terça-feira, 14 de junho de 2011

Decreto de Junot sobre o pagamento das tropas portuguesas (14 de Junho de 1808)


Em nome de Sua Majestade o Imperador dos franceses, Rei de Itália, Protector da Confederação do Reno.
Nós o Duque de Abrantes, General em Chefe do Exército de Portugal, temos decretado e decretamos o seguinte: 

Art. I. Desde o primeiro do mês de Julho receberão as tropas portuguesas, que presentemente se acham em Portugal, o mesmo soldo que recebem as tropas francesas. Em lugar dos ranchos que precedentemente havia, receberão as tropas portuguesas, à imitação do Exército francês, todos os víveres em espécie *.

Art. II. Desde o mesmo dia primeiro de Julho entrarão, directamente do Erário, no Cofre do Pagador Geral do Exército, os fundos necessários para os soldos do mesmo Exército; e serão as tropas portuguesas, assim como se pratica com as tropas francesas, pagas pelos diversos pagadores do Exército. 

Art. III. Todos os Oficiais portugueses que tiverem serviço activo na tropa de linha, e aqueles que forem empregados ou seja no Estado-Maior, ou nas diferentes praças por nossa ordem, e comissionados pelo Ministro da Guerra, serão pagos como o são os Oficiais franceses em França; e em lugar de receber, como até agora o seu soldo, quatro partes em papel, e uma em metal, receberão daqui por diante uma terça parte em metal, e as outras duas terças partes em papel. 

Art. IV. O Ministro da Guerra nos apresentará até o dia 25 do corrente mês o cálculo dos fundos necessários para o pagamento do soldo do mês de Julho; para que a importância deste soldo seja posta à disposição do Pagador Geral, a fim de proceder ao pagamento das mesmas tropas. 

Art. V. Todos os soldos de reforma e todos os Oficiais compreendidos debaixo da denominação de Primeira e Segunda Plana, continuarão a ser pagos como eram até agora; recebendo porém uma terça parte em metal, e as outras duas em papel; serão eles igualmente pagos pelos pagadores do Exército. O Ministro da Guerra nos apresentará igualmente um cálculo dos fundos necessários para este objecto. 

Art. VI. Os Comissários de Guerra portugueses, fazendo as vezes de Inspectores, deverão passar revista a todas as tropas que se acharem no território que lhes for designado; e por eles, e como se pratica no Exército francês, serão vistas e assinadas as listas do pré, os vales ou bons [sic] para os víveres, e as folhas do soldo dos Oficiais. 

Art. VII. Haverá um Comissário de Guerra no partido do Porto e províncias do Minho e Trás-os-Montes; outro na província da Beira; um em Elvas; um no Algarve; e dois para a província da Estremadura e Comarca de Setúbal, cujas tropas serão pagas ou pelo pagador em Lisboa, ou pelo seu delegado em Setúbal. 

Art. VIII. O Ministro da Guerra nos apresentará todos os meses o balanço das somas necessárias para o pagamento das tropas portuguesas; e lançará em primeiro artigo os fundos necessários para pagar o soldo dos desgraçados portugueses escravos em Argel **.

Art. IX. As tropas portuguesas farão sempre parte daquelas divisões em cujo distrito se acharem; portanto, os General franceses, ou Comandantes de praças e de distritos, deverão incluir nos seus mapas de situação as tropas portuguesas. Serão igualmente obrigados de as visitar, e de lhes passar revista; a fim de ficarem certos que elas recebem o que lhes pertence, e para aperfeiçoar e acelerar ao mesmo tempo a sua instrução. 

Art. X. Ficará a Artilharia debaixo das ordens imediatas do General de Artilharia francês; a Cavalaria será igualmente comandada por um General de Cavalaria francês; o Corpo de Engenheiros ficará do mesmo modo debaixo do comando de um General de Engenharia francês; e a Marinha ficará também às ordens de um Comandante francês. Deste modo conhecerão os Comandantes superiores de todos estes corpos a força de cada um deles, e poderão cuidar na sua instrução e nos seus interesses; sendo a intenção de Sua Majestade que as tropas portuguesas sejam em tudo tratadas como as suas próprias. 

Art. XI. O Secretário de Estado das Finanças e o da Guerra e da Marinha, cada um deles pela parte que lhe compete, ficam encarregados da execução do presente decreto, o qual será comunicado ao Chefe do Estado-Maior, e ao Pagador Geral do Exército francês, para que eles dêem as ordens que derivam das funções que exercitam, e que exige a execução do presente decreto. 

Dado no Palácio do Quartel-General em Lisboa, aos 14 de Junho de 1808. 

O Duque de Abrantes. 


Por cópia conforme, 
O Secretário de Estado da Guerra e da Marinha, 
Luuyt.


[Fonte: Originalmente publicado no 2.º Suplemento à Gazeta de Lisboa, n.º 24, 18 de Junho de 1808; e corrigido posteriormente no 1.º Suplemento à Gazeta de Lisboa, n.º 25, 25 de Junho de 1808. Copiámos unicamente esta última versão].

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* [Nota original] Em França recebem as tropas francesas, em tempo de guerra, arrátel e meio de pão, meio arrátel de carne, legumes secos, sal e lenha.


Ofício dirigido à Junta Suprema de Sevilha pelos oficiais do Regimento de Múrcia, após a sua chegada a Paymogo (14 de Junho de 1808)



Sereníssimo Senhor:


O corpo de oficiais e cadetes do Regimento de Múrcia (Infantaria de Linha), cujos nomes se acompanham por nota: temos a honra de participar a Vossa Alteza Sereníssima a nossa chegada a esta primeira povoação da Espanha, com dois batalhões e uma bandeira. Apressamo-nos a informar Vossa Alteza acerca do que se passou com o dito corpo desde o dia 9 do presente mês. Neste dia, de acordo com ordens do General francês que mandava na divisão, foram reunidos os dois batalhões [do Regimento de Múrcia] em Setúbal, com o objectivo de que o segundo fosse no dia 10 para Lagos; mas no dia da marcha deram contra-ordens, mandando-nos, através do nosso Coronel D. Jorge Galván, que se preparasse todo o Regimento para ir para Lisboa, onde devíamos estar no dia seguinte. Formado já o Regimento nas ruas, e dados os habituais toques militares para marchar, começam a ressoar entre os soldados as vozes Viva Espanha e à Espanha. A marcha começou às doze horas, com o Coronel à cabeça. Chegámos a Palmela, onde se separa um caminho para a Espanha, entrando por ele a dianteira da coluna, aos gritos dos soldados: Vamos para a Espanha, à Espanha todos. Então foi completa a desordem. O Coronel fugiu a toda a brida e refugiou-se num convento de Palmela. Os que queriam ir para a Espanha abriram fogo aos que ainda não se tinham determinado à fuga, até que finalmente se separaram uns quatrocentos com uma bandeira. A oficialidade, o resto do Regimento e a outra bandeira chegaram pela noite a Palmela. 
Às 9 horas da noite chegou a esta povoação D. Vicente de Vargas, Sub-Tenente de Granadeiros do mesmo corpo, que estava em comissão em Lisboa; foi ver o Coronel e disse-lhe que em nome da pátria estava encarregado de procurar o melhor meio para conduzir o Regimento para a Espanha, e mostrou-lhe o documento que o autorizava, e que o dito sr. Vargas apresentará a esta Suprema Junta. O Coronel respondeu-lhe que obedeceria no dia seguinte. 
Mal amanheceu o dia 11, reuniu-se toda a oficialidade com o referido sr. Vargas, e fomos ao convento. Mas qual foi a nossa surpresa ao saber que às 3 da madrugada [o Coronel] tinha-se escapado por precipícios e rochas, caminhando a pé, e fora do caminho, a légua que separa Palmela de Setúbal, e feito retroceder alguns soldados dispersos e assistentes que vinham a reunir-se com o Regimento!
A oficialidade, vendo assim a fuga suspeita do seu Coronel, que a deixava sem chefe algum, as promessas deste tão abertamente violadas, e sobretudo, ouvindo a voz da Pátria que os chamava em sua defesa, reunida em casa do Ajudante D. Pedro Carrión, e tendo reconhecido o documento de comissão do sr. Vargas, resolveu imediatamente e sem vacilar que se marchasse para a Espanha a todo o custo. Mandou-se tocar a ordem [de marcha], tomou-se a bandeira, formou-se o batalhão, e comunicada aos soldados a resolução dos oficiais, às vozes a Pátria chama-nos, vamos voando a socorrê-la, empreendeu-se às 8 horas da manhã a marcha militar.
A oficialidade carecia de equipagens, que tinham ficado em Setúbal, e a tropa de víveres para se alimentar, de fundos para comprá-los, e de munições para defender-se contra as forças superiores, tanto de cavalaria como de artilharia, que tão próximas tínhamos. Obrigados pois a não entrar em povoação para melhor ocultar a nossa marcha, a passar o Guadiana a nado, a caminhar por desvios 40 léguas em quatro dias, e a sofrer neles todo o tipo de incómodos, juntos aos horrores da fome, parece impossível termos efectuado a nossa marcha num caminho onde cada passo era um risco. Mas o patriotismo deste corpo, que tinha jurado concorrer à defesa da pátria ou morrer, fez-lhe arrostrar com esforço e alegria tão terríveis perigos. 
No dia 14 entrámos nesta povoação, e mal se revigore a tropa e esteja capaz de continuar a sua viagem, continuaremos a nossa marcha a essa capital.
Deus guarde a Vossa Alteza Sereníssima muitos anos.
Paymogo, 15 de Junho de 1808.

Josef [sicBonicelli


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Nota: 
Ver ainda a este respeito a Relação da marcha do Regimento de Múrcia em 1808, de Portugal à Espanha, texto manuscrito de Francisco Paula Figueras.

Carta do Comandante em Chefe do exército inglês a Sir Arthur Wellesley, sobre o exército que seria posteriormente enviado para a Península (14 de Junho de 1808)



Horse Guards, 14 de Junho de 1808


Senhor, 
Como Sua Majestade vos nomeou com satisfação para o comando dum destacamento do seu exército, para ser empregue numa missão confidencial, tenho a desejar que assumireis o comando desta força quanto antes, para pôr em execução aquelas instruções que recebereis dos ministros de Sua Majestade. 
A força que Sua Majestade vos pôs com agrado debaixo do vosso comando consiste nos seguintes corpos:




Artilharia Real


Corpo do Real Estado-Maior
1 Destacamento

29.º Regimento de Infantaria a pé
1.º Batalhão

32.º Regimento de Infantaria a pé
1.º Batalhão
Com o Major General Spencer
50.º Regimento de Infantaria a pé
1.º Batalhão

82.º Regimento de Infantaria a pé
1.º Batalhão





5.º Regimento de Infantaria a pé
1.º Batalhão

9.º Regimento de Infantaria a pé
1.º Batalhão

38.º Regimento de Infantaria a pé
1.º Batalhão
Para partirem de Cork
40.º Regimento de Infantaria a pé
1.º Batalhão

60.º Regimento de Infantaria a pé
5.º Batalhão

71.º Regimento de Infantaria a pé
1.º Batalhão

91.º Regimento de Infantaria a pé
1.º Batalhão

95.º Regimento de Infantaria a pé
4 Companhias

4.º Regimento Real de Veteranos
1 Batalhão





E o Estado-Maior nomeado para esta força é composto pelos que se seguem: 

Major General Spencer 
Major General Hills 
Major General Ferguson 
Brigadeiro General Nightingall 
Brigadeiro General Fane 
Brigadeiro General Catlin Crauford 

Corresponder-te-eis comigo sobre todos os assuntos relacionados com o vosso comando, e comunicar-me-eis regularmente todas as operações militares nas quais vos ocupardes, notificando-me de quaisquer vacâncias que possam ocorrer nas tropas debaixo do vosso comando; e como não fostes investido com o poder para nomear comissões, recomendar-me-ás aqueles oficiais que vos possam parecer como mais meritórios para serem promovidos […]. 
Transmitireis, mensalmente, relações das tropas sob o vosso comando à Secretaria da Guerra e ao Ajudante General, para meu conhecimento; e cumprireis estritamente os regulamentos de Sua Majestade em relação ao pagamento, vestuário e contratação das tropas; e devereis prestar especial atenção na sua disciplina e na economia interior dos diferentes corpos, que é tão essencial, não só para o conforto do soldado, mas para se preservar a sua saúde, perante qualquer mudança do clima à qual ele se possa expor. […] 
É particularmente desejável que se ordene ao oficial e chefe do Estado Maior do Quartel-Mestre General para que mantenha um diário, ou outro memorando, descritivo das movimentações das tropas e ocorrências nas quais elas estejam envolvidas; como também que se devem fazer e coligir mapas dos portos, posições e praças-fortes nas quais as tropas possam estar, com o objectivo de me serem transmitidos e apresentados no depósito militar. 
Em qualquer ponto em que se levantar alguma questão ou dúvida, e sobre o qual possais estar desejoso de receber mais e melhores instruções específicas, encontrar-me-eis sempre disposto a prestar a mais rápida atenção às vossas representações. 
Sou, etc. 

Frederick, Comandante em Chefe 


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Nota: 

Wellesley encontrava-se nesta época em Dublin, onde viria a receber esta carta no dia 23 de Junho. Daí partiria para Cork no dia 6 de Julho, para se reunir com as tropas acima mencionadas, que embarcariam posteriormente com destino à Península Ibérica (note-se que, por enquanto, o destino destas forças era secreto). O corpo comandado pelo General Spencer, como atrás vimos, estava nesta altura entre o porto de Cádis e a foz do Guadiana.

Notícias publicadas na Gazeta de Lisboa (14 de Junho de 1808)



Lisboa, 14 de Junho 


As notícias circunstanciadas que recebemos do Porto contribuem para aumentar mais o desprezo que inspira o infame procedimento do Tenente-General Belestá para com o General Quesnel: ele mesmo foi quem, como um insolente cabo de esbirros, se dirigiu a lançar mão do seu chefe, enquanto este descansava confiadamente na Guarda espanhola que tinha à sua porta! 
O Corregedor mor mr. Taboureau foi preso do mesmo modo, sem que a estima que ele soubera inspirar aos habitantes do Porto o pudesse livrar das violências daquele mesmo General espanhol que, poucos dias antes, assistira, por convite seu, a um festim brilhante dado em sua casa! 
Os espanhóis eram mais de quatro mil; e por tal modo se contava com a sua lealdade, que não havia no Porto e seus arredores trinta soldados franceses! 
Enquanto ao mais, o comportamento dos habitantes do Porto naquela desgraçada circunstância foi tal qual devia ser. Sem meios de defesa contra as violências de soldados espanhóis em revolta, fizeram eles a favor do mui pequeno número de franceses que tinham dentro da sua cidade o que lhes foi possível; dando asilo a todos aqueles que puderam esquivar-se à primeira surpresa para lho ir pedir; e desde a partida dos espanhóis tem constantemente reinado no Porto a mais profunda tranquilidade. Um bergatim inglês, que julgava poder tirar partido daquela crise e das inteligências que com ele tinha o Tenente-General Belestá, debalde se apresentou para entrar em conferência parlamentária; porquanto teve logo de afastar-se, por não ser metido a pique pelos fortes. 
O mesmo bom espírito que faz honra aos habitantes do Porto se tem manifestado em todo o caminho seguido pelos espanhóis na sua fugida para voltar à Galiza, aonde os chamava uma Junta de facciosos anárquicos que Belestá fingiu olhar como seu Governo! Nem um só português tomou parte na sedição ou nos excessos dos espanhóis, cujo passo foi assinalado por exacções e pilhagens. 
O norte deste Reino está bem persuadido da felicidade que tem em se ver livre daqueles espanhóis, que, ainda que não tivessem feito mais que mostrar-lhe o jugo, num momento de esperanças delirantes sobre a posse de Portugal provaram a toda a gente sensata o quanto o dito jugo, cujo peso bem se conhece neste país, se faria nele grave, se alguma circunstância pudesse jamais confundir [=misturar] duas nações tão incompatíveis nos seus interesses como nos seus hábitos e nas suas opiniões. 

O desarmamento dos espanhóis prescrito pelo indigno modo de proceder dos seus chefes no Porto, se executou no mesmo dia, não só em Lisboa, mas também em todas as praças dos contornos; e foi tão bem combinado, que se fez por toda a parte, à mesma hora, sem que excitasse a menor resistência, nem a mais leve perturbação. Os oficiais são tratados, por ordem do Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Duque de Abrantes, com toda a atenção, consentindo-se que fiquem livres debaixo da sua palavra de honra de se não retirarem, nem intrometerem em coisa alguma. Os soldados estão a bordo de navios desarmados, onde recebem a sua ração e soldo, segundo o costume. 

Por notícias de Espanha consta que o General Dupont chegou a Córdova, na Andaluzia, com um corpo de exército francês mui considerável, e que se ia aproximando a Sevilha a fim de sujeitar ali à razão alguns insolentes agitadores vendidos aos ingleses e por eles excitados. 

[Fonte: Gazeta de Lisboa, n.º 24, 14 de Junho de 1808].


Carta do Vice-Almirante Collingwood ao General Dalrymple, Governador de Gibraltar (14 de Junho de 1808)



Ocean, na barra de Cádis, 14 de Junho de 1808


Meu caro Senhor:

Recebi o obséquio das vossas cartas dos passados dias 11 e 12, informando-me a primeira da requisição que foi feita pelo General Castaños, e a outra incluindo a cópia duma carta do General Spencer.
Quando a vossa carta chegou, as tropas estavam prestes a partir para oeste, em direcção a Ayamonte, conforme a requisição que o governador espanhol fez ao General Spencer, um dia ou dois antes, para se encarar e prevenir a aproximação a Sevilha de um destacamento do exército francês, que se dizia estar a marchar de Portugal, pela costa.
Mandei parar os preparativos para partir, até que o General [Spencer] me informasse se a sua resolução era prosseguir como originalmente intencionava; e vereis na carta (que vai incluída) as razões que ele dava para que o seu plano não fosse alterado; e o Coronel Bathurst, portador da dita carta, ponderou melhor nas prováveis consequências de se tomar uma posição em Jerez; sobretudo que, perante qualquer desastre do exército espanhol, que tornaria necessário que o mesmo tivesse de ser reforçado, os ingleses seriam indubitavelmente chamados para acudir, tendo que se empregar completamente no serviço de campo, para o qual não estavam perfeitamente munidos, e se qualquer coisa acontecesse, o nosso exército associar-se-ia ao dos espanhóis; o que se desviava da linha que tinha sido dirigida pelas instruções dos ministros de Sua Majestade.
Senti que ele demonstrava um certo grau de frieza e até um pouco de ressentimento sempre que se fazia alguma menção ou alusão a colocarmos uma guarnição de tropas em Cádis; e creio que a única causa disto foi a aparição das tropas [espanholas] perante o porto, e a solicitação que foi feita ao pilotos para levarem os navios para dentro do abrigo do porto; e muito suspeito que a solicitação feita ao General Spencer para se dirigir com o seu corpo para Ayamonte foi mais com o objectivo de removê-los de diante de Cádis do que devido a algum receio do inimigo que eles tivessem naquela parte; pois dois deputados (um membro da Junta Supremo [de Sevilha] e um Contra-Almirante) que ontem foram enviados até aqui, informaram-me que as notícias que eles têm daquela parte eram vagas – elas vinham de uma zona suspeita – , e que eles próprios não acreditavam que os franceses estavam avançado, como se dizia. Se este for o caso, pergunto-vos, no caso das tropas de Spencer não acharem nada para ocupar o seu serviço, se não estariam melhor em Gibraltar, até que se determinasse a que ponto se devem dirigir; pois pairando sobre a costa, consumirão as suas provisões e água, e possivelmente, quando se quiser que partam, tenham que regressar a um porto para se abastecerem.
Havendo munido e apetrechado completamente as suas baterias, os espanhóis começar a abrir fogo sobre os navios franceses, que se renderam esta manhã, e que estão agora debaixo das cores espanholas; houve muito cuidado para não os danificar, o que os espanhóis dizem que foi feito para os preservar em condições de irem para a América, se fosse necessário.
Os vossos ofícios que trouxe partiram ontem para a Inglaterra na chalupa Alphea; e hoje espero os deputados para a Corte de Londres que irão no Alceste. Sendo o almirante um deles, não era conveniente que ele fosse antes dos navios franceses se renderem.
Tenho a honra de ser,
Caro Senhor,
Com a maior estima e consideração,
O vosso fiel e mais obediente servo,

Collingwood

[PS:] Tudo o que os espanhóis propõem é “por mañana” [sic], mas acabei de ser informado que os plenipotenciários não estarão preparados [para partir para a Inglaterra] antes de dois dias.

[Fonte: Memoir, written by General Sir Hew Dalrymple, Bart., of his proceedings as connected with the affairs of Spain, and the commencement of the Peninsular War, London, Thomas and William Bone Strand., 1830, pp. 227-229]. 


O aparecimento da esquadra inglesa junto à foz do rio Guadiana



Ao mesmo tempo que ultimavam os preparativos em Cádis para o ataque à esquadra francesa de Rosilyos espanhóis tomaram conhecimento de que uma divisão francesa surgira em Castro Marim, junto à fronteira do Guadiana. Ainda que suspeitasse que estes militares não ousariam passar o rio, a Junta Suprema de Sevilha decidiu tomar medidas preventivas, pelo menos desde o dia 8 de Junho, enviando reforços e armamento para Ayamonte [Cf. Gazeta Ministerial de Sevilla, n.º 3, 8 de junio de 1808, Imprenta de la viuda de Hidalgo y Sobrino, pp. 22-23. Recorde-se ainda a carta de Dupont interceptada pelos espanhóis]. Idêntica preocupação também teve o novo Governador de Cádis, o General D. Tomás de Morla, que pôs imediatamente ao corrente desta notícia os oficiais ingleses que se encontravam a bordo das embarcações que bloqueavam o porto daquela cidade. Assim, logo no dia 10, pelo menos uma embarcação de guerra inglesa saiu de Cádis e rumou em direcção à boca do rio Guadiana, sendo seguida nos dias posteriores por várias outras [Cf. “Précis of letters from Major-General Spencer, relating to Spain and Portugal”, in Correspondence, despatches, and other papers, of Viscount Castlereagh, second Marquess of Londonderry – Volume VIILondon, William Shoberl Publisher, 1851, p. 153]. Segundo o diário militar de um dos militares que participou nesta expedição, o Coronel Charles Leslie, o objectivo da manobra era “fazer uma demonstração contra os franceses e cobrir e proteger a insurreição espanhola pela liberdade que tinha acabado de estalar em Ayamonte, para esta não ser obstruída ou subjugada pelas forças que estavam na vizinhança portuguesa” [Fonte: Military Journal of Colonel Leslie, K.H., of Balquhain, whilst serving with the 29th Regt. in the Peninsula and the 60th Rifles in Canada, &c. – 1807-1832, Aberdeen, Aberdeen University Press, 1887, p. 25]. Ao mesmo tempo, Spencer (que continuava no bloqueio de Cádis) escrevia ao Governador da praça de Gibraltar, comentando-lhe que seria imprudente que a marinha britânica, com um corpo de 4 a 5.000 homens, se juntasse ao numeroso exército espanhol (que estava perfeitamente preparado para o campo de batalha), sem se saber previamente quais as operações que tinha tomado o General Castaños (comandante do referido exército), e ignorando igualmente os melhores meios de suprir o corpo inglês à medida que fosse sendo necessário. Ademais, Spencer mencionava que os espanhóis tinham receio do desembarque das suas tropas (não esqueçamos que até aí ambos os países eram inimigos, e portanto era natural que o receio fosse mútuo). Por tudo isto, seria mais útil empregar os seus meios fazendo manobras de diversão, e, se fossem avistados alguns soldados franceses querendo passar o Guadiana, frustar as suas intenções [“Précis of Correspondence from Sir Hew Dalrymple, relative to Spanish Affairs”, in Correspondence, despatches, and other papers, of Viscount Castlereagh, second Marquess of Londonderry – Volume VIILondon, William Shoberl Publisher, 1851, pp. 129-146, p. 140].
Assim foi feito. No dia 12, era a vez de Spencer partir para a boca do Guadiana (numa carta chega a escrever que estava “ansioso para navegar em direcção a Ayamonte, tão rápido quanto fosse possível”), mas ignoramos em que dia chegou (o mais tardar dois dias depois)[Cf. “Précis of letters from Major-General Spencer,relating to Spain and Portugal”, in Correspondence, despatches, and other papers, of Viscount Castlereagh, second Marquess of Londonderry – Volume VIILondon, William Shoberl Publisher, 1851, p. 153. A citação provém duma carta de Spencer datada de 12 de Junho destinada a Lord Collingwood, e por sua vez reenviada a Dalrymple, publicada nos apêndices da obra Memoir, written by General Sir Hew Dalrymple, Bart., of his proceedings as connected with the affairs of Spain, and the commencement of the Peninsular War, London, Thomas and William Bone, 1830, p. 229]. Por outro lado, sabemos a forma como o Coronel Leslie alcançou o mesmo destino no dia 14. Segundo o seu diário, as tropas britânicas tinham necessidade de provisões frescas e, para esse fim, cada navio britânico enviou uma lancha à terra, sendo uma destes chefiada por ele próprio. Contudo, segundo Leslie, a tripulação, ignorante da geografia local, “não estava consciente de que a boca do Guadiana era composta por vários canais e que o inimigo estava na posse do canal português; entrámos pelo canal principal. Passando uma bateria que controlava a sua entrada, fomos desafiados, mas ignorando-a, prosseguimos e em breve entrámos num canal no lado espanhol, pelo qual alcançámos Ayamonte. Só então compreendi que me tinha livrado de ter sido aprisionado, pois a bateria que tínhamos passado era ocupada pelo inimigo. Os outros barcos [ingleses] tinham entrado por um canal no território espanhol. Fomos os primeiros ingleses que desembarcaram na Espanha desde o levantamento da causa patriótica, sendo recebidos com as mais entusiásticas manifestações de alegria pelos habitantes”. Leslie, exaltando o patriotismo vivido então em Ayamonte, refere que “se tinham reunido na cidade camponeses armados de todas as idades, dos dezassete aos sessenta anos, ansiosos para se envolverem na causa patriótica […]. Armaram-se com qualquer arma que tinham à mão: alguns mosquetes e armas de caça, algumas lanças ou varas com baionetas velhas na ponta, e muitos forcados”. No dia seguinte (15 de Junho), os militares ingleses voltaram aos seus navios, não sem antes se terem reunido com o governador de Ayamonte. Leslie refere ainda que o mercado da pequena cidade já era escasso para abastecer o grande número de patriotas espanhóis que ali se tinham reunido, de maneira que os ingleses apenas puderam aprovisionar alguns vegetais, fruta e pão [Fonte: Military Journal of Colonel Leslie, K.H., of Balquhain, whilst serving with the 29th Regt. in the Peninsula and the 60th Rifles in Canada, &c. – 1807-1832, Aberdeen, Aberdeen University Press, 1887, pp. 25-26]

Apesar do Coronel Leslie não referir para onde se dirigiram então, sabemos que no dia 16, se não mesmo antes, pelo menos alguns navios desta esquadra boiavam junto ao pequeno porto da Isla Cristina (então denominada Figuereta, Figuerita, Higuerita ou Higuereta), possivelmente em busca de víveres. De facto, logo no dia 16, alguns dos olhanenses que se rebelaram contra os franceses dirigiram-se precisamente a este local em busca de auxílio, mas os ingleses perguntaram-lhes precisamente se eles tinham víveres que lhes pudessem fornecer... Na verdade, as embarcações britânicas sofriam grande carência de provisões frescas, facto que foi registado por vários oficiais ingleses na correspondência que então iam trocando (veja-se a bibliografia citada). Infelizmente, de acordo com o arquivista Pedro Romero Rodríguez, funcionário do Archivo Municipal de Isla Cristina, a quem aproveitamos para agradecer publicamente pela resposta que atenciosamente nos deu, não existe nesse arquivo qualquer documentação que faça referência a embarcações inglesas ancoradas perto do antigo porto daquela localidade, durante o período assinalado. De facto, as únicas referências conhecidas que falam na esquadra inglesa ancorada perto da Figuerita derivam de três memórias de três portugueses: João da Rosa, José Lopes de Sousa e Joaquim Filipe Landerset.

Um parêntesis: suspeitamos que era precisamente a este porto que Napoleão se referia numa carta ao seu cunhado Murat, datada de 25 de Maio, onde dava conta da existência, “entre o Algarve e Cádis, dum pequeno porto donde é facílimo fazer partir avisos para a América. Pequenas embarcações dificilmente partirão de Cádis, que é como um funil; pelo contrário, sairão mais facilmente de um pequeno lugar” [Fonte: Correspondance de Napoléon Ier – Tome XVII, Paris, Imprimerie Impériale, 1864, p. 202 (n.º 13988)]. Napoleão tinha razão em alertar Murat sobre este facto, pois uma das primeiras medidas ditadas pela Junta Suprema de Sevilha (formada apenas dois dias depois de ter sido escrita a citada carta) foi precisamente o envio de embarcações espanholas com destino às colónias americanas (como fica patente numa carta de Collingwood), com o objectivo de avisá-las que o país se tinha insurgido contra os franceses e de pedir-lhes auxílio monetário e bélico.

Mapa da desembocadura do rio Guadiana (1845)

1. Castro Marim
2. Vila Real de Santo António
3. Ayamonte
4. Isla Cristina (antiga Figuerita)


No dia 14 de Junho, a esquadra francesa ancorada em Cádis rendia-se incondicionalmente aos espanhóis. Finalmente, as restantes embarcações que continuaram a bloquear aquele porto encontravam-se agora completamente livres para se poderem reunir na foz do Guadiana, para onde continuaram a se dirigir nesse e nos dias seguintes. Ainda que os oficiais ingleses sejam os primeiros a assumir que não tinham a intenção de desembarcarem as suas tropas (sobretudo devido aos fracos recursos que possuíam), estas manobras de diversão acabarão por alarmar os franceses que se encontravam no lado português, provocando directa ou indirectamente as consequências que mais adiante veremos.  


A rendição incondicional da esquadra de Rosily em Cádis (14 de Junho de 1808)




A esquadra britânica bloqueando o porto de Cádis


Em Outubro de 1805, o Almirante Pierre Villeneuve, comandante de 18 navios de guerra franceses ancorados em Cádis, recebeu uma carta do seu Governo, através da qual era informado que ia ser destituído do seu posto, pois Napoleão não estava nada satisfeito com o facto dele não conseguir furar o bloqueio que alguns navios britânicos faziam àquele importante porto. Pressionado desta forma, e antecipando a chegada do Vice-Almirante Rosily (que o ia substituir), Villeneuve decidiu sair de Cádis, acompanhado por outros 15 navios espanhóis. Contudo, o tiro saiu-lhe pela culatra, devido à estratégia naval do Almirante inglês Horatio Nelson, que embargou as movimentações das embarcações inimigas, executando um fulminante ataque, no dia 21 do mesmo mês. Entre embarcações apresadas, afundadas e explodidas, somente 11 navios aliados (5 franceses e 6 espanhóis) e algumas fragatas conseguiram regressar à Cádis. Rosily, ao chegar a esta cidade poucos dias depois da batalha de Trafalgar (como ficou conhecido este episódio), deparou-se com um triste cenário... Desde então, Rosily ficou com os seus cinco navios e uma fragata naquele mesmo porto, igualmente sem os conseguir retirar, pois a esquadra britânica, comandada (depois da morte de Nelson na referida batalha) pelo Vice-Almirante Collingwood, persistia no seu bloqueio a Cádis. 


Fonte: Wikipedia


Vista de Cádis e arredores


Quando o povo espanhol começa a manifestar-se contra os franceses, no início de Maio de 1808, Collingwood encontrava-se temporariamente afastado de Cádis, comandando o bloqueio do porto de Toulon (onde estavam ancorados 12 navios franceses). Não obstante estas movimentações, o porto de Cádis continuou a ser bloqueado por 12 embarcações britânicas, que eram agora comandadas pelo Contra-Almirante Purvis (Collingwood, sabendo das acções que mais abaixo se descrevem, regressaria a Cádis no dia 11 de Junho seguinte). A 14 de Maio, depois de conversações com a Junta de Sevilha, o Governador de Gibraltar (General Hew Dalrymple) envia o General Spencer (juntamente com 4 a 5 mil soldados), que estava estacionado naquela praça desde o final de Janeiro daquele ano, ao encontro da esquadra britânica em Cádis, com o fim de cooperar com os espanhóis em caso necessário. Poucos dias depois de ali chegar, Spencer manda publicar na cidade (provavelmente através de pescadores) alguns exemplares duma proclamação sua, onde propunha a união e cooperação entre espanhóis e ingleses contra os franceses. Apesar da oferta ter soado bem aos ouvidos do povo da cidade, as autoridades demoraram em dar uma resposta formal. O Governador de Cádis, que acumulava ao mesmo tempo, e entre outros, os cargos de Governador e Capitão General do exército e da província da Andaluzia, era nada menos que o Marquês del Socorro, o nosso conhecido General Solano, que como vimos recebera ordens em meados de Fevereiro anterior para regressar à Espanha. Parece que Solano queria atacar as embarcações francesas, mas faltava-lhe a pólvora necessária para empreender um ataque satisfatório. Com os ânimos populares já exaltados pelo facto das autoridades de Cádis não tentarem apresar ou destruir os navios franceses, finalmente, na noite do dia 29 de Maio, depois de se reunir com outros Generais espanhóis, Solano decide ordenar a publicação dum edital onde repudiava a ideia de uma aventurada declaração de guerra à França. Ao amanhecer do dia seguinte, os populares vêm a proclamação e dirigem-se imediatamente à casa de Solano. Este, querendo acalmá-los, aponta para a esquadra inglesa que se vê ancorada no horizonte, e indica-lhes que ali estavam os verdadeiros inimigos de Espanha. Supondo-o partidário dos franceses, o povo enraivecido não lhe perdoa e invade os seus aposentos, levando-o preso. No meio do tumulto, a caminho da forca, Solano morreu assassinado, atravessado por uma espada (Solano não foi a única vítima deste tipo de tumultos, que ocorreram um pouco por toda a Espanha - e seguidamente em Portugal. Curiosamente, longe dali e mais ou menos à mesma hora que Solano era assassinado, o Comandante General da província espanhola da Extramadura, o Conde de la Torre del Fresno, também morria às mãos dos populares de Badajoz).

Ainda no dia 29, depois de vários dias sem obter resposta alguma das autoridades de Cádis, Spencer escrevia uma carta ao Secretário de Estado da Guerra da Grã-Bretanha (Visconde Castlereagh), anunciando-lhe que a nobreza e o Governador daquela cidade pareciam “preferir a segurança e a submissão aos perigos duma resistência honrosa” [Fonte: “Précis of Letters from Major-General Spencer, relative to Spanish Affairs”, in Correspondence, despatches, and other papers, of Viscount Castlereagh, second Marquess of Londonderry – Volume VII, London, William Shoberl Publisher, 1851, pp. 146-157, p. 148]. Perante tal cenário, Spencer preparava-se no dia 30 para regressar à praça de Gibraltar, quando recebe a bordo da sua embarcação uma visita inesperada de dois enviados da Junta de Sevilha,  perguntando-lhe se continuava viável a proposta de acordo que tinha sido tornada pública. Foi assim que Spencer tomou conhecimento de que Solano acabava de ser assassinado, e que, na sequência do tumulto, criara-se em Cádis uma Junta que reconhecia a de Sevilha como Suprema. Depois de várias horas de conversações, chegou-se a um consenso, que foi formalizado no dia seguinte. Os espanhóis rejeitaram o auxílio das embarcações inglesas, pois queriam apresar para si as embarcações francesas. Por outro lado, não nos podemos esquecer que, até aí, espanhóis e ingleses eram inimigos, pelo que ainda continuava a haver algum receio de ambas as partes. Assim, ficou acordado que os ingleses manter-se-iam nas suas embarcações, continuando a bloquear a baía da cidade, mas só dariam assistência em caso estritamente necessário. O que realmente fazia falta aos espanhóis era pólvora (motivo pelo qual, como dissemos, Solano não tinha determinado o ataque aos navios franceses), a qual foi cedida pelos ingleses na quantidade de 400 quilos



Vista aérea de Cádis



Entretanto, antes ainda da revolta espanhola se ter alastrado a Cádis, Rosily, esperando o reforço do corpo comandado pelo General Dupont e prevendo já um eventual rompimento das relações com a Espanha por parte de Napoleão, tinha disposto as suas embarcações entrelinhadas com as espanholas, a fim de se prevenir contra um eventual ataque directo das baterias e fortificações costeiras. Contudo, no dia 30 de Maio (já depois da morte de Solano), sob o pretexto de festejar o dia de San Fernando, onomástico do monarca D. Fernando VII, as embarcações espanholas separam-se das francesas com o consentimento de Rosily, enquanto se começam a preparar as fortificações costeiras e a construir várias baterias terrestres, bem como a artilhar várias lanchas (é caso para se notar que somente um navio espanhol estava em condições de empreender um ataque bem sucedido). Vendo-se cercado por todos os lados e sem poder sair da barra devido ao bloqueio inglês, Rosily decide posicionar a sua esquadra bem dentro da baía de Cádis (numa zona conhecida por Poza de Santa Isabel), no dia 6 de Junho, ou seja, no mesmo dia em que a Junta de Sevilha declara formalmente guerra a Napoleão
Finalmente, no dia 9 de Junho, depois de ultimados todos os preparativos para o ataque, o novo Governador de Cádis (General D. Tomás de Morla) escreve a Rosily, intimando-o a render a sua esquadra e os seus homens:




Sr. Almirante:
A nação espanhola, religiosa, amante dos seus Soberanos, fiel e leal a eles, e sempre valorosa com honra, não pôde ver sem se irritar a perfídia com que a França se apoderou do nosso amado monarca [Fernando VII] sem guerra declarada, e com aparência de cordial amizade. 
A sua insurreição foi geral por todas as províncias, que se declararam mais ou menos prontamente, com muito pouca diferença de dias. Em Sevilha, capital da Andaluzia, erigiu-se uma Junta Suprema de Governo, à qual obedecemos. Esta não pode ver com indiferença que, enquanto as tropas da nação francesa já agem hostilmente nas nossas povoações, esteja neste porto armada e arvorando o pavilhão francês a esquadra comandada por Vossa Excelência. Em consequência, a Junta ordenou-me a intimar Vossa Excelência a render-se imediatamente, e, em caso contrário, a empregar todos os meios que dita a arte e que estão em meu poder para bater a esquadra até que se renda.
Para este efeito dou a Vossa Excelência duas horas para que se resolva a render-se; mas negando-se a fazê-lo depois desse tempo, ou se o ver fazer qualquer movimento, abrirei fogo de bombas e balas rasas (que serão incendiárias se Vossa Excelência se obstinar); atacará a esquadra espanhola e também as forças subtis. Por último, a esquadra inglesa estará na boca do porto para que não lhe reste o menor recurso.
A efusão de sangue é sempre dolorosa a quem tem sentimentos de humanidade; mas muito mais quando se derrama sem a menor esperança de sucesso, como não a pode ter Vossa Excelência. Para além disto, a vossa obstinação irritará muito mais o povo, e ainda que seja pouco o mal que nos possa fazer, não respondo pela sua vingança sobre inocentes vítimas [vivia em Cádis uma pequena colónia francesa]. Conheço a honra militar, e não seria capaz de intimar a Vossa Excelência (a quem pessoalmente estimo) algo contrário a ela. É certo que não a manchará rendendo-se; dado que Vossa Excelência não poderá ter o menor vislumbre de não ser destroçado, perdidas as suas embarcações, e não só a vida das suas tripulações, mas talvez também outras fora do campo de Marte.
Cádiz, 9 de Junho de 1808.
Tomás de Morla


Apesar da sua situação arriscada, Rosily nega render-se, adiantando na resposta ao ultimato de Morla que se a esquadra britânica não atacasse nem perseguisse as embarcações francesas por um período de quatro dias desde a sua saída, estas afastar-se-iam imediatamente das águas de Cádis. Em contra-resposta, o General Morla dá sinal para se começarem as hostilidades. Ao entardecer, depois de cinco horas de uma intensa troca mútua de fogo de artilharia, o combate cessa sem os franceses se renderem. 
Ao amanhecer do dia 10, recomeça o fogo da artilharia, embora com menor intensidade do que na tarde anterior. Por volta do meio-dia, os franceses hasteiam a bandeira de tréguas e Rosily envia um novo ofício a Morla, insistindo na sua postura anterior. A resposta de Morla não se faz esperar:

Peço a Vossa Excelência que reflexione sobre a inutilidade da sua resistência, e se persuada de que se não consente a rendição que lhe intimo pela segunda vez, usarei de todos os meios vigorosos que tenho para destruí-lo, responsabilizando Vossa Excelência por todos os prejuízos e desastres que se originem em consequência.


Na verdade, apesar desta resposta, os espanhóis mal dispunham de pólvora para um ataque em força, uma vez que a tinham gasto quase toda no primeiro dia do combate. Assim, Morla manteve os canhões silenciados à espera que os franceses tomassem a iniciativa, o que não voltou a ocorrer nesse dia 10. 
No dia seguinte, Rosily envia uma nova proposta: apesar de insistir em que o deixem sair de Cádiz com as suas embarcações e respectiva tripulação, adianta agora que cederia todo o seu armamento, que seria desembarcado na cidade. Vendo que os ânimos dos franceses começavam a fraquejar, Morla responde a Rosily que não estava capacitado para aceitar as condições sugeridas e que deve consultá-las com a Junta Suprema de Sevilha. Enquanto se espera pela resposta, os espanhóis aproveitam os dois dias seguintes para executarem ostensivamente (para enganar e induzir medo aos franceses) novas medidas de ataque, entre as quais o restabelecimento das posições danificadas e a instalação de uma bateria costeira de 30 canhões bem defronte dos navios inimigos. 
Finalmente, na manhã do dia 14, chega a Cádis a resposta da Junta de Sevilha, que nega a proposta de Rosily e oferece tão somente o respeito pelas vidas e equipagens dos rendidos. Depois de receber esta resposta, Rosily convoca os seus comandantes e, à vista da aparente inutilidade de resistir ao assédio, decide arrear a bandeira e render a esquadra. Ainda no mesmo dia, o General Morla torna público este facto através da seguinte proclamação:

Prevenções do Governo aos habitantes de Cádis



A esquadra francesa acaba de render-se à discrição, confiada na humanidade e na generosidade dos gaditanos, como já publiquei. As medidas que se tomaram libertaram a nossa esquadra do menor deterioro, e deixaram-na ilesa: mesmo nas forças que se empregaram não houve estragos consideráveis; e a efusão de sangue foi menor que a dum combate de duas embarcações pequenas: não houve mais que quatro mortos.

Ademais, os navios franceses e as suas munições e armas ficam ao nosso dispor; os seus prisioneiros servir-nos-ão de moeda de troca e como reféns. Nada disto se teria conseguido com os projectos pouco meditados e combinados de brulotes, balas incendiários e outros. Se não se tivessem tomado precauções que exigem tempo, a nossa mortandade teria sido considerável. Lisonjeio-me, pois, de ter correspondido à confiança destes habitantes, que tantas e tão repetidas provas me deram da sua estima, a que jamais o meu coração sensível poderá corresponder dignamente.

Mas agora peço, exijo e mando que cessem os rumores, que tudo entre na ordem: que se submeta cada um segundo a sua classe às Autoridades constituídas, que todas dependem da Suprema Junta [de Sevilha], sempre atenta ao bem geral e a procurar com a maior actividade alianças parciais e meios para o feliz êxito da nossa empresa; que se deixem reinar as leis, e se odeie a arbitrariedade. Escandaliza que o povo mais culto e urbano da terra exclame e queira a morte de um particular. Só o campo de Marte, onde se repele a força com a força, autoriza a ilegal efusão de sangue. Fora dele, até os próprios Soberanos não são donos da vida mais facínora; é nas leis que a foice tem a força que a faz obrar. Estas proíbem em todas as nações, mesmo nas mais bárbaras, as sedições, gritarias e tumultos; devemos obedecê-las e respeitá-las: é o único meio de esperar felizes êxitos e de não ofender nesta parte nem ao Deus dos Exércitos, nem ao Soberano cujos direitos sagrados jurámos defender.

Para não multiplicar escritos, dirijo-me agora aos franceses fixos ou residentes nesta cidade. A Junta Suprema teve uma consideração sem exemplo convosco, pois prestando juramento de fidelidade à nação espanhola, admite-vos no seu seio, e salva os vossos bens e propriedades; gratos a este grande benefício, não deveis ser víboras que destroem e mordem o seio que as abriga; pelo constrário, estais obrigados a mostrar a maior lealdade e estima a um Governo tão generoso; deste modo não só afastareis de vós o ódio destes habitantes urbanos, senão que atraireis o seu amor. De contrário, temei a sua justiça. Castigarei com rigor e sem a menor indulgência até as assembleias entre vós, as expressões e ditos desordeiros e contrários à nossa causa. Se algum insensato não a respeita pela sua razão e justiça, será a vítima do seu orgulho ou necessidade.

Cádis, 14 de Junho de 1808.

Morla



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Chegava assim ao fim o primeiro confronto bélico entre os espanhóis e os franceses (apesar da bibliografia sobre a chamada Guerra de la Independencia muitas vezes dar tal primazia à batalha de Bailén, ocorrida mais de um mês depois). Este episódio marca também o início do fim do Império de Napoleão, provando-se pela primeira vez que as suas tropas não eram invencíveis. Cerca de 3.600 soldados foram aprisionados, e como as embarcações francesas (5 navios e 1 fragata) tinham sido previamente apetrechadas para cinco meses, foi imensa a quantidade de material bélico apreendido: 442 canhões e outras 80 peças de artilharia, 1.651 quintais de pólvora, 1.429 espingardas, 1.069 baionetas, 50 carabinas, 505 pistolas, 1.096 sabres, 425 chuços, 101.568 balas, assim como a quase totalidade de munições para os canhões... A luta andaluza via-se agora mais aliviada e fortalecida do que nunca

Mais de um mês depois, Napoleão tomou conhecimento destes factos através de um periódico inglês. Apesar de anos mais tarde vir a reconhecer que a guerra da Espanha foi o seu maior erro, por enquanto Napoleão mantinha-se altivo e desconfiado da veracidade de tais notícias: numa carta que no dia 28 de Julho de 1808 enviou ao seu irmão José (que como vimos passara a ser rei de Espanha), escreveu ele que um jornal inglês diz que a minha esquadra foi bombardeada durante três dias pelos rebeldes em Cádis, que foi forçada a se render e que se encontra no mesmo porto. E logo repetia, desconfiado da sua autenticidade: isto é uma notícia inglesa... [Fonte: The Confidential Correspondence of Napoleon Bonaparte with His brother Joseph, sometime King of Spain – Volume I, ed. cit., pp. 338-339, p. 339 (n.º 408)].

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Bibliografia e websites consultados:





Miguel Aragón Fontenla, “La rendición de la escuadra de Rosily”, in XXXV Jornadas de Historia Marítima – La Marina en la Guerra de la Independencia I (Ciclo de Conferencias – Octubre 2007), Cuadernos Monográficos del Instituto de Historia y Cultura Naval, n.º 55, Madrid, 2007, 67-90, pp. 88-89; republicado in Revista General de Marina, vol. 255, Agosto-Septiembre de 2008, pp. 329-348.






La captura de la flota francesa en Cádiz y la evacuación de las tropas españolas en Zelanda en 1808, in Todo a babor.