terça-feira, 14 de junho de 2011

O aparecimento da esquadra inglesa junto à foz do rio Guadiana



Ao mesmo tempo que ultimavam os preparativos em Cádis para o ataque à esquadra francesa de Rosilyos espanhóis tomaram conhecimento de que uma divisão francesa surgira em Castro Marim, junto à fronteira do Guadiana. Ainda que suspeitasse que estes militares não ousariam passar o rio, a Junta Suprema de Sevilha decidiu tomar medidas preventivas, pelo menos desde o dia 8 de Junho, enviando reforços e armamento para Ayamonte [Cf. Gazeta Ministerial de Sevilla, n.º 3, 8 de junio de 1808, Imprenta de la viuda de Hidalgo y Sobrino, pp. 22-23. Recorde-se ainda a carta de Dupont interceptada pelos espanhóis]. Idêntica preocupação também teve o novo Governador de Cádis, o General D. Tomás de Morla, que pôs imediatamente ao corrente desta notícia os oficiais ingleses que se encontravam a bordo das embarcações que bloqueavam o porto daquela cidade. Assim, logo no dia 10, pelo menos uma embarcação de guerra inglesa saiu de Cádis e rumou em direcção à boca do rio Guadiana, sendo seguida nos dias posteriores por várias outras [Cf. “Précis of letters from Major-General Spencer, relating to Spain and Portugal”, in Correspondence, despatches, and other papers, of Viscount Castlereagh, second Marquess of Londonderry – Volume VIILondon, William Shoberl Publisher, 1851, p. 153]. Segundo o diário militar de um dos militares que participou nesta expedição, o Coronel Charles Leslie, o objectivo da manobra era “fazer uma demonstração contra os franceses e cobrir e proteger a insurreição espanhola pela liberdade que tinha acabado de estalar em Ayamonte, para esta não ser obstruída ou subjugada pelas forças que estavam na vizinhança portuguesa” [Fonte: Military Journal of Colonel Leslie, K.H., of Balquhain, whilst serving with the 29th Regt. in the Peninsula and the 60th Rifles in Canada, &c. – 1807-1832, Aberdeen, Aberdeen University Press, 1887, p. 25]. Ao mesmo tempo, Spencer (que continuava no bloqueio de Cádis) escrevia ao Governador da praça de Gibraltar, comentando-lhe que seria imprudente que a marinha britânica, com um corpo de 4 a 5.000 homens, se juntasse ao numeroso exército espanhol (que estava perfeitamente preparado para o campo de batalha), sem se saber previamente quais as operações que tinha tomado o General Castaños (comandante do referido exército), e ignorando igualmente os melhores meios de suprir o corpo inglês à medida que fosse sendo necessário. Ademais, Spencer mencionava que os espanhóis tinham receio do desembarque das suas tropas (não esqueçamos que até aí ambos os países eram inimigos, e portanto era natural que o receio fosse mútuo). Por tudo isto, seria mais útil empregar os seus meios fazendo manobras de diversão, e, se fossem avistados alguns soldados franceses querendo passar o Guadiana, frustar as suas intenções [“Précis of Correspondence from Sir Hew Dalrymple, relative to Spanish Affairs”, in Correspondence, despatches, and other papers, of Viscount Castlereagh, second Marquess of Londonderry – Volume VIILondon, William Shoberl Publisher, 1851, pp. 129-146, p. 140].
Assim foi feito. No dia 12, era a vez de Spencer partir para a boca do Guadiana (numa carta chega a escrever que estava “ansioso para navegar em direcção a Ayamonte, tão rápido quanto fosse possível”), mas ignoramos em que dia chegou (o mais tardar dois dias depois)[Cf. “Précis of letters from Major-General Spencer,relating to Spain and Portugal”, in Correspondence, despatches, and other papers, of Viscount Castlereagh, second Marquess of Londonderry – Volume VIILondon, William Shoberl Publisher, 1851, p. 153. A citação provém duma carta de Spencer datada de 12 de Junho destinada a Lord Collingwood, e por sua vez reenviada a Dalrymple, publicada nos apêndices da obra Memoir, written by General Sir Hew Dalrymple, Bart., of his proceedings as connected with the affairs of Spain, and the commencement of the Peninsular War, London, Thomas and William Bone, 1830, p. 229]. Por outro lado, sabemos a forma como o Coronel Leslie alcançou o mesmo destino no dia 14. Segundo o seu diário, as tropas britânicas tinham necessidade de provisões frescas e, para esse fim, cada navio britânico enviou uma lancha à terra, sendo uma destes chefiada por ele próprio. Contudo, segundo Leslie, a tripulação, ignorante da geografia local, “não estava consciente de que a boca do Guadiana era composta por vários canais e que o inimigo estava na posse do canal português; entrámos pelo canal principal. Passando uma bateria que controlava a sua entrada, fomos desafiados, mas ignorando-a, prosseguimos e em breve entrámos num canal no lado espanhol, pelo qual alcançámos Ayamonte. Só então compreendi que me tinha livrado de ter sido aprisionado, pois a bateria que tínhamos passado era ocupada pelo inimigo. Os outros barcos [ingleses] tinham entrado por um canal no território espanhol. Fomos os primeiros ingleses que desembarcaram na Espanha desde o levantamento da causa patriótica, sendo recebidos com as mais entusiásticas manifestações de alegria pelos habitantes”. Leslie, exaltando o patriotismo vivido então em Ayamonte, refere que “se tinham reunido na cidade camponeses armados de todas as idades, dos dezassete aos sessenta anos, ansiosos para se envolverem na causa patriótica […]. Armaram-se com qualquer arma que tinham à mão: alguns mosquetes e armas de caça, algumas lanças ou varas com baionetas velhas na ponta, e muitos forcados”. No dia seguinte (15 de Junho), os militares ingleses voltaram aos seus navios, não sem antes se terem reunido com o governador de Ayamonte. Leslie refere ainda que o mercado da pequena cidade já era escasso para abastecer o grande número de patriotas espanhóis que ali se tinham reunido, de maneira que os ingleses apenas puderam aprovisionar alguns vegetais, fruta e pão [Fonte: Military Journal of Colonel Leslie, K.H., of Balquhain, whilst serving with the 29th Regt. in the Peninsula and the 60th Rifles in Canada, &c. – 1807-1832, Aberdeen, Aberdeen University Press, 1887, pp. 25-26]

Apesar do Coronel Leslie não referir para onde se dirigiram então, sabemos que no dia 16, se não mesmo antes, pelo menos alguns navios desta esquadra boiavam junto ao pequeno porto da Isla Cristina (então denominada Figuereta, Figuerita, Higuerita ou Higuereta), possivelmente em busca de víveres. De facto, logo no dia 16, alguns dos olhanenses que se rebelaram contra os franceses dirigiram-se precisamente a este local em busca de auxílio, mas os ingleses perguntaram-lhes precisamente se eles tinham víveres que lhes pudessem fornecer... Na verdade, as embarcações britânicas sofriam grande carência de provisões frescas, facto que foi registado por vários oficiais ingleses na correspondência que então iam trocando (veja-se a bibliografia citada). Infelizmente, de acordo com o arquivista Pedro Romero Rodríguez, funcionário do Archivo Municipal de Isla Cristina, a quem aproveitamos para agradecer publicamente pela resposta que atenciosamente nos deu, não existe nesse arquivo qualquer documentação que faça referência a embarcações inglesas ancoradas perto do antigo porto daquela localidade, durante o período assinalado. De facto, as únicas referências conhecidas que falam na esquadra inglesa ancorada perto da Figuerita derivam de três memórias de três portugueses: João da Rosa, José Lopes de Sousa e Joaquim Filipe Landerset.

Um parêntesis: suspeitamos que era precisamente a este porto que Napoleão se referia numa carta ao seu cunhado Murat, datada de 25 de Maio, onde dava conta da existência, “entre o Algarve e Cádis, dum pequeno porto donde é facílimo fazer partir avisos para a América. Pequenas embarcações dificilmente partirão de Cádis, que é como um funil; pelo contrário, sairão mais facilmente de um pequeno lugar” [Fonte: Correspondance de Napoléon Ier – Tome XVII, Paris, Imprimerie Impériale, 1864, p. 202 (n.º 13988)]. Napoleão tinha razão em alertar Murat sobre este facto, pois uma das primeiras medidas ditadas pela Junta Suprema de Sevilha (formada apenas dois dias depois de ter sido escrita a citada carta) foi precisamente o envio de embarcações espanholas com destino às colónias americanas (como fica patente numa carta de Collingwood), com o objectivo de avisá-las que o país se tinha insurgido contra os franceses e de pedir-lhes auxílio monetário e bélico.

Mapa da desembocadura do rio Guadiana (1845)

1. Castro Marim
2. Vila Real de Santo António
3. Ayamonte
4. Isla Cristina (antiga Figuerita)


No dia 14 de Junho, a esquadra francesa ancorada em Cádis rendia-se incondicionalmente aos espanhóis. Finalmente, as restantes embarcações que continuaram a bloquear aquele porto encontravam-se agora completamente livres para se poderem reunir na foz do Guadiana, para onde continuaram a se dirigir nesse e nos dias seguintes. Ainda que os oficiais ingleses sejam os primeiros a assumir que não tinham a intenção de desembarcarem as suas tropas (sobretudo devido aos fracos recursos que possuíam), estas manobras de diversão acabarão por alarmar os franceses que se encontravam no lado português, provocando directa ou indirectamente as consequências que mais adiante veremos.