domingo, 24 de abril de 2011

Ordem do dia de Junot sobre um rechaço de algumas embarcações inglesas perto de Belém (24 de Abril de 1808)





Ordem do dia do Exército de Portugal 


O General em Chefe, satisfeito do modo com que se portou a equipagem da corveta de Sua Majestade Imperial e Real a Gaivota, comandada por mr. le Blond-Plassan, Tenente do Mar, na acção que houve na noite de 22 para 23 deste mês, entre a dita corveta e cinco pinques [sic] ingleses, amarinhados por mais de 150 homens, se apressa a dar a conhecer ao exército, pela sua ordem do dia, as particularidades seguintes: 

Pelas duas horas da manhã, 5 pinques ingleses abordaram a Gaivota, por duas diferentes vezes; mas de cada vez foram repelidos à arma branca e a tiro de pistola. Da terceira vez tentaram os pinques a abordagem; porém, o fogo da curveta foi tão vivo e tão bem dirigido, que não cuidaram mais que em salvar-se, abandonando todos os da sua companha que se achavam ainda mais embaraçados nas redes e ovéns, os quais tiveram de ser lançados ao mar. 

Nessa ocasião perdeu o inimigo pelo menos 40 homens, especialmente o oficial comandante da expedição, que foi morto por mr. le Blond-Plassan, ficando o seu chapéu e pistola em poder do Comandante da Marinha. 

A equipagem da Gaivota, principalmente os militares, capitaneados pelo Tenente Gargan, e dois marinheiros franceses, pelejaram com muito valor. Não temos de sentir mais que a perda dum só homem, por apelido Glasser, soldado da 4.ª Companhia da Legião Hanoveriana, que ficou mortalmente ferido. Também o foram mais oito, se bem que levemente, de sorte que em breve poderão tornar a servir. 

Mr. le Blond-Plassan dá um particular louvor aos senhores oficiais do seu comando, os quais se houveram na referida acção com coragem presença de ânimo. 

Os ingleses quiseram festejar o dia [de] aniversário de S. Jorge [23 de Abril]; mas ficaram enganados. Não é assim que o exército francês tem solenizado o aniversário da coroação do seu Imperador e o da batalha de Marengo. 

Palácio do Quartel-General de Lisboa, a 24 de Abril de 1808. 

O Duque de Abrantes 

[Fonte: Gazeta de Lisboa, n.º 17, 26 de Abril de 1808]. 


____________________________________________


Observações:

Com em tantos outros casos, é difícil perceber, mais de 200 anos depois, o que realmente se passou naquela noite. A versão de Acúrsio das Neves, que também abordou este episódio, não podia contrastar mais com a versão de Junot: depois de referir a fuga do Núncio e a forma como Junot esbravejou ao sabê-lo, sem nada poder fazer, continua o citado autor, com ironia: 

“É coisa notável que raras vezes se experimenta um desgosto que não seja acompanhado de outros! Os ingleses frustraram novamente a vigilância das torres e baterias da barra na noite de 23 [de Abril], e vieram perto de Belém em embarcações ligeiras atacar o brigue Gaivota, e o teriam levado se uma rede de corda não defendesse a sua abordagem. Ainda principiaram a rompê-la; mas sendo pressentidos pelos franceses que guarneciam o brigue, tiveram de desistir da empresa, deixando um chapéu, que provavelmente caiu da cabeça a algum dos ingleses, na acção de quererem romper a rede, e sempre levaram uma lancha pertencente ao brigue. Esta notícia logo na manhã seguinte se divulgou pelos cafés e pelas praças de Lisboa; mas ao mesmo tempo que se celebrava com prazer a ousadia nobre dos ingleses e o desleixamento das guarnições francesas, que não só os deixaram entrar, mas até sair a salvo, depois de descobertos, tendo-se entranhado tanto pelo rio acima, com que admiração se não viu logo uma arrogante gazeta que representava esta acção como uma vitória assinalada das armas francesas? Eram cinco pinques, dizia o gazeteiro* (e nem na entrada, nem na saída foram vistos!) e não menos de quarenta, incluso o comandante da expedição, ficaram mortos de um rasgo de pena. É assim que o valor de Lagarde pretendeu cobrir a vergonha dos soldados franceses; é assim que estes impostores têm enganado o mundo!” [Fonte: José Accursio das Neves, Historia Geral da Invasão dos Francezes em Portugal - Tomo II, Lisboa, 1810, Officina de Simão Thaddeo Ferreira, pp. 227-228].

Ainda que possamos considerar que Lagarde tenha exagerado, parece certo que os ingleses foram realmente rechaçados naquele dia 22 de Abril, segundo se deduz da inscrição da lápide dum monumento erguido diante da praia (nova) de Paço d'Arcosem memória do Capitão Conway Shipley, um militar britânico que morreu nesse ataque mal sucedidoSacred to the memory of Conway Shiply [sic], Esq. aged 25 years, late Captain of His Britannic Majesty’s Ship La Nymphe, who was killed in an attempt to cut an enemy’s vessel of war out of the Tagus, on the 22d of April, 1808. Circumstances which human wisdom could not foresee nor any exertion of human courage obviate, rendered the attempt unsuccessful, and closed the short but distinguished career of the Gallant Leader of it. But while his name will live long in records of Fame and the remembrance of his country, it is hoped that the brave and good of every nation will venerate his ashes and contemplate with respect the last mansion of a hero.
[Ver a tradução em "Lapides nas sepulturas de alguns officiais inglezes, mortos em Portugal durante a Guerra Peninsular", in Francisco Augusto Martins de Carvalho, Guerra Peninsular - Notas, Episodios e Extractos Curiosos, Coimbra, Typographia Auxiliar d'Esciptorio, 1910, pp. 62-63].

Acrescentamos finalmente que o blog Age of Sail contém uma entrada sobre Conway Shipley, incluindo uma narração mais pormenorizada deste ataque no Tejo.

Fonte das imagens: Os Bardinos
Túmulo do inglês
(Paço d'Arcos)

____________________________________________



Nota:

* Alusão a Lagarde, que ficou de facto conhecido em Portugal como o gazeteiro. Na verdade, Acúrsio das Neves comete aqui um lapso, visto estar a referir-se obviamente ao texto (a ordem do dia acima transcrita) assinado pelo Duque de Abrantes (Junot), publicado originalmente na Gazeta de Lisboa.