salvou o cirurgião do Regimento do Porto, depois de sucessos bem extraordinários. Um capitão do mesmo Regimento tinha sido encarregado de o prender, e, conduzindo-o à cadeia, o deixa numa sala, enquanto se preparava uma prisão inferior. Era quase noite e o preso, aproveitando o momento, se precipita de uma janela bastantemente elevada; com a violência da queda ele despedaça uma perna, mas assim mesmo consegue, antes de ser visto, o arrastar-se para uma casa vizinha, e dela, por um quintal, a uma cavalariça. O capitão participa a Thomières esta fugida, e recebe dele uma resposta positiva: que procure o réu e que ficará no lugar dele, se não o apresentar. Visitam-se as casas, fazem-se pesquisas as mais exactas; e contudo, o réu não aparece; mas o capitão faz a sua diligência, como quem tratava de salvar a própria vida, e consegue o saber que um outro cirurgião fora convidado para lhe ir curar a perna; este é interrogado e confessa ser verdadeiro o facto, mas que não aceitara o convite. É necessário procurar e ouvir ainda vários sujeitos, por cuja intervenção passara de boca em boca o recado; e finalmente descobre-se o triste numa manjedoura quase rasteira, onde tinha passado 24 horas, sem outro alimento que um bocado de pão que uma alma caritativa lhe tinha levado, e já meio morto, com a perna muito inchada e negra, com sinais de gangrena. Naquele mísero estado foi conduzido ao hospital, e bem guardado. Curou-se-lhe a perna; mas por muitos dias esteve sem esperanças de vida.
Assim mesmo o levaram numa paviola ao lugar do suplício, coberto com uma serapilheira; já ele ouvia os tiros disparados sobre os seus companheiros, e o coração lhe estremecia, pensado ser aquele o momento em que as balas o trespassavam, quando o Príncipe de Salm-Kirburg1 lhe trouxe o resgate. Este moço, ainda imberbe, posto que alistado ao soldo francês, não tinha ainda o espírito afeito à crueza e à maldade; viu aquele embrulho, examinou o que era, e não pôde resistir ao espectáculo que se lhe oferecia aos olhos, que não clamasse que era uma impiedade conduzirem à morte um homem em semelhante estado; que o curassem primeiro, e depois lhe fizessem o que quisessem. O cruel Thomières e o bárbaro Loison anuíram às súplicas do Príncipe. O infeliz foi reconduzido ao hospital, onde se lhe continuou o curativo, sempre debaixo de guarda; e passados dois meses, tendo-se relaxado o rigor da sua custódia, porque este sucesso foi caindo em esquecimento, teve meios de escapar; e vive hoje [1810], sem maior incómodo no corpo que o de algum defeito na perna, mas com o espírito atribulado, ressentindo-se ainda das comoções que o abalaram em tão apertados lances. [...]
Os oficiais portugueses do Regimento do Porto, de que Thomières tanto se tinha servido para esta acção, não deviam ficar sem recompensa. As tropas francesas pegaram novamente em armas no dia 10, conservando-se sempre a vila em sítio; fez-se juntar aquele Regimento no mesmo campo da carniçaria, e tendo-se-lhe feito uma ignominiosa fala, foi ignominiosamente desarmado e dissolvido, intimando-se aos oficiais e soldados um breve espaço para saírem da vila.
Dois dias se demorou ainda na mesma posição a Divisão francesa; mas chegando aos Generais a notícia de se terem os ingleses apoderado das Berlengas, pequenas ilhas, ou, para melhor me explicar, pontas de rochedos fronteiras a Peniche, onde não havia senão um pequeno destacamento de portugueses, que era fácil de prever [que] não lhes fariam resistência, deixaram somente uma companhia de guarnição nas Caldas, e tudo o mais marchou precipitadamente para guarnecer Peniche, Torres-Vedras e outros ponto que se viam ameaçados de uma invasão de ingleses, e todos tinham ficado quase sem gente [desde que os militares franceses tinham ido para as Caldas].
[Fonte: Accursio das Neves, Historia Geral da Invasão dos Francezes em Portugal - Tomo II, Lisboa, Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1810, pp. 64-79].
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O Bispo do Rio de Janeiro, como já deixámos indicado, encontrava-se em Lisboa nesta época, conseguindo fugir para o Brasil a 4 de Março de 1808. Foi precisamente nesta viagem que começou a escrever uma Memória sobre a invasão dos franceses, donde extraímos o seguinte excerto sobre os factos aqui indicados:
"Não há um facto que melhor dê a conhecer o espírito dos vândalos modernos, que se chamam nossos protectores, do que a trágica cena que aconteceu na vila das Caldas [da Rainha] nos fins de Janeiro. Parece que o céu tinha destinado aquele desditoso país para sentir os mais feros golpes da tirania e barbaridade francesa. Havia mais de um mês que no Régio Hospital daquela vila se achavam quatrocentos franceses, comendo todos os mantimentos que havia de sobressalente, e consumindo as suas rendas futuras, de maneira que por muitos anos não podem prestar o costumado socorro e curativo aos pobres; e estes hóspedes não estavam tão doentes que não tivessem cometido várias desordens e distúrbios na terra, e indisposto contra si ânimos dos moradores; até que finalmente apareceram um dia sete granadeiros moços e robustos, que se julgaram mandados de propósito da Praça de Peniche a insultar as pessoas mais pacíficas que encontravam e a desatender algumas mulheres na sua própria casa.
Numa destas casas, que fica na rua do Olival, ouviram-se altos gritos de uma mulher, que se queixava dos franceses; acudiu a vizinhança e vários cadetes e soldados do segundo Regimento do Porto, que então ali se achava aquartelado; travou-se uma rixa em que ficaram feridos alguns franceses.
Não deve dissimular-se que o povo apareceu quase todo armado no meio das ruas, porque os franceses saíram a formar-se todos em Batalhão cerrado e armas carregadas; mas é certo e verdade pura que os portugueses não deram um só tiro, nem houve uma só morte, nem mesmo ferida perigosa. Mas o Brigadeiro Thomières não satisfeito ainda com as extorsões e despotismos que já tinha praticado na terra, sequioso de dar um exemplo de sangue e de terror, pintou este caso a Junot com as mais vivas cores que lhe sugeriu a sua natural ferocidade. A consequência foi aparecer dentro de poucos dias rodeada a vila das Caldas de um pé de Exército de quase seis mil homens de Infantaria, de Cavalaria, e nove peças de Artilharia. No mesmo dia em que chegaram [5 de Fevereiro], começou uma horrorosa pilhagem nas casas e nos campos, que não cessou em todos os seis dias que ali estiveram, e a que não escapou gado, pão, vestidos, trastes, vinho, azeite, dinheiro do rico e do pobre.
No dia seguinte, que era um Sábado, prenderam-se perto de vinte pessoas, paisanos e soldados do Porto; no Domingo e na Segunda-feira se inquiriram e acariaram muitas pessoas, a que assistia o Juiz de Fora da terra, António Amado, na presença do General Loison, Chefe do Exército, e da comissão mandada por Junot; e finalmente, na Terça-feira [9 de Fevereiro] pela manhã, sem mais processo nem figura de juízo, mandaram-se sair da prisão Pedro José Pedrosa, escrivão da Câmara, João de Proença, filho do Correio Mór, ambos rapazes de vinte anos, um padeiro da vila chamado Casimiro, um Tenente do Regimento do Porto chamado Manuel Joaquim, um Cadete, três Soldados e um Tambor do mesmo Regimento. Três ou quatro clérigos acompanharam estes nove desgraçados desde a cadeia até um campo que fica nos arrebaldes da vila; e este foi todo o tempo e todo o socorro espiritual que lhes foi concedido. Foram notificadas todas as pessoas de alguma representação da vila para assistirem; e no meio do Exército e da Artilharia, que formava os três lados duma grande praça vazia, todos os nove padecentes foram arcabuzados com poucos tiros, que ainda lhes deixaram alguns momentos de vida, para lançarem pungentes gritos de agonia e horríveis gestos de morte. Em todo aquele dia um terror inexplicável se apoderou dos moradores, que se fecharam em casa. Na Quarta-feira seguinte, no mesmo sitio e no meio do mesmo bélico aparato, mandou-se formar o segundo Regimento do Porto, e com a maior infâmia, se lhe despiram as fardas, e se lhe tiraram as armas, lançando-se com desprezo as reais bandeiras sobre os tambores; e dissolvido o corpo, na mesma hora se dispersaram os soldados para fora da vila. Deste modo se vingaram de um Regimento que na Guerra do Rossilhão lhes fez sentir os golpes da sua bravura".
[Fonte: José Caetano da Silva Coutinho, Memoria Historica da Invasão dos Francezes em Portugal no anno de 1807, Rio de Janeiro, Impressão Régia, 1808, pp. 50-53].
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Uma outra versão sobre estes acontecimentos consta num documento manuscrito existente na Biblioteca Nacional, no qual se faz um historial das vítimas da "justiça" dos franceses. De autor anónimo, pelo seu contexto percebe-se que foi escrito após a primeira invasão e antes da segunda (ou seja, entre Setembro de 1808 e Março de 1809):
Uma pequena causa produz efeitos de consequências funestíssimas: ociosos e lascivos franceses ofendem com suas maneiras pouco comedidas a certas mulheres da plebe da vila das Caldas da Rainha; ainda que desta condição, todavia honestas e de bom porte, as quais estavam lavando as suas roupas; pelo acaso, ou por fatalidade imprevista, alguns naturais presenciaram as palavras dos franceses, e vão de encontro a estes atalhando outros procedimentos. Escandalizados os soberbos invasores (que já nos reputavam seus escravos e do sofrimento dos efeminados italianos) intentam repelir com força as repreensões verbais. Os nossos, que não sofrem descomedimentos, pois seus peitos conservam os espíritos de Lopo Barriga preso em Fez, com denodo brioso rebatem os fracos franceses; e a não serem alguns oficiais e soldados do Regimento português de Linha n.º 2, então estacionado naquela vila, decerto maior desordem brotaria, e só com feridos e mortes calmaria; porém, nenhum resultado de consequência houve para com os nossos invasores. Os nossos tanto têm de ardidos e castigadores de desatenções, como de generosos e obedientes às vozes de seus superiores, que, tranquilizando-os, se serenou a desordem; porém, os franceses, mortificados em seu amor próprio, desacreditados em seu valor austerlício e friedlândico, premeditaram a ruína de sem número de inocentes nacionais. Dão parte ao Quartel-general os comandantes franceses acantonados na dita vila, e pintam a rixa casual como uma batalha campal, e a moção de alguns homens como uma perfeita e completa sublevação.
Acreditam-se as notícias oficiais, o medo e susto as engrandece, julgam-se perdidos e tratam de segurar o solo que ocupavam ainda com trémulos e mal seguros passos, bem como a sua segurança pessoal, que se lhes representava em perigo iminente, o qual crescia se não se ultrajasse a sua humanidade com algumas execuções cruéis do número daquelas dos dias procelosos de Toulon e Paris.
Fonte: allworldwars.com Dragão da Guarda Imperial, segundo o referido Hippolyte Bellangé |
Expedem-se ordens aos Generais Loison e Thomières para marcharem com as suas Divisões e Artilharia sobre a vila das Caldas e, informando-se dos factos, procederem militarmente contra os culpados. Recebem-se as ordens, marcham os cruéis dragões contra a inocente e incauta vila, que não esperava semelhante procedimento; e chegam a ela, no dia 5 de Fevereiro, no número de 4.000 a 5.000, suposto que de antemão tivessem espalhado o boato de marcharem 10.000 de Infantaria e 2.000 de Cavalaria para que pediram rações, e tomam quartéis.
Cresce então o susto e pavor nos moradores, lembrando-se da proclamação de Junot e vendo 4.000 a 5.000 homens de tropa e artilharia dentro da vila. O bacharel António Amado da Cunha Vasconcelos, actual Juiz de Fora, mais apto para governar em tempos sossegados do que em crises delicadas, assustado ou iludido, começou os procedimentos inquisitórios sobre o facto e pronunciou, o que fizesse sem assaz discrição e prudência, segundo dizem, e alguns afirmavam ser ele a próxima causa daquela desgraça por adulação aos invasores, ou falta de talentos, segundo outros: os juízes são muitos e eu a nenhum me encosto; tão somente avanço que na época da invasão do inimigo poucos eram os magistrados subalternos capazes de desempenharem os seus deveres; e os que o eram, foram respeitados dos malvados.
Aquartelados Generais, oficiais e soldados, começam os procedimentos inquisitórios, pospostos do Juiz de Fora que tinham avocados; chamam-se testemunhas, conduzem-nas a uma sala cercada de tropa, interrogam-nos com reganho militar; tremendo de medo, balbuciantes, depõem; e mal entendidos se lhes escrevem seus ditos. Destes mal combinados e pior deduzidos inferem a imposição da pena de morte a quinze desgraçados, deste número só escapam seis, cinco fugindo e um pela fractura da perna e rogos do bom Príncipe de Salm-Kirburg1.
Decretada a morte, surpreendem-se as vítimas, e nesta prisão se houveram alguns nacionais com tal sofreguidade, ou por satisfazerem rancores antigos, ou por medo, ou por adulação aos franceses, que nenhum dos pronunciados que esteve ao alcance escapou. Cumpre dizer o seguinte: o Juiz de Fora tinha bastante confiança com o padeiro Casimiro, a quem encomendou umas perdizes para obsequiar Thomières; saiu o homem à caça e matou as perdizes; e no caminho, recolhendo-se a casa, soube do que se passava na vila, e foi dissuadido [para] que não voltasse a ela; assim o fez, e remeteu as perdizes ao Juiz de Fora, que, apesar da encomenda e oferta, não as aceitou desta vez, e mandou-lhe dizer que viesse debaixo de palavra de honra falar-lhe. Recebe o recado, não duvida o bom velho (tinha 50 anos) de comparecer perante o dito magistrado, que o mandou logo prender aleivosamente; e depois da morte deste, a viúva, passados 3 meses, casou-se com José António, escudeiro do referido ministro.
Este lisonjeava-se de ter ascendente com Thomières e Loison, por os ter em sua casa para obter o perdão dos capturados; porém, miseravelmente se enganou; pois que o dia 9 se destinou para o suplício dos infelizes.
Amanhece o dia infausto de 9 de Fevereiro, bate-se a caixa em toda a vila, põe-se armada a tropa francesa, acende-se o morrão, ataca-se o bronze atroador, e reúne-se a Divisão para marchar à primeira voz. A palidez apodera-se do rosto dos moradores da vila, o medo gela-lhes o sangue nas veias, e o terror, espalhando-se por toda parte, embarga as vozes para queixar, os suspiros para aliviar, lágrimas para regar dor, aflição e eterna saudade.
Movem-se as tropas, desfilando para o campo de Burlão nas vizinhanças da vila, e conduzem as vítimas pálidas e macilentas ao sacrifício; acompanhando Thomières e ordenando que a Câmara em corpo diplomático assistisse ao acto; e como faltasse o escrivão, que ia a morrer, fizeram substituir o lugar deste por um tio, que presenciou a trágica cena o sobrinho. Assistiram mais algumas pessoas das principais da vila, e dez homens por companhia, com a oficialidade respectiva do Regimento do Porto, desarmados e todos violentamente obrigados.
Notificaram ao Juiz de Fora que aprontasse seis padres para confessarem os padecentes, indo estes já de caminho; a ordem foi comunicada pelo Ajudante de Ordens do General Thomières. Dos seis pedidos só três se puderam encontrar, que foram o Reverendo Vigário da povoação, o Padre Nicolau Veloso e o Padre Manuel Francisco, que arrebatadamente os conduziram ao lado dos infelizes, a quem foram consolando, confortando e ouvindo de confissão de caminho para o cadafalso; até nisto tiveram desdita, pois dando-se aos nossos réus três dias para se prepararem a morrer helenisticamente[?], segundo as nossas leis, do benefício destas por outras do despotismo estrangeiro não gozaram.
Enfim, chegam ao lugar do suplício, postam-nos defronte de um valado com os rostos para ele e as costas viradas para a tropa, que os cerca de um e outro lado, ficando no meio a Câmara e Nobreza, e o Regimento dito; assestam a artilharia nas bocas das ruas e lugares donde se receavam [tumultos]. Às onze [horas] do dia deram uma descarga de mosquetaria os soldados destinados à execução, e caindo todos os nove no chão, depois cada cadáver levou mais um tiro para se certificarem mais os algozes de que a execução estava bem feita. Puseram-nos em carros descobertos que, atravessando a vila, conduziram os cadáveres para o cemitério público, onde uma comum sepultura os uniu a todos, onde esperam a ressureição dos mortos, para então o Ente Supremo lhes administrar melhor justiça do que lhes não fizeram os homens.
Toda a vila chorou esta desgraça, a uns como filhos dela, e a outros como portugueses; e só [a]o malfadado Casimiro José Henriques nada foi carpido por sua mulher, que nessa noite a passou, com as visitas que lhe deram os pêsames, a gabar as boas qualidades de José António, escudeiro do ministro e hoje seu marido; não sei se a morte daquele se premeditou para que se pudesse verificar o consórcio deste; Deus Grande, só tu podes penetrar o âmago destes factos!
Os franceses bons magoaram-se destas crueldades, e notaram-nas como efeito de ordens do Governo, a fim de conter pelo terrorrismo os portugueses.
Não houve saque como se esperava, nem contribuição, só sim alguns pequenos roubos nas casas situadas fora da vila; nesta se conservaram com boa ordem e tranquilidade sem opressão dos moradores dela: confissão que eles mesmos fizeram. O Juiz de Fora pediu 40 camas, não menos, para os Generais, que eram só dois, e nenhuma se entregou completa a seus donos, e os franceses não levaram o que faltou, mas sim os oficiais de justiça (dito pelos naturais) e o dito ministro nem se purificou a si nem aos seus oficiais, nem tampoco satisfez a seus donos. Destes procedimentos houveram muitos no tempo da invasão, e eu os presenciei; e hoje muitos daqueles que furtaram à sombra dos franceses são os patriotas e o que medram em despeito da virtude e dos bons cidadãos, que em segredo lamentam esta desgraça.
No dia dez desarmaram o Regimento e receberam-lhe as fardas (que foram para Peniche, onde Thomières vendeu parte, e outra se estragou nos armazéns) e o dissolveram juntamente com a sua oficialidade. A 12, sairam os franceses para Peniche mas não todos; porém, marchavam em pequenos corpos; e por último, deixaram uma guarnição que se revezava pelo seu turno, e onde existiu até à Restauração; eis aqui a história deste facto segundo o pude coligir.
Não individuei nomes, idades, naturalidade de todos os padecentes, porque não me souberam responder a estes quesitos pessoas a quem preguntei e que presenciaram a catástrofe; digo isto para que não se me impute omissão ou culposo descuido.
[Fonte: Discursos do Imortal Guilherme Pitt..., p. 322 e ss. (compilação de vários textos impressos e manuscritos desta época)].
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Finalmente, cumpre também a dar a palavra aos franceses. Logo no dia 14 de Fevereiro, Junot informou Napoleão "que, nos primeiros dias de Fevereiro, 100 soldados franceses doentes que se dirigiam ao hospital das Caldas foram insultados por alguns portugueses aos quais se juntou o Regimento de Infantaria de Linha do Porto; não houve mortos, apenas alguns feridos. Enviei imediatamente ao local o General Loison com ordens para cumprir o decreto que segue em anexo [é possível que se refira à proclamação de 14 de Dezembro ou talvez a algum decreto sobre licenciamento, como a seguir se percebe] depois de apurar com exactidão a verdade dos factos; este General comunicou-me hoje que o Regimento foi licenciado e os seus oficiais e soldados enviados para suas casas sob a vigilância das autoridades civis e militares, e que a comissão militar nomeada ad hoc condenou à morte 15 indivíduos dos quais foram executados 3, pois os outros andam fugidos.
Este terrível exemplo ensinará aos portugueses o que devem recear quando ousarem insultar os soldados franceses" [Junot, Diário da I Invasão Francesa, Lisboa, Livros Horizonte, 2008, p. 144].
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Já alguns anos mais tarde, o General Thiébault, por sua vez, afirmou na sua Relation de l'expédition du Portugal: faite en 1807 et 1808, par le 1er Corps d'observation de la Gironde, devenu Armée de Portugal [Paris, Chez Magimel, Anselin et Pochard, 1817, p. 84] que "o Regimento do Porto [...] ocupava as Caldas; uma companhia francesa passa por aí e arrisca-se a ser assassinada por esse Regimento. Este delito não fica impune: os oficiais culpados foram julgados, e o Regimento foi dizimado e licenciado".
(Deve notar-se que, para além dos habituais significados de destruir, exterminar ou diminuir, a palavra "dizimar", em sentido militar, tanto no francês décimer como em português, pode significar a punição de morte aplicada a uma por cada dez pessoas ao acaso).
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Ao contrário de Junot, que indicara a Napoleão que tinham sido três os fuzilados (embora se deva entender que apenas referia o número dos civis, e não dos militares mortos), o General Foy apresentou somente o número destes últimos, embora se tenha enganado ao dizer que eram habitantes das Caldas. Apesar desta imprecisão, este General, que como os dois anteriores, também se encontrava em Portugal quando se deram estes acontecimentos, indica talvez da forma mais ponderada que "uma rixa ocorrida na pequena cidade [sic: ville] das Caldas da Rainha, entre um destacamento do 58.º Regimento [francês] e militares do 2.º Regimento do Porto, foi apresentada ao General em Chefe, por relatórios infiéis, como uma revolta premeditada, na qual os habitantes teriam tomado parte. O Regimento do Porto foi desfeito e licenciado de uma maneira ignominiosa. Seis habitantes das Caldas foram fuzilados com um aparato calculado, que pesa mais dolorosamente no imaginário português do que se tivesse executado a matança tumultuosa de toda a população duma localidade" [Histoire de la guerre de la Péninsule sous Napoléon - Tome III, Paris, Baudouin Frères Éditeurs, 1827, p. 37].
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Por último, transcrevemos um soneto de António José Xavier Monteiro, feito "quando os franceses na vila das Caldas mandaram arcabuzar seis indivíduos do Regimento de Infantaria n.º 18, segundo do Porto":
Essa Nação, há pouco sublevada,
Que a Lusa terra pisa impaciente,
Exibindo com ânimo insolente
A substância para outros reservada.
Com indómita mão, de força armada,
Tinta a vimos no sangue do inocente,
Q'rendo roubar à volorsa gente
A glória que lhe estava destinada.
Monstro feroz, que o corpo mais luzido
Separar o fizeste em um instante,
Porque dele não fosses perseguido.
Mas ah! que um coração nobre e constante
Em Amor Patriótico incendido,
Mostrará seu valor 'inda distante.
[Fonte: Jornal de Bellas Artes ou Mnémosine Lusitana. Redacção Patriotica, n.º XIX, Lisboa, Impressão Régia, 1816, p. 315].
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Nota:
1 O Príncipe de Salm-Kirburg era Frederick IV, Ajudante de Ordens de Napoleão desde 30 de Maio de 1807. Não sabemos em que circunstâncias veio este jovem oficial (tinha apenas 18 anos) a Portugal, se acompanhando o exército de Junot ou se enviado posteriormente a mando do Imperador. Deve notar-se que o principado de Salm-Kirburg era um dos muitos territórios que faziam parte da Confederação do Reno, "protegida", como se sabe, por Napoleão.