sexta-feira, 18 de março de 2011

Memória sobre a revolução de Aranjuez, segundo Théodore Chemineau


O texto seguinte é um excerto dumas Memorias históricas sobre as dissensões domésticas da família real da Espanha, sobre os acontecimentos do Escorial, em 1807, sobre a revolução de Aranjuez e sobre as cenas de Bayonne em 1808. O seu autor foi Théodore Chemineau, agente secreto francês, homem viajado e capaz de se expressar com igual facilidade em alemão, italiano e espanhol. Michel Duroc, Grão-Marechal do Palácio Imperial (recorde-se que tinha sido quem assinara, da parte da França, o tratado de Fontainebleau), encarregou Chemineau de ir para Madrid para informá-lo directamente sobre tudo o que se passava na Corte espanhola. Chemineau chegou à capital espanhola no fim de Janeiro de 1808, encontrando logo então a cidade "num estado de inquietação e até mesmo de fermentação", motivado sobretudo pelo final do processo de El Escorial (concluído no dia 25 de Janeiro), que se espalhava ter sido forjado e maquinado por Godoy, para retirar o Príncipe herdeiro do seu caminho. 
A importância deste excerto (que se situa pouco depois do seu autor referir o alarme que provocou a chegada de Izquierdo a Aranjuez,  que aparentemente teria impulsionado a decisão da fuga da família real) reside no facto do seu autor ser testemunha ocular de muitos dos acontecimentos que a partir do dia 15 de Março de 1808 começaram a exaltar os ânimos em Aranjuez e Madrid, e que levariam à demissão do favorito Godoy, à abdicação de Carlos IV e à entrega da coroa ao seu filho D. Fernando. 


[...] Estava em Madrid há um mês, sobretudo devido ao favor duma senhora ligada à marquesa de Musquiz, dama da Corte, que me dava as informações mais exactas e mais circunstanciadas sobre os passos do Príncipe da Paz, e sobre as vistas do herdeiro da coroa. Já referi os principais autores desse drama curioso [o autor refere-se aos sucessos e ao processo de El Escorial], e não tenho necessidade de repetir aqui os nomes dos conselheiros íntimos de Fernando. A desgraça e o exílio deles tinham-nos recomendado ao próprio povo; mas houve outros que se tinham subtraído ao ressentimento de Godoy; e rapidamente fui informado, de uma maneira segura, que, entre os ministros, o Príncipe [D. Fernando] tinha apoios seguros, e o favorito inimigos escondidos; que o próprio D. Pedro Cevallos, ministro dos negócios estrangeiros, e ligado até então ao Príncipe da Paz por laços de reconhecimento, tinha-se desligado dele à medida que a opinião pública manchava os seus actos e a sua pessoa; que o ministro Caballero opunha-se no conselho, por vias tortas, a todas as suas resoluções; e que o príncipe herdeiro do trono poderia contar não somente com a maior parte dos ministros, mas com a afeição das Guardas Reais e com o amor do povo. 
Mas o hábito de ver a autoridade nas mãos do Príncipe da Paz, e o longo exercício dum poder que ele tinha até então abusado sem contrariadores, não podiam admitir que pudesse ser removido de outra maneira que não fosse através de uma revolução. Tal era o espírito dos partidários do Príncipe das Astúrias. Mas nem o embaixador da França nem o Gabinete das Tulherias pressentiam a sua possibilidade, por crerem que a nação espanhola tinha perdido o vigor e estava degradada. Napoleão, contudo, gozava de um tal renome e exercia um tal ascendente de glória e de potência, que ele, os seus ministros e os seus principais favoritos se julgavam já senhores da Espanha tão somente pela presença das suas tropas e pela desorganização do Governo. Eu não partilhava esta opinião; e na minha correspondência com o Marechal do Palácio, Duroc, esforçava-me para dar a conhecer a verdade e precaver o Governo francês da disposição natural dos espanhóis contra qualquer ocupação ou invasão estrangeira.  
Assinalava muitas e repetidas vezes (contra a minha vontade, sem dúvida, mas o meu dever mo prescrevia) as condutas secretas dos principais partidários do Príncipe das Astúrias, que, aproveitando a indignação do povo contra o Generalíssimo Almirante [Godoy], procuravam uma ocasião para induzir uma revolução na Corte, cujo resultado fosse a sua ruína. Sei com todas as certezas que o Capitão das guardas de infantaria, D. Manuel Francisco Jauregui, preparava os soldados da guarda e fazia excursões combinadas com o conde de Montijo, que percorria La Mancha recrutando paisanos. Eu tinha recebido ordens para seguir os rastros de todas essas intrigas; mas logo reconheci a sua impossibilidade, dado que os espanhóis eram discretos nas suas coligações secretas. Tinha assim apenas alguns indícios ou alguns dados, que me mantinham continuamente em alerta; não podia continuar a viajar frequentemente de Madrid a Aranjuez, onde então estava a Corte; pois não queria despertar suspeitas sobre mim. Foi através do disfarce de uma espécie de revendedor de jóias e pedras preciosas que consegui introduzir-me em algumas casas, para retomar as minhas aproximações e comunicar com um número muito grande de espanhóis. Encontrava em todos eles a mesma disposição de espírito contra o Príncipe da Paz, e ainda cheios de confiança em relação aos franceses. Via somente que, nas altas classes, esta confiança começava a dar lugar à inquietação. Se esta não era partilhada pelo povo, é porque ele não tinha um igual conhecimento dos acontecimentos.  
O Príncipe da Paz, fosse porque trocava correspondência secreta com o Grão-Duque de Berg, tal como muitas pessoas o garantiam, fosse por outros motivos, persistia na opinião de que, para salvar a pessoa do Rei e a família real, não restava outro meio senão retirar-se para Sevilha. Começando finalmente a convencer essa ideia a Carlos IV, todas as tropas espanholas que se encontravam em Portugal e na Extremadura receberam ordens reiteradas para se dirigirem para as montanhas de Córdova e de Sevilha, e todas as da Casa Real para se dirigirem para Aranjuez, onde estava então a família real. 
Inicialmente, fizeram-se esforços para manter secretas essas disposições; mas o projecto acaba por passar a ser do conhecimento público. O povo de Madrid fica alarmado, julgando-se abandonado pelo seu rei, e deixado à mercê dos Generais das tropas franceses, como tinha acontecido com os habitantes de Lisboa e do resto de Portugal. 
Os ânimos públicos estavam violentamente agitados; acusa-se novamente o Príncipe da Paz de concertar com a Rainha a ruína do Príncipe das Astúrias e de estar à cabeça duma trama para destronar o Rei. Neste estado de coisas, espalhou-se o rumor, no dia 15 de Março, que Carlos IV tinha a intenção de se retirar de Aranjuez para Sevilha; que um grande conselho reunido no Palácio o tinha assim decidido, mas que os avisos se tinham espalhado; que a Rainha e o Príncipe da Paz queriam partir, mas que o Príncipe das Astúrias e o seu irmão, o infante D. Carlos, queriam ficar. A inquietação tornou-se geral quando se soube que as tropas que estavam em Madrid tinham recebido ordem de partir, que as guardas espanholas iam dirigir-se para Aranjuez, e que ficariam em Madrid apenas dois Regimentos suíços [Reding n.º 2 e Preux n.º 6], corpos que não eram muito apreciados. Perante esta notícia, a multidão correu para o caminho que conduzia a Aranjuez gritando: «Espanhóis, abandonareis o vosso país? Protegereis a fuga dum Príncipe que sacrifica os seus vassalos e que vai trazer a desordem nas nossas colónias? Também teremos pouca coragem, como os habitantes de Lisboa?». 
Instruído sobre o que passava e da violenta fermentação que reinava em Aranjuez, dirigi-me pela terceira vez àquela residência Real. Cheguei muito cedo na quarta-feira, dia 16 de Março, e encontrei tudo numa espécie de tumulto e desordem. O caminho de Madrid estava coberto de tropas, a maior parte da guarda real, o que retardou a minha chegada a Aranjuez, onde se tinha reunido um grande número de espanhóis das vizinhanças e, especialmente, de Madrid. Tive bastantes problemas para encontrar uma pousada; os arredores do Palácio estavam cheios de povo. Acabava o Rei de publicar a proclamação através da qual se esforçava para tranquilizar os espanhóis. Contudo, a aparente calma que tinha sucedido à agitação cessou de repente pela tarde, e correu de novo a notícia de que tudo estava disposto para a marcha da família real. Soube que vários dos ministros que se opunham à partida tinham enviado cartas-circulares aos lugares próximos, para advertir o povo acerca do que se passava e do perigo iminente que corria a pátria. Com efeito, já estavam estabelecidos as mudas [de cavalos ou gado para carga] no caminho de Sevilha e as bagagens da Corte estavam empacotadas em todas as divisões do palácio. Alguns homens (que eu tinha alguma razões para supor que eram emissários), tendo-se espalhado pelos grupos e pelas tabernas, asseguravam por toda a parte que era certa a evasão da Corte, e que Fernando, que se opunha a ela, tinha dito a um guarda real: «A viagem está decidida para esta noite; mas eu não partirei»; e que o guarda real tinha repetido aquelas palavras a todos aqueles que o quisessem ouvir. Este rumor difundiu-se com uma rapidez extraordinária e deu ocasião a um grande boato. Ninguém se atrevia a entregar-se ao sono. Os soldados abandonariam os seus quartéis e os burgueses começariam a patrulhar sem estarem autorizados. O Palácio do Príncipe da Paz estaria defendido pelos seus próprios guardas, que tinham uma ordem particular; a guarda do Palácio Real teria outra. Por volta da meia-noite, ouviram-se dois tiros de espingarda. No estado da fermentação em que se encontravam os ânimos, a menor chispa bastava para produzir um incêndio. A desordem tornou-se extrema; as tropas que tinham chegado pela tarde começaram a misturar-se com o povo, e uns e outros, encorajando-se mutuamente, tornaram geral a insurreição, cujo objecto era claramente o Príncipe da Paz. Misturei-me entre alguns grupos e ouvi distintamente gritos que ameaçavam Godoy à morte. Alguns homens, mais animados que outros, conseguiram por fim arrastar a multidão até ao seu Palácio, que foi atacado imediatamente. Os hussardos da sua guarda dispararam sobre os primeiros grupos que se apresentaram, o que, longe de desanimar os amotinados, não fez senão inspirar-lhes maior atrevimento. Os gritos de «Viva el-Rei! Viva a Rainha! Morte a Godoy!» ouviam-se por todas as partes, e os soldados e vários guardas reais começaram a liderar o movimento. Os guardas do Palácio de Godoy foram dispersados e massacrados. Os amotinados espalharam-se pelos quartos procurando o objecto do ódio público com um furor tão violento quanto tinha estado contido durante vários anos. Mas a resistência da guarda tinha dado tempo a Godoy para escapar do furor da populaça. Estava na sua cama no momento em que o seu palácio foi atacado, e levantou-se precipitadamente. Com a ajuda de alguns dos seus criados e com um disfarce que lhe fazia parecer da classe do povo, atravessou o telhado do seu palácio e refugiou-se no sótão duma casa vizinha com um dos seus criados. Depois ficou sozinho e, enrolado numa esteira, continuou agachado durante mais de trinta e duas horas. Os insurrectos, vendo que eram infrutíferas as suas buscas, começaram a partir os móveis mais preciosos; as próprias jóias foram entregues às chamas, como testemunhos odiosos de uma grandeza mal adquirida. Mas ninguém se aproveitou de uma ocasião tão favorável para o roubo e para a ganância; as condecorações, os colares e os sinais distintivos que pela sua riqueza poderiam tentar o povo ou provocar a sua indignação por terem servido ao esplendor de um homem poderoso e detestado, foram conservados com cuidado e enviados no dia seguinte ao próprio Rei. Caixas cheias de diamantes e lingotes de ouro e prata foram levados à Casa da Moeda com a exactidão mais escrupulosa. O povo, que nesta horrível noite, desencadeado, parecia não conhecer nem travão nem dever, teve para a esposa e filha do favorito todas as mostras de respeito e consideração que merecia o seu estatuto: elas foram não só respeitadas, mas também conduzidas como que triunfalmente até ao Palácio Real. O Rei e a Rainha estiveram de pé durante toda a noite. O Rei tinha-se mostrado ao povo na varanda do Palácio, tranquilizando-lhe e oferecendo-lhe a garantia de que não empreenderia nenhuma viagem. Carlos e a Rainha, tendo visto que o Príncipe das Astúrias se tinha tornado no objecto do amor do povo, suplicaram ao seu filho para que interpusesse a sua autoridade a favor de Godoy, convencidos de que apenas a sua mediação bastaria para o salvar. Depois de receber as primeira notícia daqueles sucessos, o embaixador da França chegou de Madrid às cinco da manhã, dirigindo-se imediatamente para junto de Suas Majestades. 
Entretanto, não se tinha saciado o furor do povo, que estava impaciente para afogar a sua raiva no sangue de Godoy. Todas as casas vizinhas ao seu palácio foram sucessivamente revistadas. Não se sabia como acalmar a multidão. O Rei Carlos IV e a Rainha mantinham-se na maior ansiedade: aquela terrível noite tinha sido para eles uma espécie de suplício; mas preocupavam-se se menos com a sua própria segurança do que com a sorte do seu indigno favorito. A Rainha, sobretudo, enviava a cada quarto de hora alguém para saber o que se passava e o que era feito de Godoy. Convencido de que nada podia acalmar o povo, Carlos IV, de acordo com a Rainha, teve de recorrer de novo ao Príncipe das Astúrias, por ser o único que poderia apaziguar o tumulto; e às cinco e meia da manhã apareceu o Príncipe na varanda do Palácio anunciando que o Rei participava da indignação geral contra o primeiro-ministro [Godoy]; e instantaneamente o furor do povo cessou, dando lugar a manifestações do seu amor mais ardente pelo herdeiro da coroa. Os soldados regressaram às suas bandeiras; duas companhias de guardas espanholas e valonas ocuparam a porta do Palácio do Generalíssimo Almirante [Godoy]; dispuseram-se alguns piquetes de soldados nas avenidas do Palácio Real, para dispersar a multidão e restabelecer a ordem, que pareceu restabelecer-se pouco a pouco. Às sete horas da manhã, publica-se o decreto seguinte:  
«Querendo comandar pela minha própria pessoa o exército e a marinha, resolvo exonerar D. Manuel Godoy, Príncipe da Paz, dos empregos de Generalíssimo e Almirante, concedendo-lhe o seu retiro onde lhe for mais cómodo». 
Esta declaração, assinada pela mão do Rei, era uma espécie de adesão aos excessos cometidos durante a noite contra o próprio favorito: causou a maior satisfação no povo, que via nela uma espécie de deferência à sua vontade, e a queda dum poder que, durante tantos anos, tinha oprimido e escandalizado a nação. No arrebatamento do seu entusiasmo, os habitantes de Aranjuez e todos os estrangeiros que aí se encontravam, em número de mais de dez mil, a maior parte vindos dos campos vizinhos, correram em massa até ao Palácio, pedindo para ver Suas Majestades e os Príncipes e Princesas, que apareceram nas varandas no meio das mais vivas explosões de aclamação e gratidão públicas. 
A tranquilidade reinou durante todo o dia 18: a desgraça do favorito pareceu uma garantia suficiente para que ela não fosse mais perturbada; só o foi, ligeiramente, pela prisão de D. Diego Godoy, irmão do Príncipe da Paz e Coronel das Guardas espanholas, que foi conduzido às casernas, depois de lhe terem sido arrancadas as condecorações e as marcas distintivas da sua graduação. 
Contudo, o partido do herdeiro da coroa começava a pesar no interior do gabinete do Rei; e as mutações seguintes que ele sugerirá nos comandos do palácio foram indicadas ao Rei como indispensáveis no estado em que se encontravam as circunstâncias. O Rei confia ao Príncipe de Castel-Franco [até então Comandante das Guardas valonas] o comando de todas as tropas confiadas à guarda do monarca. Esse General, o Conde de Villarieso, o Marquês de Albudeyete, Capitão das Guardas Reais e o Marquês de Caballero, ministro da graça e da justiça, formaram o conselho particular do rei. Mandou-se sondar o espírito das tropas e dos habitantes, para se assegurar se existiam ainda alguns vestígios de descontentamento, e para se prevenir as desordens que daí poderiam resultar. 
Contudo, os acontecimentos já se tinham sabido em Madrid, onde o povo imitou, na noite de 18, o exemplo do que se tinha passado em Aranjuez. Numerosos bandos de sediciosos dirigiram-se às casas de Godoy, da sua mãe, do seu irmão, Duque de Almodobar del Campo, da sua irmã D. Ramona, esposa do Conde de Fuente Blanca, da sua segunda irmã D. María Antónia, esposa do Marquês de Branciforte, e de diversas personalidades e empregados que eles supunham ser amigos íntimos, parentes ou confidentes do objecto da sua cólera; tornaram-se senhores das suas casas e queimaram os móveis, gritando sempre «Viva o Rei! Morra Godoy!». 
Estas notícias, ao chegarem à Corte [em Aranjuez] durante a noite, fizeram uma profunda impressão e agitaram o espírito do Rei e da Rainha Carolina, ainda vivamente perturbados por tudo o que acabava de acontecer. Entretanto, na manhã do dia 19, a descoberta e a prisão de Godoy deram novos tormentos a Carlos IV e à Rainha. Depois de trinta e seis horas, o favorito deposto e proscrito pelo povo não tinha nada para comer, e estava morrendo de sede. Exausto ademais pela insónia, arrisca-se a sair do refúgio que até então tinha estado garantido. Um faccioso das Guardas valonas foi o primeiro que o surpreendeu, no momento em que saía do esconderijo para espreitar a situação e procurar fugir. Felizmente, as tropas cercaram-no antes do povo, que, tendo já proferido gritos de vingança e morte, poderia lançar-se sobre ele. Um piquete de Guardas Reais levava-o como prisioneiro; mas junta-se tanta gente na sua passagem, que a escolta, ainda que numerosa, não pôde evitar que o insultassem, e que fosse ligeiramente ferido na cabeça. A sua aparição incendiou a tal ponto o furor popular que ele receava que a escolta, que era insuficiente, seria imolada por querer salvá-lo. O Rei e a Rainha, nas mais cruéis inquietações, ao serem instruídos da terrível situação em que se encontrava Godoy, apenas suplicaram ao Príncipe das Astúrias para tomá-lo debaixo da sua protecção. 
Assim, nada falta a este grande exemplo das vicissitudes humanas: Godoy humilhado, despojado do seu poder e das suas honras, prestes a morrer pelos golpes dum povo irritado, deve a conservação da sua vida àquele que ele próprio tinha mais oprimido, durante o curso da sua prosperidade. O herdeiro do trono vem até ao meio dos radicais que queriam imolar o favorito; encontra-o num estado deplorável: as suas roupas estavam em farrapos, os seus cabelos arrancados, a sua face ferida e coberta de sangue. Vendo o Príncipe, Godoy, ajoelhando-se, implora a sua clemência. Fernando, voltando-se para a multidão, diz: «Meus amigos, retirai-vos: Godoy será posto num lugar em segurança; ele é depositário de segredos importantes, e é necessário que ele mos revele». Perante a voz de Fernando, cessam os clamores e os braços levantados. Fui testemunha dessa cena memorável; vi o Príncipe que, tal como um Deus salvador, chegava para que o sangue da vítima não manchasse o seu triunfo; vi os guardas e o povo obedecer com um respeito religioso àquele que eles pareciam reconhecer já como seu monarca; mas que, nesta circunstância, não tinha outro Império para além do que exercia sobre o coração dos espanhóis. 
Fernando somente deixa Godoy aquando da sua chegada à caserna dos guardas, e quando estava ao abrigo de todo o perigo. Dirigindo-se então à imensa multidão espalhada pela praça, assegura, em nome do seu augusto pai, que o acusado seria julgado e punido segundo o rigor das leis. Esta promessa solene é suficiente para apaziguar o povo, que pouco a pouco se retira.  
Tudo parecia reentrar na ordem, quando, à meia-noite, uma viatura atrelada com seis mulas foi vista à porta da caserna dos guardas, ; rapidamente espalha-se o boato que o prisioneiro vai ser transferido para Granada. O povo agrupa-se novamente; os mais arrojados lançam-se sobre a carroça, e, depois de terem cortado as rédeas, despedaçam-na. O Príncipe das Astúrias, informado desta nova cena, aparece de novo, por ordem do Rei, e reitera, em seu nome, a promessa de fazer julgar e punir o ministro prevaricador. O povo, sempre dócil à voz de Fernando, acalma-se e dispersa-se.  
Mas Carlos IV crê não poder reinar sem o seu favorito. Fatigado então pelas emoções dolorosas que lhe tinham causado os acontecimentos abruptos e tempestuosos, enfraquecido pelas suas enfermidades, impressionado pelo desencorajamento e pela aflição da Rainha, e ainda mais impressionado pela afeição do povo pelo seu filho, Carlos IV chama até si, às sete horas da tarde, os ministros e os principais oficiais da sua Corte, e abdica espontaneamente da coroa a favor do Príncipe das Astúrias, acrescentando que nunca tinha feito nada com tanto agrado e mais conforme aos seus desejos e às suas intenções. 
E ainda disse que os direitos do Príncipe eram incontestáveis, pois convém relembrar que os prelados eleitos para representar o clero, que os grandes de Espanha e os titulares de Castela, deputados da nobreza, e aquelas cidades com voz nas Cortes e que representavam o povo espanhol, tinham prestado juramento ao Príncipe das Astúrias, desde 1789, como sucessor do trono. 
Eis o texto do decreto da abdicação de Carlos IV: 
«Como os achaques que padeço não me permitem suportar por mais tempo o grave peso do governo dos meus reinos, e para reparar a minha saúde me seja necessário desfrutar do clima mais moderado da tranquilidade da vida privada; determinei, depois da mais séria deliberação, abdicar a minha coroa no meu herdeiro e muito caro filho, o Príncipe das Astúrias. 
Portanto, a minha Real vontade é que seja reconhecido e obedecido como Rei e senhor natural de todos os meus reinos e domínios. E para que este meu Real decreto de livre e espontânea abdicação tenha o seu exacto e devido cumprimento, haveis de o comunicar ao conselho e demais pessoas a quem corresponda. 
Dado em Aranjuez, a 19 de Março de 1808. 
Eu o Rei»
A notícia da abdicação, inicialmente contida dentro do Palácio, foi anunciada ao povo por um guarda real, e, no mesmo momento, começa a circular com uma rapidez incrível. O povo acorre em massa até à praça do Palácio, para se assegurar da realidade do facto, e para ver o novo Rei, que, apresentando-se na varanda, recebe as mais explosivas manifestações de amor e de entusiasmo dos seus vassalos. 
É preciso ter sido testemunha da alegria dos espanhóis no mês de Março de 1808, desse delírio universal que produziu por toda a parte a notícia da desgraça de Godoy e a da elevação de Fernando ao trono, para julgar qual deve ser e qual foi com efeito a actividade dos espíritos, a exaltação das imaginações, e a força surpreendente que a opinião pública adquiriu naquele momento, cuja voz tinha sido durante tanto tempo abafada. 
A juventude do novo Rei, a sua amabilidade, a generosidade a que se tinha exposto para salvar o seu mais cruel inimigo, o interesse que a sua perseguição e as suas desgraças tinham inspirando, tornavam-no tão caro aos espanhóis, que o seu amor se tinha transformado em idolatria e adoração. 
Desde que a vontade de Carlos IV de ceder a coroa ao seu filho primogénito foi solenemente conhecida, no dia 19 de Março, o novo soberano dirigiu-se até ao seu pai para realizar a cerimónia do beija-mão, que, na Espanha, é uma prova de respeito e de vassalagem. Logo de seguida, o jovem Rei entra nas salas onde recebe as homenagens dos chefes do Palácio, dos ministros, e dos grandes do Reino que se encontravam em Aranjuez. Durante a tarde, Fernando assina os decretos que chamavam de volta aqueles seus fiéis servidores que tinham partilhado os perigos e a amargura da sua perseguição. 
O Duque do Infantado, chamado do exílio, foi nomeado Coronel das Guardas espanholas, e, pouco tempo depois, presidente do Conselho Supremo de Castela. O Duque de San Carlos obteve o cargo de Grã-Mestre do Palácio. Escoiquiz, Orgaz e todos aqueles que tinham sido arbitrariamente proscritos pelos sucessos de El Escorial, readquiriram os seus empregos e foram satisfeitos com as manifestações do afecto e do favor do jovem Rei. O General O'Farril foi chamado para o Ministério da Guerra; Mazaredo para o da Marinha; M. Azanza, que, durante a sua longa carreira, tinha mostrado, nas finanças, uma habilidade pouco comum, foi nomeado Ministro do Tesouro; confiou-se ao Conde de Ezpeleta a direcção geral da artilharia, e a da engenharia ao Marquês de la Romana. Cabarrus, Urquijo, Jovellanos, Hermida e outros homens eminentes, que, em diversas partes, se tinham distinguido durante o reinado de Carlos IV, e que se tinham afastado devido às intrigas da Corte, foram chamados de volta. 
Enquanto o novo Rei tratava de empregar e de distinguir aqueles seus vassalos que a opinião pública designava como os mais capazes, uma punição legal ameaçava a cabeça de Godoy. No dia 23 de Março, às sete horas da manhã, foi transferido para Villaviciosa; dois oficiais da Guarda Real subiram com ele na sua viatura, que foi escoltada por fortes piquetes do mesmo corpo, comandados pelo Marquês de Castellar, Capitão da companhia de alabardeiros, comissionado da guarda do prisioneiro. A ordem do Rei para meter Godoy em julgamento era assim concebida: 
«O Rei decidiu que D. Manuel Godoy, Príncipe da Paz, será julgado por causa das suas faltas, excessos e apropriação de bens públicos, e outros agravos que tanto poderão resultar das informações conhecidas até este dia, como das peças relativas aos acontecimentos do Escorial encontradas em Aranjuez, em número de nove, na sua secretária, tal como um telégrafo com muitas cifras». 
Esta ordem foi comunicada ao presidente do Conselho de Castela, por ordem do Rei; e na execução da decisão do Conselho, Godoy não foi o único a ser levado a julgamento: também é levado o seu irmão, D. Diego Godoy, Duque de Almodovar del Campo, tal como o ministro das finanças Soler; Vigury, ex-intendente de Havana; Sexto Espinosa, director da caixa de consolidação; Noriega, tesoureiro-geral; Marquina, corregedor ou prefeito de Madrid; de Viegas, primeiro advogado do rei no Conselho de Castela; e o padre Estala; todos acusados de terem cooperado nos excessos públicos e apropriações de bens públicos que se imputava ao favorito, e todos designados pela opinião pública como seus fiéis e seus instrumentos. 
O Conselho anuncia em seguida o novo reinado, ordenando a suspensão da venda de bens do clero, abolindo as contribuições odiosas que vexavam infinitamente o povo, e suprimindo a superintendência da polícia geral de Madrid, que era detestada pelos habitantes. Pode dizer-se que a popularidade foi a característica que distinguia a nova administração. 
Todas as cidades do Reino, e particularmente Madrid, manifestaram subitamente os mesmos sentimentos, à medida que se ia conhecendo com exactidão tudo o que se tinha passado. Em Salamanca, o povo tocou os sinos, e mais de seiscentos monges e idêntico número de licenciados foram vistos a dançar na praça pública; as mulheres, as jovens filhas e os velhos associaram-se a essas manifestações da alegria nacional. O povo estava como que numa espécie de frenesim. Os Te Deum foram cantados nas principais cidades da Espanha, para celebrar a queda do favorito. 
Em Madrid, logo no dia 19 à tarde, os retratos de Godoy, os seus brasões de armas, e em geral todos os sinais da sua opressão foram por todo o lado lançados ao fogo, e os retratos do novo rei levados em triunfo e colocados num pálio. Uma guarda cívica, formada voluntariamente, impedia os malévolos de se aproveitarem das manifestações da alegria pública para cometer excessos. 
Em Sanlúcar de Barrameda, no Reino de Sevilha, perto da embocadura do Guadalquivir, o povo, odiando o Príncipe da Paz e revoltado contra ele, antes mesmo que Fernando se sentasse no trono, devasta o jardim botânico que o favorito caído tinha fundado. Um barco duma invenção particular, nomeado Salvavidas [sic], destinado a salvar os náufragos, e que Godoy tinha mandado construir, tornou-se também num objecto do furor do povo, que destruía assim as suas próprias vantagens, para que ninguém pudesse recordar doravante o homem detestado. 
Os papéis espanhóis, que começaram a ser impressos com uma liberdade nunca vista, cobriam D. Manuel com os epítetos mais injuriosos: Chamavam-lhe o príncipe da injustiça; o generalíssimo da infâmia; o grande-Almirante da traição; a ruína da nação espanhola; resumindo, duma ponta à outra da Espanha, a animosidade contra o favorito foi levada ao mais último grau. 
A 20 de Março, foram publicadas, em Madrid, as proclamações da renúncia de Carlos IV à coroa e da elevação de Fernando VII. A alegria foi universal, e os sentimentos manifestaram-se até ao delírio. Algumas pessoas espantaram-se da Rainha não ter usado o ascendente que tinha sobre o espírito do velho Rei, para evitar essa renúncia, que a despojava a si mesma de todo o seu poder, e sujeitava-a àquele dos seus filhos que ela amava menos. Também se acreditou muito em geral que a resolução de Carlos IV tinha sido mais efeito do medo do que da sua vontade livre, apesar de ninguém indicar que ele tinha agido contra a sua vontade. Nem sequer se imaginava que poderia algum dia vir a protestar contra a sua abdicação.
Contudo, quando ela foi comunicada oficialmente ao Conselho de Castela, este impediu os três fiscais, ou seja, os três defensores do direito público, de darem o seu aviso sobre a execução desse grande acto da Majestade soberana. O impedimento desagradou à nova Corte de Aranjuez; e em consequência, o Conselho recebe, a 21, a imposição urgente de fazer publicar a abdicação, sem demora, e sem esperar que os fiscais enunciassem a sua opinião particular. O Conselho de Castela obedece. Noticia-se somente que a abdicação não foi feita nas mesmas formas que a de Juan I, de Carlos I e de Filipe V; que o velho Rei não tinha enunciado a renda que reservava para sustentar a sua casa e a da Rainha, nem quais eram as províncias da Espanha que serviriam de hipotecas como garantia da indemnização; em tudo nesse ofício sentia-se a precipitação e a crise que não tinha permitido amadurecer uma deliberação tranquila. Dois anos mais tarde, Bonaparte, no seu Moniteur, que, depois de ter sido o receptáculo de todos os actos revolucionários, se tornou o depósito  de todos os actos do seu domínio, esforça-se por mirrar com o nome de sedição e de revolta o movimento de Aranjuez, que toda a Espanha considerava como o efeito dum impulso espontâneo do povo. Ele insinua mesmo que o Príncipe das Astúrias não lhe era alheio; e que se serviu do nome da Rainha sua mãe para fortificar essa injuriosa asserção, que nem nem a Rainha, nem o Príncipe, então cativo, poderiam desmentir. Mas não se encontra nada em qualquer das numerosas memórias publicadas sobre estes acontecimentos que possa acusar Fernando de ter tido a menor parte directa nas cenas tumultuosas de 17 e de 19 de Março. Uma testemunha nada suspeita, o marquês de Caballero, ministro da Graça e da Justiça, que Carlos IV honrava com a sua confiança, e cuja probidade não pode ser posta em causa, que esteve presente em todos os acontecimentos, e que deixou de ser ministro pouco tempo depois da consagração de Fernando, escrevendo no estrangeiro, sem medo e sem esperança, diz claramente «que o príncipe das Astúrias estava de tal modo oprimido e numa tão grande dependência que lhe teria sido impossível combinar um plano, para além de que o seu amor pelo seu pai teria sido suficiente para o evitar; amor que há muitas provas para não o poder duvidar, apesar dos esforços que fazia Godoy para obscurecê-las». O mesmo ministro acrescenta, numa outra passagem (e isto foi escrito em 1815): «Agora, tal como então, não estou nada convencido que o plano tenha sido combinado, e vejo-o como inverosímil e até mesmo como impossível». 
Um outro testemunho da inocência de Fernando encontra-se nas suas cartas ao seu pai, escritas em Bayonne, no mês de Maio de 1808. [...]
Enfim, Carlos IV, ao avisar o Imperador Napoleão da sua renúncia, não informou qualquer causa duma resolução oposta à que tinha tomado dois dias antes, mas sim que as suas enfermidades não lhe permitiam encarregar-se do peso do Governo, e que tinha o projecto de se retirar, para acabar os seus dias num clima melhor. É certo que, em geral, aprova-se o resultado da revolução de Aranjuez; pois todos estavam cansados do grande poder do favorito, desejando ver o ceptro nas mãos de Fernando. 
Mas já se ouvia a tormenta. O novo rei e o seu povo iam experimentar a violência duma dessas tempestades políticas, que derrubam ao mesmo tempo o trono e as instituições sociais. Bonaparte, cujas tropas inundavam o norte da Espanha, ia aproveitar os acontecimentos de Aranjuez para antecipar a execução do seu plano. [...]

[Fonte: Théodore Chemineau, "Mémoires historiques sur les dissensions domestiques de la famille royale d'Espagne, sur l'affaire de l'Escurial, en 1807, sur la révolution d'Aranjuez et sur les scènes de Bayonne en 1808", in Collection des mémoires relatifs aux révolutions d'Espagne, mis en ordre et publiés par M. Alphonse de Beauchamp - Tome Premier, Paris, Chez L.-G. Michaud Libraire-Éditeur, 1824, pp. 57-251, pp. 103-127].