Foto de M.N.L. Gouveia Fortaleza de S. João da Barra vista do rio |
Na madrugada de 6 de Janeiro de 1808 saiu da aldeia de Ferragudo, defronte a Portimão, um caíque levando a bordo pescadores a caminho da faina. Ao passar diante da fortaleza de S. João da Barra do Registo de Portimão, o soldado que estava de sentinela na bataria (ou bateria, espaço ocupado pela artilharia), como era vulgar sempre que por aí passava uma embarcação de pesca, perguntou ao mestre do caíque, Manuel da Silva, quem era e para onde ia, respondendo-lhe este que se dirigia para pescar.
De dia, já em mar alto, esta embarcação teria sido acometida por um brigue de guerra inglês. Doze dos quatorze homens que iam a bordo do caíque foram obrigados a passarem para o brigue, enquanto vinte e cinco ingleses armados passaram, por sua vez, para o caíque. Os ingleses ordenaram então aos dois portugueses para que os levassem, a bordo do mesmo caíque, até Portimão, a fim de apresarem uma embarcação espanhola, conhecida em português como boi (do espanhol "buey"), que se encontrava atracada perto da Alfândega daquela localidade. Ameaçados de morte, os portugueses não tiveram outro remédio senão obedecerem (segundo fica adiante entendido, acrescia ainda o facto de levarem três rapazes a bordo).
Fonte: Impronto Planta extraída da obra Mapa da Configuração de Todas as Praças, Fortalezas e Baterias do Reino do Algarve (1790) |
Feito o apresamento, antes das onze horas da noite volta a passar o caíque (que agora levava a bordo os dois pescadores portugueses, e oito ingleses) em frente à fortaleza de S. João, e novamente são feitas as mesmas perguntas pela sentinela. Os portugueses responderam quem eram, e que regressavam para a pesca, e o caíque passou sem problema. Logo a seguir vinha a embarcação espanhola, cuja tripulação, certamente ameaçada pelos ingleses, bradou ao guarda da fortaleza que se dirigia para a Espanha. A sentinela pediu então, como era vulgar nestes casos, o passe da Alfândega, mas os espanhóis responderam que não podiam perder tempo, dadas as condições da maré.
Perante tal resposta, o Governador da fortaleza, Francisco José de Moura, ainda pensou em aprontar um canhão para atirar contra a embarcação espanhola, mas sem desconfiar minimamente do que se passara e recordando-se dos avisos da Regência que ordenavam a boa harmonia com os franceses e espanhóis que ocupavam o país, decidiu nada fazer, ainda mais porque a dita embarcação estava partindo para o mar, e não entrando no rio.
Já em mar alto, os ingleses que seguiam a bordo do caíque passaram para o boi, enquanto os três rapazes portugueses (que supostamente tinham passado para a embarcação espanhola aquando do seu apresamento, talvez para evitar que os portugueses não lhes obedecessem ou que denunciassem logo a situação) passaram para o caíque. Aparentemente, isto teria sido feito ainda de noite, pois não só os ingleses se esqueceram de algum armamento e de outros objectos dentro do caíque, como os dois pescadores, apesar de procurarem pelo brigue inglês, a fim de rogarem a restituição dos restantes portugueses, não o descobriram.
Os dois homens e três rapazes regressaram a bordo do caíque somente às quatro horas da tarde do dia seguinte (dia 8), confirmando ao Governador da fortaleza tudo o que se tinha passado...
O primeiro dos documentos que abaixo se transcrevem é precisamente uma carta (doc. 1) do Governador da fortaleza de S. João da Barra do Registo de Portimão relatando todo este incidente ao Governador do Reino do Algarve, o Conde Monteiro-mor, que se encontrava residindo em Tavira. Cinco dias depois, este último envia uma carta (doc. 2) ao Conde de Sampaio, secretário da Regência, para lhe comunicar o sucedido e as medidas que entretanto tinha ordenado, como o afastamento do Governador da fortaleza do seu cargo, e um inquérito que tinha mandado abrir para se averiguarem responsabilidades. Finalmente, no dia 18, o mesmo Conde de Sampaio, em nome da Regência, responde (doc. 3) ao Conde e Monteiro-mor, aprovando todas as medidas que este último tinha tomado. Resta saber-se qual o paradeiro dos portugueses que não regressaram ou o destino da embarcação espanhola (bem como a sua mercadoria, que provavelmente seria bem valiosa para os ingleses), mas as cartas que se conhecem sobre o assunto nada mais acrescentam...
Fonte: Google Earth
Locais indicados na carta do Governador da Fortaleza de S. João da Barra
(nota: não existiam naquela época nem a marina, nem os molhes, nem o casario que acima se vê)
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Doc. 1
Carta de Francisco José de Moura, Governador da Fortaleza de S. João da Barra de Portimão,
ao Conde Monteiro-Mor
(8 de Janeiro de 1808)
Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor:
Vou expor a V.ª Ex.ª um acontecimento sucedido na noite [...] passada do dia de ontem, em que se contaram sete do corrente mês de Janeiro, e da perfídia e engano com que foi cometido:
No dia seis, saiu do lugar de Ferragudo o caíque de pescar de que é mestre Manuel da Silva, pela madrugada, e bradando a sentinela da bataria donde era, e para onde ia, lhe respondeu que para pescar. Saiu com efeito o dito caíque na forma do seu costume, e recolhendo-se das sete para as oito horas da noite do dia sete, lhe bradara a sentinela da bataria quem era, o que trazia, e donde vinha; respondeu que era o caíque de Manuel da Silva de Ferragudo, que vinha de pescar e trazia pescaria. E tornando a sair das dez para as onze horas da mesma noite, lhe bradara a sentinela donde era e para onde ia, a que respondeu que era o caíque de Manuel da Silva, que viera com pescaria e tornava a ir pescar (nota-se que o lugar de Ferragudo é pouco distante desta fortaleza, e isto acontece sempre aos seus pescadores). Logo depois se seguiu outra embarcação quase do lote dum caíque maior, e que se chama boi, a quem da mesma forma a sentinela da bataria bradasse quem era, donde vinha e para onde ia, e lhe respondera no idioma espanhol que era o boi espanhol que ia para Espanha; continuou-se-lhe a bradar que trouxessem à Fortaleza o passe da Alfândega, a que eles responderam que não podiam perder tempo; e como a maré era de vazante, a distância pouca da passagem e [a] água corria muito, tive intento de mandar-lhe apontar um canhão; temi que, atirando-lhe, fosse a pique, mas lembrei-me que este meu procedimento seria estranhado na presente conjectura, em que se acha[m] auxiliando-nos as tropas francesas e espanholas, e que os Governadores deste Reino, por ordens expressas, não cessam de recomendar a boa harmonia e concórdia entre a nossa nação e os vassalos daquelas. E como o dito boi se ia e não entrava, não havia motivo para alguma desconfiança.
Passou-se a noite em sossego sem alguma novidade. Rompeu o dia, e em alto sol se rompeu a novidade de que os ingleses haviam entrado e haviam levado o boi. Fiquei absorto quando ouvi semelhante proposição, porque o dito boi havia, quando entrou, subido pelo rio acima, e foi dar fundo defronte de Vila Nova [de Portimão], muito bem fronteiro à casa da Alfândega, distante desta barra e fortaleza não menos que um quarto de légua. No dia de hoje em que se contam oito do corrente, pelas quatro horas da tarde entrou o referido caíque de Manuel da Silva, e fazendo-o vir a esta fortaleza, achei que vinham dois homens e três rapazes, cujos nomes são Filipe de Assunção e Manuel Bigote; e contaram o caso pela forma seguinte:
Que achando-se eles com o seu caíque pescando no mar fora, foram acometidos de um brigue inglês, o qual, atirando-lhe com artilharia, os obrigou irem a bordo, e fazendo[-os] recolher para o brigue a companha do mesmo caíque, só deixaram a bordo deste os ditos Filipe de Assunção e Manuel Bigote, ficando no brigue doze porque eram catorze da companha. Saltaram no caíque vinte cinco ingleses e um prático, armados de espingardas, pistolas e traçados [= terçados: espadas curtas, curvas e largas], e disseram que vinham buscar a Vila Nova [de Portimão] o boi espanhol, e que sob pena de morte ao que não fizesse o que eles mandassem. Entraram pela barra, e passando por esta fortaleza das sete para as oito horas da noite, lhe bradara a sentinela da bataria, e lhe respondera na nossa língua um prático, que vinha de pescar, e que era o caíque de Manuel da Silva de Ferragudo; que nesta forma vieram pelo rio acima, e chegando-se ao boi, saltaram nele os ingleses, e fechando as escotilhas, deixaram os espanhóis que estavam debaixo da coberta, e picaram [=cortaram] as amarras, e o levaram pelo rio abaixo. Que chegando defronte desta fortaleza primeiramente o caíque com oito ingleses e dois portugueses, Filipe de Assunção e Manuel Bigote, lhe bradara a sentinela da bataría na forma praticada, ao que eles, portugueses, responderam que era o caíque de Manuel da Silva que ia outra vez a pescar; e seguindo-se depois o boi, e bradando-lhe a sentinela da bataria na forma que fica acima dito, lhe respondera na língua espanhola que era o boi espanhol, e que da fortaleza se dizia com instâncias que fosse levar-lhe o passe, mas que eles responderam na língua espanhola que não podiam demorar-se, porque o vento era favorável e a maré vazava, e assim saíram para fora da barra. Que chegando ao mar alto, os ingleses que iam no caíque se transportaram para o boi e os deixaram vir a eles os três rapazes, mas que fazendo diligência para ver se descobriam o brigue em ordem a se soltarem os doze homens da sua companha, porém que não puderam avistar mais, e lá foram não só os seus doze companheiros, mas até o guarda da Alfândega, que estava no boi; e deixando-lhe por esquecimento no caíque quatro espingardas, sete cartucheiros e dois chuços, uma machadinha, dois barris, um chapéu e um prumo, que apresentaram e [que] eu mandei recolher para esta fortaleza.
Este caso foi, na verdade, escandaloso, pela perfídia e engano, e não podia ser precavido pelo discurso humano[?], pois por mais vigilante que um chefe seja não pode ter o dom de adivinhar; era de noite, o caíque conhecido e do mesmo porto, o boi era espanhol, saía e não vinha de fora, as linguagens as mesmas próprias das nações e embarcações, e desta forma não houve nem podia haver em mim nem o menor receio que pudesse causar desconfiança. O que ponho na presença de V.ª Ex.ª para ordenar o que for servido.
Fortaleza de São João do Registo da Barra de Portimão no 8 de Janeiro de 1808.
Francisco José de Moura
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Doc. 2
Carta do Conde Monteiro-Mor ao Conde de Sampaio
(13 de Janeiro de 1808)
Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor:
Com a cópia do ofício que remeto incluso, informo a V.ª Ex.ª para o fazer presente nos Governadores do Reino do que acaba de suceder no porto de Vila Nova de Portimão, cuja parte eu a dou também ao Marquês del Socorro. Ainda que o ardil de que lançaram mão os ingleses para cometerem aquele insulto é dos mais finos e não é comum, e o atrevimento foi muito grande, contudo, o Governador [da fortaleza] não devera deixar sair o boi espanhol sem este apresentar o seu passe, e reconhecê-lo, e até metê-lo no fundo, no caso de desobediência, pois estas são as ordens com que se acha autorizado para assim praticar com todas as embarcações, ou sejam nacionais, ou amigas e aliadas: assim é que os Governadores do Reino por ordens expressas não cessam de recomendar a boa harmonia e concórdia que deve reinar entre a nossa nação e aquelas que se acham auxiliando-nos, mas não a ponto que se falte às ordens, à segurança pública, e que seja autorizada a desobediência; nem aos chefes do Exército de nações tão polidas e civilizadas era de crer que exigissem semelhantes absurdos; em consequência do que aquele Governador devera instar com o barco boi para que este obedecesse, até ao ponto de o meter a pique, se não houvesse outro remédio mais prudente; tenho mais que este devera desconfiar de alguma oculta trama, vista a repugnância tão desusada que o dito barco boi praticou. É por isso que, julgando-o eu culpável, determinei ao Capitão da Companhia de Bombeiros, graduado em Major do 2.º Regimento de Artilharia do Exército, Domingos Rafael Diniz, Oficial hábil, para que, passando àquela Fortaleza, remetesse para a da Ponta da Bandeira, na Praça de Lagos, o dito Governador; e o nomeei Comandante interino da Fortaleza do Registo da Barra de Vila Nova de Portimão.
Determinei também ao Tenente Coronel do 2.º Regimento de Infantaria de Linha, António Hipólito Costa, para que, passando a Vila Nova de Portimão e à Fortaleza do Registo da sua Barra, tanto numa como noutra parte tirasse uma rigorosa devassa [=inquérito]; para que na mesma se examinasse se o delito do Governador é mais agravante do que mostra no seu ofício, ou se há outros co-réus que cooperassem por comissão ou omissão para aquele insulto; e que logo que os achasse, os prendesse; e me desse parte de tudo, de que eu igualmente farei ciente a V.ª Ex.ª
Devo pôr na presença de V.ª Ex.ª que aquele Governador é um oficial muito antigo, honrado, e cuidadoso nas suas obrigações; e que o seu delito é por falta de maior inteligência, e por julgar que assim devia praticar.
Deus guarde a V.ª Ex.ª
Tavira, 13 de Janeiro de 1808.
Conde Monteiro Mor
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Doc. 3
Carta do Conde de Sampaio ao Conde Monteiro-mor
(18 de Janeiro de 1808)
Foi presente ao Conselho da Regência o ofício em data de 13 do corrente [mês] que V.ª Ex.ª me dirigiu com a cópia do que lhe escrevera o Governador da Fortaleza de São João do Registo da Barra de Vila Nova de Portimão, sobre o facto acontecido com o boi espanhol fundeado naquela barra, e o mesmo Conselho aprovou o procedimento de V.ª Ex.ª sobre este notável acontecimento, parecendo-lhe muito acertadas todas as providências e ordens que V.ª Ex.ª tem dado a este respeito.
Deus Guarde a V.ª Ex.ª
Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, em 18 de Janeiro de 1808
Conde de Sampaio
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