A 4 de Fevereiro de 1808, no mesmo dia em que mandou afixar a proclamação sobre a contribuição extraordinária de 40 milhões de cruzados, Junot informou Napoleão que "Lisboa continua a gozar a maior tranquilidade. O povo está mais contente e espera ver melhor o seu destino sob o Governo todo-poderoso de Vossa Majestade Imperial e Real" [Junot, Diário da I Invasão Francesa, Lisboa, Livros Horizonte, 2008, p. 136].
Contudo, se Junot não tinha motivos aparentes para se preocupar com os portugueses, o mesmo não se passava em relação aos espanhóis. Recordemos que, segundo o que se tinha disposto no tratado de Fontainebleau, os espanhóis controlavam os territórios entre o Douro e o Minho e a sul do Tejo. Ao declarar que todo o país seria governado por si próprio em nome de Napoleão, Junot estaria inevitavelmente a violar o referido tratado. Não foi assim por acaso que o General em Chefe do exército francês em Portugal tenha decidido enviar previamente a seguinte carta aos Generais Solano e Tarranco, cerca de um mês antes de tornar públicas as intenções de Napoleão:
Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor:
Participo a Vossa Excelência que Sua Majestade o Imperador dos franceses e Rei de Itália tem decidido, de acordo com Sua Majestade Católica, que o comando general do Exército combinado em Portugal pertence ao seu General em Chefe.
Junot
Lisboa, 4 de Janeiro de 1808.
[Fonte: Domingos Alves Branco Muniz Barreto, Memoria dos Successos acontecidos na cidade Lisboa..., fls. 8v-9]
Segundo o que Junot posteriormente afirmaria a Napoleão, ambos os Generais lhe responderam "dizendo que teriam muito gosto em ficar sob as minhas ordens, mas que para isso teriam de receber ordem da sua corte, o que me pareceu muito natural" [Junot, Diário da I Invasão Francesa, Lisboa, Livros Horizonte, 2008, p. 138]. Contudo, esta ordem tardaria bastante em chegar a Portugal. De facto, como já indicámos, a corte espanhola somente foi informada no dia 22 de Janeiro, pelo embaixador François de Beauharnais, acerca das determinações do Imperador em se apossar de todo o território português, ainda que, supostamente, tal medida seria apenas provisória, até que se concluísse uma convenção sobre as fronteiras das duas partes que passariam para o rei da Etrúria e para Godoy (reino da Lusitânia Setentrional e Principado dos Algarve, respectivamente). Talvez perturbada por esta inesperada notícia, a referida corte ainda tardou até ao dia 27 de Janeiro para avisar os Generais espanhóis acantonados em Portugal.
Entretanto, Junot encontrava-se numa situação bastante delicada, pois não só não tinha sido alertado sobre este assunto pelos ministros da guerra e dos negócios estrangeiros da França, como também, por um lado, receava irritar Napoleão pelo atraso em cumprir as suas medidas, enquanto que, por outro lado, não queria impor uma resolução que poderia perturbar a boa harmonia com as forças espanholas em Portugal. E não é demais ressaltar, como o próprio Junot confidenciava ao Imperador, que "o exército espanhol que está em Portugal é mais numeroso que o meu" [Junot, Diário da I Invasão Francesa, Lisboa, Livros Horizonte, 2008, p. 138]. Se Junot não tinha motivos para se preocupar com o General Carrafa, que se encontrava sob as suas ordens e que julgava como um incapaz, o mesmo não podia dizer em relação aos Generais Solano e Tarranco. Por coincidência (?), um problema ficou logo resolvido, quando Tarranco morreu subitamente no Porto, no dia 25 de Janeiro. Enquanto não se resolvia a questão de quem comandaria definitivamente as forças do General falecido, sobrava o General Solano, bem mais perto de Lisboa (o seu Quartel-General encontrava-se em Setúbal), que, por casualidade, acabou por receber as ordens da sua corte na mesma altura em que se mandaram afixar os editais de 1 de Fevereiro*. Se estes factos devem ter permitido a Junot suspirar de alívio, por outro lado geravam um novo inconveniente: as ordens da corte espanhola apenas reconheciam a autoridade do novo Governo no que se referia a questões económicas. Obviamente, perante tal determinação, as tropas espanholas passariam a ser alimentadas e pagas às custas dos franceses. Mas como não se tocava no assunto de quem deveria comandar as tropas espanholas, ficava subentendido que, pelo menos por enquanto, tudo continuaria como estava, exceptuando-se, como se disse, o que se referia aos rendimentos das províncias ocupadas pelos espanhóis, que passariam a ser destinados aos cofres de Lisboa. Perante este novo embaraço, Junot escrevia a Napoleão no dia 4 de Fevereiro que "os Generais que o comandam [o exército espanhol em Portugal] já não recebem as receitas das províncias, pelo que serei necessariamente obrigado a alimentar-lhes e pagar-lhes as tropas. Mas, Sire, eles estão imediatamente sob as minhas ordens? Será possível haver no mesmo país dois comandantes? [...] A unidade de comando é talvez mais necessária neste país que em qualquer outro lado. Vou encontrar-me imediatamente com o General Solano e entender-me-ei com ele para tomar posse de Elvas conforme as ordens de Vossa Majestade. Sentir-me-ia muito feliz e muito mais tranquilo se Vossa Majestade achasse conveniente mandar substituir 2 divisões espanholas por uma divisão francesa. Nesse caso, preferiria o General Solano para o comando da divisão espanhola que ficasse. O General Carrafa é um homem completamente inactivo. O General Tarranco, que comandava a divisão da Galiza, morreu há pouco no Porto" [Junot, Diário da I Invasão Francesa, Lisboa, Livros Horizonte, 2008, p. 138].
De facto, apesar das suas proclamações datadas de 1 de Fevereiro, Junot não tinha uma tarefa nada fácil pela frente: para não falar nos problemas administrativos, via-se a par com uma grave crise económica e com poucas forças francesas para conseguir dominar toda a extensão do país. Até então, o grosso das suas tropas estava concentrado numa pequena faixa litoral entre Lisboa e Nazaré, com alguns destacamentos dispersos nos caminhos para a Espanha e cerca de 1.000 homens na praça-forte de Almeida. Uns poucos milhares de homens do seu corpo ainda se encontravam a recuperar em hospitais dos esforços para chegar a Portugal, e outros tantos encontravam-se retidos na Espanha, por ordem de Napoleão. Para cúmulo, Junot não detinha o comando das forças espanholas, que, repita-se, eram em número superior às do seu próprio exército. Para além de tudo isto, os espanhóis permitiam que, ao contrário das determinações francesas, aportassem à costa enviados ingleses com propostas e correspondência. Já o tinham feito no início de Janeiro** e, segundo o próprio Junot, a última vez ocorreu logo no dia 2 de Fevereiro, "às 5 da tarde, [quando] o Contra-Almirante Sidney Smith mandou a Setúbal um parlamentário para nos enviar alguns prisioneiros espanhóis e também com o pretexto de notificar-nos do bloqueio dos portos de Lisboa e Porto" [Junot, Diário da I Invasão Francesa, Lisboa, Livros Horizonte, 2008, p. 133]. É bastante provável que a esquadra inglesa que bloqueava a foz do Tejo tivesse tido conhecimento, através de pescadores, da proclamação de Junot datada de 1 de Fevereiro, e decidisse enviar a Setúbal o referido parlamentário, com alguma proposta para seduzir os espanhóis ou simplesmente para avisá-los da traição que os franceses estavam cometendo com os seus próprios aliados (adoçando-lhes com a devolução de alguns prisioneiros espanhóis).
Percebe-se assim a pressa em Junot para se livrar dos espanhóis...
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* Dever-se-á notar no entanto que, apesar de Junot realmente ter proclamado no dia 1 de Fevereiro que todo o país seria administrado e governado por si próprio, os seguintes decretos datados do mesmo dia (embora publicados nos seguintes) não introduziam qualquer alteração política explícita nas zonas de Portugal ocupadas pelos espanhóis. Talvez o mais significativo a este respeito seja o 6.º artigo do decreto sobre o novo governo, onde se indica que se destinaria um Corregedor Mor para cada província portuguesa, embora somente se mencionasse claramente a constituição de dois Corregedores, um em Lisboa e outro em Coimbra (zonas até aí pertencentes aos franceses). Pensamos que esta imprecisão (bem como o espaçamento entre a publicação dos seus editais) não se deve senão à hesitação de Junot em dar um passo que poderia pôr em causa a aliança com a Espanha.
** Segundo o bispo do Rio de Janeiro, que se encontrava em Lisboa nesta época e que conseguiu fugir em Março para o Brasil (começando nessa viagem a escrever a sua Memória, com passagens no tempo presente, como a seguinte), "ainda não se desvaneceu a antiga afeição aos ingleses e a esperança de só neles poderemos encontrar socorro nos nossos presentes desastres. Uma prova destes reais sentimentos foi a alegria e as aclamações e vivas com que nos princípios de Janeiro foi recebida em Setúbal uma fragata inglesa parlamentária, que trouxe despachos ocultos para o Governo espanhol e francês, chegando o povo daquela vila a levar quase em braços e em triunfo o oficial da fragata quando a ela se recolhia da sua comissão. E é necessário confessar que as esperanças dos portugueses não são mal fundadas, por serem as forças britânicas as únicas que podem apoiar a sua existência marítima e comerciante; os mesmos franceses em Lisboa têm experimentado a superioridade de seus rivais nesta parte, quando não puderam defender duas barcas canhoneiras que aqueles lhes vieram buscar por diversas vezes, mesmo dentro ao Tejo; nem tão pouco embaraçar-lhes as repetidas aguadas que vêm fazer nos portos da costa e os víveres e refrescos que deles levam, como de Sintra, Colares, Sesimbra, Ericeira, etc. Envergonhado talvez Junot por estas e outras sortidas, e querendo cortar toda a comunicação com os seus inimigos de fora, chegou a lembrar-se de proibir a todos e quaisquer batéis de pescaria permanecer no mar um só momento antes do sol nascer e depois de se pôr; cuja determinação foi por ele mesmo derrogada quando logo viu que, deste modo, não fazia mais do que tornar-se ridículo aos ingleses e aumentar a fome dos portugueses [José Caetano da Silva Coutinho, Memoria Historica da Invasão dos Francezes em Portugal no anno de 1807, Rio de Janeiro, Impressão Régia, 1808, pp. 43-44].