segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

O fuzilamento de Jacinto Correia em Mafra



Monumento em memória de Jacinto Correia, localizado no jardim fronteiro à porta de armas da Escola Prática de Infantaria de Mafra 
(no topo sul do Convento de Mafra)




A 25 de Janeiro de 1808, foi fuzilada aquela que seria, oficialmente, a primeira vítima dos  exércitos napoleónicos em toda a península ibérica. O seu nome era Jacinto Correia, mas os motivos que conduziram à sua morte variam segundo as versões. Vejamos:

Paisano dos arredores de Mafra
O bispo do Rio de Janeiro, logo depois de falar da arbitrária prisão de Bernardo José de Sousa Lobato, refere que “ao representante de Napoleão [i.e., a Junot] não era bastante lançar ferros aos portugueses; era preciso que fizesse correr o seu sangue, como sucedeu em Mafra com a morte de um pobre lavrador da vila da Atouguia chamado Jacinto. Este simples paisano tinha sido roubado pelas primeiras tropas francesas que passaram para a Praça de Peniche, e querendo defender-se dos seus inimigos, que julgava também [serem] inimigos da pátria, inflamado pelas queixas de seus vizinhos que tinham sido roubados como ele, foi imediatamente à vila de Óbidos a pedir auxílio de tropas ao Coronel do Regimento de Freire, que ali se achava. Disse-lhe que a sua intenção era dar a morte a todos os franceses que continuassem a passar pela sua terra. Ninguém escusará este pobre rústico de um erro de entendimento; mas o seu erro nascia de um verdadeiro patriotismo; e o que é bem digno de lamentar-se é que o seu patriotismo foi julgado um grande crime pelo juízo dos mesmos portugueses; porque o próprio Coronel de Freire, em lugar de o instruir como ignorante, o foi delatar como rebelde aos franceses, e por isso caindo o infeliz Jacinto nas garras do Brigadeiro Taunier [sic*], Comandante da Praça de Peniche, poucos dias depois foi morrer arcabuzado em Mafra, por sentença de uma comissão militar francesa. 
Para maior desgraça esteve este pobre homem a ponto de morrer sem sacramentos, se não fossem os cuidados e diligências de um religioso arrábido do Convento de Mafra, que com eles lhe acudiu quase no momento de sua triste morte. E de passagem nos seja permitido notar aqui que este religioso era um dos oito a que os francese reduziram todos os sacerdotes da Real Basílica de Mafra” [José Caetano da Silva Coutinho, Memoria Historica da Invasão dos Francezes em Portugal no anno de 1807, Rio de Janeiro, Impressão Régia, 1808, pp. 49-50].

Acúrsio das Neves, que parece estar na maior parte dos casos muito bem informado, corrobora esta versão, quando refere que o motivo de tal fuzilamento, que se praticou "com solenidade", foi "um indiscreto desafogo de palavras proferidas contra os franceses diante de uma autoridade portuguesa, que não praticou a virtude de ocultá-las" [José Accursio das Neves, Historia Geral da Invasão dos francezes em Portugal - Tomo II, Lisboa, Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1810, p. 69].  

Talvez apoiado nesta última obra, o General Foy, que acompanhara o exército invasor a Portugal, escreveu igualmente que "un bourgeois de Mafra fut condamné à mort par une comission militaire, et exécuté, pour s'être répandu en invectives contre l'armée française" [Général Foy, Histoire de la Guerre de la Péninsule sous Napoléon - Tome III, Paris, Baudouin Frères Éditeurs, 1827, p. 37].


No entanto, uma outra versão ganhou mais adeptos. Parece-nos que esta segunda versão foi publicada originalmente logo em 1809, numa obra anónima, cujo longo título é o seguinte: Observador Portuguez, Historico e Politico, de Lisboa, desde o dia 27 de Novembro do Anno de 1807, em que embarcou para o Brazil o Principe Regente Nosso Senhor e toda a Real Familia, por Motivo da Invasam dos Francezes neste Reino, &c. Contém todos os Editaes, Ordens publicas e particulares, Decretos, Successos fataes e desconhecidos nas Historias do Mundo; todas as Batalhas, Roubos e Usurpaçoens, até o dia 15 de Setembro de 1808, em que foram expulsos, depois de batidos os Francezes (Lisboa, Impressão Régia, 1809)**. Segundo esta obra (na p. 156), o crime de Jacinto Correia foi ter assassinado com uma foice dois franceses. Condenado à morte, suas últimas palavras teriam sido mais ou menos as seguintes: Se todos os portugueses fossem como eu, nem um só francês continuaria vivo

Cuidadosamente, a punição de Jacinto Correia foi tornada conhecida somente no dia 1 de Fevereiro, através duma proclamação de Loison que, contudo, omitiu as causas e natureza de tal "grande crime", talvez para evitar que o exemplo fosse seguido: 




Quartel General de Mafra, 1 de Fevereiro de 1808
Portugueses:
Um dos vossos compatriotas, Jacinto Correia, convencido de um grande crime, foi condenado à morte; esta severidade das leis assegura a tranquilidade pública de que dependem as vossas vidas e propriedades.
Se Sua Excelência o Comandante em Chefe entregou às leis um dos habitantes do país, todos presenciaram que tratou com a mesma severidade os soldados franceses quando se abandonaram a alguns excessos.
Portugueses, agradeçam a Sua Excelência que se interessa à vossa segurança, e acautelem-se contra todas as pessoas que procurariam abusar da vossa credulidade para vos conduzirem a excessos, cujos males incalculáveis recaíram sobre vós.
O General de Divisão, Governador do Palácio de S. Cloud, Comandante da Segunda Divisão do Exército,
Loison

[Fonte: Arquivo Histórico Militar, 1.ª div., 14.ª sec., cx. 182, doc. 83, fls. 11 e 12]


Um exemplar desta proclamação encontra-se também recolhido no 4.º vol. da Colecção de sentenças que julgarão os réos dos crimes mais graves e attrozes commetidos em Portugal e seus dominios, contendo uma nota manuscrita que corrobora a segunda versão, deixando assente que "o grande crime deste réu foi matar dois soldados franceses com uma foice. Abençoada seja sua memória". 

Raul Brandão, no seu livro "El-Rei Junot", dá mais algumas achegas para a compreensão deste episódio, através da publicação da seguinte nota, da autoria de Júlio Ivo: 
"Jacinto Correia, segundo referências que tenho encontrado nos arquivos de antigas irmandades, estudou em Mafra [as] primeiras letras no convento. Era natural de Zambujeira do Mar, freguesia de N.ª S.ª da Anunciação de Lourinhã. Casou na Atouguia de Baleia com Umtolini Rosa, em 30 de Maio de 1785, e deixou descendência. Residia nesta localidade quando o prenderam. 
Nas épocas em que mo permitem as minhas ocupações oficiais, tenho indagado do paradeiro dos descendentes; já encontrei vestígios, e sei que numa localidade no concelho de Cadaval, me parece, vivem pessoas desta família. Tenho o máximo empenho em saber o que esses descendentes conservam sobre o motivo do fuzilamento do avô ou bisavô.
A tradição em Mafra conservou até hoje que Jacinto Correia foi atacado por dois soldados franceses que lhe queriam roubar (vá o termo) um feixe de lenha. Jacinto Correia defendeu-se e matou os dois soldados com uma foice. Preso, foi conduzido a Mafra, onde se achava estabelecido o quartel-general de Loison. Julgado em conselho de guerra, declarou, confessando o crime, que: se todos fossem do seu valor, não ficaria um só francês vivo. Este desabafo, traduzido rigorosamente pelo português que servia de intérprete, encolerizou o presidente do tribunal (ou conselho de guerra) e Jacinto Correia foi condenado à morte, sem a menor atenuante, e fuzilado em 25 de Janeiro de 1808, segundo a tradição, no campo chamado «Alameda», na face sul do edifício de Mafra, mas há quem assegure que [foi] no largo dos «bicos», na face norte, por ter ouvido dizer. 
No livro 6.º, fls. 1936 de óbitos da freguesia de Santo André de Mafra encontra-se o seguinte registo: Aos vinte e cinco de Janeiro de 1808, faleceu com os sacramentos da confissão e comunhão, fuzilado pelos franceses, Jacintho Correia, d'idade de 46 annos, casado com Umtolini Rosa, moradora no logar d'Athouguia... O Prior (a) Manuel Duarte". [Raul Brandão, El-Rei Junot, Lisboa, IN-CM, s.d., pp. 205-206].




Finalmente, dispomos abaixo mais uma versão sobre este acontecimento, extraída de um manuscrito existente na Biblioteca Nacional de Portugal: 


Não pensava Jacinto Correia1, natural da Atouguia, freguesia de S. Silvestre do Gradil, que seus dias haviam de terminar em 1808 por sentença dos cúmplices de Robespierre e Marat dentro da sua pátria! O amor que consagrava a esta e os espíritos lusitanos que em seu peito nutria, o impeliram a dizer com menos que prudência, mas sem escravidão, que ele com o seu cajado era suficiente a espancar meia dúzia dos Marenguistas. Bastou só o proferir estas vozes, aproveitadas pela espionagem de degenerados portugueses, que as noticiaram aos invasores da nossa pátria, para que eles em continente[?] decretassem a prisão do valente luso; e preso imediatamente organizassem um conselho de vogais militares franceses, presidido por Mr. Dival Chefe do Batalhão, para conhecerem de um delito imaginário, mas bastante para o conduzir ao cadafalso.

Deram ao réu infeliz um advogado2 que baldamente interpunha os seus deveres e ofícios pelo seu constituinte, a quem [os] juizes prevenidos a sacrificá-lo a seus fins o haviam condenado à morte; e assim se proferiu a sentença, pospondo-se todas as formalidade prescritas em direito para a indagação dos delitos e imposição da justa pena.
E que preceitos de justiça podiam observar homens que abertamente avançavam “le droit que nous connaissons est le droit du canon3? Deste pois dimanou o espingardear-se no dia 25 de Janeiro, pelas nove horas para as dez da manhã, o malfadado Correia, assistindo-lhe o segundo e terceiro Regimento francês de Infantaria Ligeira, da Divisão do General Loison. O cadáver se deu à sepultura no adro da Igreja Matriz de Santo André da vila de Mafra, em cujo largo defronte do Convento se fez a execução. Assistiram-lhe com os socorros espirituais neste terrível lance o padre João António Horta[?] e fr. Francisco de Jesus Alavia[?], religioso arrábido, ambos varões de virtude, que o confortaram até ao último momento; e o religioso pelo excesso de sua caridade em não abandonar este infeliz, correu o risco de ser ferido por não se retirar a tempo.
Enquanto Jacinto Correia descansa no centro da terra esperando o dia último e melhor Juiz, nos grita, não com o epitáfio de seu sepulcro, porque careceu dele, mas de sua lealdade, com que nos admoesta dizendo:
                                 E não quereis que tema, ó Lusos fortes,
                                 Ruínas, perdições, exícios, mortes?4
Os sucessos seguintes continuaram o vaticínio; e a sua narração nos convencerá da sua existência. 
[Fonte: Discursos do Imortal Guilherme Pitt..., p. 322 (compilação de vários textos impressos e manuscritos desta época)]. 




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[Nota nossa]: Noutras versões, o nome deste oficial francês aparece como sendo Thomiers.

** Um excerto desta obra pode ser consultado, em tradução inglesa, em The Quarterly Review - Vol. IV, London printed & New York reprinted, 1810-1811, pp. 2-24; e também em Select Reviews and Spirit of the Foreign Magazines- Vol. V, Philadelphia, 1811, pp. 145-163.
Foi também ao Observador Portuguez que Robert Southey foi beber para abordar este episódio no 1.º Vol. da sua History of the Peninsular War (London, 1823, p. 126).

     1 [Nota do autor]: Loison quis salvar a vida a este infeliz, e sumiu a devassa; porém remeteram-lhe outra, e ordem positiva para o fuzilar: então disse ele que se queixassem os portugueses uns dos outros.


     2 [Nota do autor]: Brás Vidal Jordão.


     [Nota nossa]: O sentido que o autor quis dar à expressão foi "o direito que conhecemos é o direito do canhão"; mas tenha-se em conta o trocadilho que existe no original francês, pois canon tanto significa "canhão" como também "cânone" (podendo assim referir-se ao direito canónico).



     4 [Nota do autor]: Anacephaleoses da Monarchia Luzitana, oitava 101




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- A gravura inserida é da autoria de Henri L'Éveque. Foi publicada em 1812, em Londrescom o título (bilingue) A peasant of the neighbourwood of Mafra - Paysan des environs de MafraExtraímo-la da obra de Manuel J. Gandra (selecção, organização e notas), O Monumento de Mafra visto por estrangeiros (1716-1908), p. 39.