Se Napoleão dominava o continente europeu, a Grã-Bretanha demonstrava sempre que podia o seu poderio sobre os mares. Já tivemos ocasião de anotar dois episódios protagonizados pela esquadra britânica que bloqueava a costa portuguesa, o primeiro em Portimão, no início de Janeiro de 1808, e o segundo na foz do Tejo, em meados de Fevereiro do mesmo ano.
Mas não era só a costa portuguesa que era importunada pelas esquadras britânicas. Outro importante porto permanentemente bloqueado pelos navios de guerra de Sua Majestade Britânica era o de Cádis, onde se mantinham 5 navios franceses e 6 espanhóis desde a batalha de Trafalgar. Foi precisamente aí perto, na costa de Rota, que três fragatas britânicas (Alceste, Mercury e Grasshopper) ousaram interceptar, no dia 4 de Abril de 1808, um grande número de navios mercantes espanhóis, que eram comboiados por cerca de 20 embarcações de guerra. Apesar de se tratar de uma acção no mínimo bastante arriscada para a tripulação das três fragatas, pois para além do muito maior número de embarcações inimigas havia ainda que somar a artilharia das baterias costeiras, os britânicos conseguiram, depois de duas horas e meia de intensa chuva de artilharia de ambas as partes, destruir completamente 2 navios espanhóis e capturar outros sete (carregados de madeira para construção naval e com o respectivo armamento e pólvora), forçando assim as restantes embarcações a se retirarem [Cf. John Marshall, Royal Naval Biography, Supplement Part I, London, 1827, pp. 311-313; James Ralfe, The naval biography of Great Britain- Vol. IV, London, 1828, pp. 320-322].
Dezanove dias depois do referido episódio, onde da parte da Grã-Bretanha só morreu um homem e foram feridos outros três, apesar da fragata Grasshopper ter ficado em bastante mau estado, voltava a ocorrer um novo confronto entre as tripulações de duas embarcações britânicas e seis espanholas, mas agora mais perto da costa portuguesa, algures a sul de Faro. Uma das embarcações que protagonizaram este novo episódio foi precisamente a aludida fragata Grasshopper, como se pode ver através da seguinte carta do seu Capitão, Thomas Searle, escrita a 24 de Abril para o Contra-Almirante John Child Purvis, que comandava a esquadra britânica ancorada nos arredores do porto de Cádis:
Tenho a honra de vos informar que, acompanhado pelo brigue H.M.S. Rapid, tive a boa sorte de encontrar na manhã de ontem duas embarcações espanholas vindas da América do Sul, protegidas por quatro embarcações armadas; depois de uma pequena perseguição, elas ancoraram debaixo da protecção de uma bateria perto de Faro, entre os bancos de areia*; ancorei imediatamente ao alcance dos tiros de metralha, e, depois de uma acção muito severa durante duas horas e meia, as pessoas na costa abandonaram as suas armas, duas embarcações de guerra ficaram danificadas, e impelimos as outras duas para a praia, onde foram destruídas. As cargas que iam a bordo das duas embarcações espanholas que capturámos valem trinta mil libras cada uma; mas lamento dizer que isto não foi executado sem perdas na nossa parte: tivemos um homem morto, e eu próprio fui ferido ligeiramente [por um tiro de mosquete na virilha], e três marinheiros gravemente; ambas as embarcações sofreram muito nos seus cascos, mastros, velas e cordames. As perdas dos inimigos foram muito grandes nas duas embarcações de guerra capturadas: tiveram quarenta mortos e feridos; enviei catorze feridos pela costa até Faro, por não ter meios de tomar cuidado dos meus próprios feridos e dos do inimigo, o que espero que aprovareis.
[…]
Thomas Searle
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Nota:
* Dada a vaga descrição de Thomas Searle, não podemos precisar qual seria a fortificação aludida, uma vez que eram várias as construções defensivas costeiras assentes no cordão dunar das ilhas-barreiras à volta de Faro, como se pode ver no seguinte mapa (note-se que o sul está para cima), desenhado por volta de 1788 por José de Sande Vasconcelos, um engenheiro militar destacado no Algarve, onde elaborou diversos registos cartográficos da região (se bem que o rigor não era propriamente o seu forte). Deve ter-se em conta que a rápida erosão desta delicada formação geológica arruinava em poucas dezenas de anos qualquer construção. Por esse motivo, não sabemos dizer quais das fortificações representadas no mapa estavam ainda funcionais e continuavam a ser guarnecidas no ano de 1808, à excepção da fortaleza de S. Lourenço e da arruinada fortaleza da Armona (como os interessados poderão constatar nas fontes sobre a chamada restauração do Algarve, principiada pela revolta do povo de Olhão contra os franceses). Ainda assim, inclinamo-nos a pensar que a fortificação aludida pelo Capitão Searle seria a chamada fortaleza de S. Lourenço, em grande parte devido à aparente menção a este episódio numa resposta dum padre algarvio a uma proclamação de Junot de 26 de Junho de 1808.
Fonte: Mapa da configuração de todas as praças, fortalezas e baterias do reino do Algarve (ca. 1788),
de José de Sande Vasconcelos