Ordem do dia do Exército de Portugal
O General em Chefe, satisfeito do modo com que se portou a equipagem da corveta de Sua Majestade Imperial e Real a Gaivota, comandada por mr. le Blond-Plassan, Tenente do Mar, na acção que houve na noite de 22 para 23 deste mês, entre a dita corveta e cinco pinques [sic] ingleses, amarinhados por mais de 150 homens, se apressa a dar a conhecer ao exército, pela sua ordem do dia, as particularidades seguintes:
Pelas duas horas da manhã, 5 pinques ingleses abordaram a Gaivota, por duas diferentes vezes; mas de cada vez foram repelidos à arma branca e a tiro de pistola. Da terceira vez tentaram os pinques a abordagem; porém, o fogo da curveta foi tão vivo e tão bem dirigido, que não cuidaram mais que em salvar-se, abandonando todos os da sua companha que se achavam ainda mais embaraçados nas redes e ovéns, os quais tiveram de ser lançados ao mar.
Nessa ocasião perdeu o inimigo pelo menos 40 homens, especialmente o oficial comandante da expedição, que foi morto por mr. le Blond-Plassan, ficando o seu chapéu e pistola em poder do Comandante da Marinha.
A equipagem da Gaivota, principalmente os militares, capitaneados pelo Tenente Gargan, e dois marinheiros franceses, pelejaram com muito valor. Não temos de sentir mais que a perda dum só homem, por apelido Glasser, soldado da 4.ª Companhia da Legião Hanoveriana, que ficou mortalmente ferido. Também o foram mais oito, se bem que levemente, de sorte que em breve poderão tornar a servir.
Mr. le Blond-Plassan dá um particular louvor aos senhores oficiais do seu comando, os quais se houveram na referida acção com coragem presença de ânimo.
Os ingleses quiseram festejar o dia [de] aniversário de S. Jorge [23 de Abril]; mas ficaram enganados. Não é assim que o exército francês tem solenizado o aniversário da coroação do seu Imperador e o da batalha de Marengo.
Palácio do Quartel-General de Lisboa, a 24 de Abril de 1808.
O Duque de Abrantes
[Fonte: Gazeta de Lisboa, n.º 17, 26 de Abril de 1808].
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Observações:
Com em tantos outros casos, é difícil perceber, mais de 200 anos depois, o que realmente se passou naquela noite. A versão de Acúrsio das Neves, que também abordou este episódio, não podia contrastar mais com a versão de Junot: depois de referir a fuga do Núncio e a forma como Junot esbravejou ao sabê-lo, sem nada poder fazer, continua o citado autor, com ironia:
“É coisa notável que raras vezes se experimenta um desgosto que não seja acompanhado de outros! Os ingleses frustraram novamente a vigilância das torres e baterias da barra na noite de 23 [de Abril], e vieram perto de Belém em embarcações ligeiras atacar o brigue Gaivota, e o teriam levado se uma rede de corda não defendesse a sua abordagem. Ainda principiaram a rompê-la; mas sendo pressentidos pelos franceses que guarneciam o brigue, tiveram de desistir da empresa, deixando um chapéu, que provavelmente caiu da cabeça a algum dos ingleses, na acção de quererem romper a rede, e sempre levaram uma lancha pertencente ao brigue. Esta notícia logo na manhã seguinte se divulgou pelos cafés e pelas praças de Lisboa; mas ao mesmo tempo que se celebrava com prazer a ousadia nobre dos ingleses e o desleixamento das guarnições francesas, que não só os deixaram entrar, mas até sair a salvo, depois de descobertos, tendo-se entranhado tanto pelo rio acima, com que admiração se não viu logo uma arrogante gazeta que representava esta acção como uma vitória assinalada das armas francesas? Eram cinco pinques, dizia o gazeteiro* (e nem na entrada, nem na saída foram vistos!) e não menos de quarenta, incluso o comandante da expedição, ficaram mortos de um rasgo de pena. É assim que o valor de Lagarde pretendeu cobrir a vergonha dos soldados franceses; é assim que estes impostores têm enganado o mundo!” [Fonte: José Accursio das Neves, Historia Geral da Invasão dos Francezes em Portugal - Tomo II, Lisboa, 1810, Officina de Simão Thaddeo Ferreira, pp. 227-228].
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[Ver a tradução em "Lapides nas sepulturas de alguns officiais inglezes, mortos em Portugal durante a Guerra Peninsular", in Francisco Augusto Martins de Carvalho, Guerra Peninsular - Notas, Episodios e Extractos Curiosos, Coimbra, Typographia Auxiliar d'Esciptorio, 1910, pp. 62-63].
Acrescentamos finalmente que o blog Age of Sail contém uma entrada sobre Conway Shipley, incluindo uma narração mais pormenorizada deste ataque no Tejo.
Fonte das imagens: Os Bardinos
Túmulo do inglês
(Paço d'Arcos)
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Nota:
* Alusão a Lagarde, que ficou de facto conhecido em Portugal como o gazeteiro. Na verdade, Acúrsio das Neves comete aqui um lapso, visto estar a referir-se obviamente ao texto (a ordem do dia acima transcrita) assinado pelo Duque de Abrantes (Junot), publicado originalmente na Gazeta de Lisboa.