quinta-feira, 16 de junho de 2011

Lembrança para ficar na memória dos valorosos marítimos deste Lugar de Olhão, do que fizeram na restauração de Portugal e seu princípio, por João da Rosa



Lembrança para ficar na memória dos valorosos Marítimos deste Lugar de Olhão, do que fizeram na Restauração de Portugal e seu princípio. Casos sucedidos sobre o levantamento que este povo fez contra a nação francesa e como este Lugar de Olhão foi a primeira terra que se levantou no Reino de Portugal. E recomendamos muito a todos os nobres marítimos que sempre sejam muito leais valorosos vassalos a Sua Majestade, assim como eles foram em casos tais. Que o Altíssimo Jesus Cristo nos livre de tais casos sucedidos a todo o mundo, como sucedeu no ano de 1808.

O nosso amado Príncipe-Regente Nosso Senhor Dom João e sua mãe a Rainha Nossa Senhora D. Maria governando este Reino no melhor que podiam, tudo a beneficio dos seus vassalos, não querendo que o sangue dos seus leais vassalos fosse derramado, buscando todos os meios de estar em paz com o imperador de França Bonaparte e com seu sogro o Rei de Espanha fazendo as vontades a todos estes com dinheiros e tudo mais que lhes era preciso, a fim de conservar este Reino em paz e sossego e não derramar o sangue dos seus vassalos; como este imperador de França Bonaparte já tinha tomado vários Reinos, uns por força de armas e outros por falsidades e falsas promessas, induziu o Rei de Espanha para meter tropas em Portugal, espanholas e francesas, dizendo-lhe que vinham auxiliar Portugal contra Inglaterra, obrigando ao nosso Príncipe declarar guerra e tapar os portos à Inglaterra. Vendo-se o nosso Príncipe tão obrigado destes Reinos e não querendo fechar os portos e declarar guerra contra o seu fiel e leal amigo o Rei de Inglaterra, mas sendo obrigado à força, se proibiram os portos à Inglaterra. Vendo o nosso Príncipe que por nenhum modo podia conservar a paz, vendo que não podia acomodar isto, determinou mandar armar as suas naus e fragatas e brigues e mais navios, e mandando buscar a esquadra portuguesa que se achava no Estreito de Gibraltar de guarda costa contra os mouros argelinos, sabendo que as tropas francesas e espanholas vinham com toda a pressa entrando em Portugal, determinou embarcar-se, mais toda a Família Real e fidalgos e mais povo que pôde, e no dia vinte e nove de Novembro largou da barra de Lisboa para o Rio de Janeiro, e logo no outro dia trinta entraram as tropas francesas e espanholas em Lisboa, Setúbal e no Porto e mais terras do Reino. Este monarca Rei de Inglaterra foi tão fiel a Portugal, não olhando que Portugal lhe fechasse os portos, ainda mandando a todas as suas armadas que não proibissem os portugueses navegarem nem os pescadores irem ao mar a pescar, antes lhes dessem todo o auxílio e os tratassem ainda mais bem que os próprios ingleses, como bem constou nestes mares de Portugal, senão ainda nos mares dos Reinos estranhos.
Entradas que foram as tropas francesas e espanholas, logo tomaram posse do Reino, repartindo o Reino ao meio, de Lisboa para o norte ser de França, de Setúbal para baixo ser de Espanha, de sorte que em Lisboa nas torres e fortalezas estava a bandeira francesa arvorada, em Setúbal a bandeira espanhola. Passando alguns meses, teve o General francês com o General de Espanha ou a falsidade daquele Bonaparte introduzida contra Espanha, de sorte que se retiraram as tropas espanholas para Espanha, ficando governando todo o Reino de Portugal o General francês chamado Junot, começando [a] mandar tropas francesas para o Algarve, em que neste Lugar de Olhão entraram as tropas francesas no dia catorze de Abril, quinta-feira santa, vindo um General francês [Maurin] e um Governador [Goguet] para a cidade de Faro; tomando posse de todo o reino, dando baixa às nossas tropas de soldados e oficiais, tomando-lhes a todos as armas, mandando-as logo para Lisboa, ditando vários editais com ordens, ditando vários tributos aos povos e mandando numerar todos os barcos pescadores deste Reino, e ainda as mesmas lanchinhas da murraça e da meia-água, obrigando a este Compromisso cobrar destes miseráveis pescadores, por os deixar ir ao mar a pescar, oitenta e oito mil réis cada mês para o prato do Governador francês que assistia [=residia] em Faro; ainda os obrigava a levá-los a Faro, além dos mais tributos que pagavam de suas casas e vinhas e fazendas, e da dízima que pagavam a Junot. Chegou a tanto a maldade desta nação que abandonando todas as igrejas, tirando-lhes todas as alfaias de prata, cruzes, lâmpadas, coroas das imagens e tudo que tocava a prata, mandando logo para Lisboa fundir em dinheiro em barra e remetendo tudo para França. Chegou a tanto este Reino, que se queria ir algum barco de navego para Tânger ou Tetuão lhe havia de dar dez moedas de ouro, fora o que dava mais ao governador francês que estava assistindo neste Lugar de Olhão; se algum passageiro ia para fora do Algarve, lhe havia de pagar de tributo quatrocentos réis, chegando a tanto que, dos nossos soldados, fazendo dos mais moços e melhores trinta e tantos mil homens, os remeteu para França, onde chegaram até Salamanca e por lá ficaram. Vendo-se estes miseráveis marítimos, por todas as partes, por mar e por terra, com tantos tributos, em miserável estado, vendendo as suas roupas e alfaias de casa, quase dadas, quase menos pela metade, perdendo muitos dias de irem ao mar pelas encomendas que o francês lhes dava, e mais era que parecia que o Nosso Senhor e o próprio mar estava contra eles, que iam dias e dias ao mar e não matavam nada, que parecia que se tinha secado todo o mar e todo o peixe no mar, que apenas por serem muitos barcos pescadores é que matavam algum peixe e ia muito barato por causa das poucas ganhanças que havia tanto no mar como na terra, e o peixe não ter saída para o Reino e fora dele, chegando a tanto a maldade desta nação que em todo este Reino mandando derrubar abaixo as nossas armas reais, de que em várias cidades, vilas, povos e lugares fortalezas se deitaram abaixo e outras picadas e outras tapadas com painéis e outras com cal e pedra. Desta sorte estava este miserável Reino e seus vassalos oprimidos. Chegou a tanto a maldade deste tirano Imperador Bonaparte que tendo toda a Espanha por sua, o que ele queria se fazia, e fingindo que queria tratar certos negócios com o Rei de Espanha e seu filho o Príncipe D. Fernando e com as mais Pessoas Reais e tratar certos negócios do Reino, nas raias de França e debaixo daquela paz como estavam com o seu leal amigo já há muitos séculos de anos, partiram da Corte de Madrid todas as Pessoas Reais, levando consigo muitos fidalgos e secretários e tudo o mais que lhe era preciso a tal Senhor. Chegados que foram às raias de França, o banquete que lhes deu foi aprisioná-los, a todas as Pessoas Reais e tudo o mais que levavam em sua companhia, e conduzindo tudo logo para França prisioneiros, onde estão tratados como umas pessoas mal-nascidas, sem honras e sem mando. Sabendo-se em Espanha esta falsidade se levantaram, onde foi o primeiro levantamento na nobre e leal cidade de Sevilha, como bons fiéis vassalos.
Os marítimos deste Lugar de Olhão, como bons fiéis vassalos a tão bom Senhor como tínhamos, o Príncipe-Regente D. João nosso Senhor, vendo-se em tantas misérias e necessidades como foram notórias, e principalmente este Lugar de Olhão sendo uma das terras deste Reino do Algarve que lhe foram carregados mais tributos, chegando mais que até o Governador francês que estava mandando e governando este povo obrigava este Compromisso lhe dar peixe todos os dias por deixar ir os pescadores ao mar a pescar, e não os deixava ir senão alto dia com sol e vir com sol, sendo que se alguém não viesse a horas os mandaria prender e remetê-los ao seu Bonaparte em França, e que eram falsos que iam vender peixe aos ingleses e dar todas as notícias do que se passava em terra, e para acautelar tudo isto se lhe dava o dito peixe para não padecer ninguém; estes nobres marítimos deste Lugar de Olhão, nem com todos estes trabalhos, necessidades e misérias que passavam perderam o amor e a lealdade ao nosso amável Príncipe, pois bem conheciam que ele de nada disto era culpado e por tanto amor e lealdade que lhe tinham e a todas as Pessoas Reais e à Pátria, e o sangue português que circulava por suas veias como bons e fiéis vassalos a tão bom Senhor, olhando sempre para aquela nação francesa com olhos de veneno e má vontade, como eles diziam em Faro que a gente deste Lugar era má gente que nunca olhava para eles com olhos direitos.
Capela do Compromisso Marítimo de Olhão
(cujo arco é rematado pelas armas reais)
Nosso Senhor Jesus Cristo, que tão altos são os seus divinos olhos de misericórdia, e como tem escolhido este Reino para tronco da cristandade, e querendo-o livrar desta nação francesa, olhando-nos com seus divinos olhos de misericórdia, caso prometido por Deus: Sucede que no dia doze de Junho de 1808, véspera do nosso Santo António português, cuja imagem temos na nossa Capela deste Compromisso, lhe irem armar a Capela para no seu dia treze se celebrar a sua festa, e de repente, olhando para as armas reais que estão na dita Capela, na Igreja, que se achavam já há muitos meses tapadas e pregadas com pregos com um painel de Nossa Senhora da Conceição, o escrivão deste Compromisso, João da Rosa, as destapara e as pusera a público, sem olhar a mais nada, confiado em Deus e Nossa Senhora da Conceição e no nosso Santo António. Vindo o dia 13, dia do nosso Santo António, vindo o povo deste Lugar à missa, vendo as armas reais destapadas, se lhe infundiu na alma e no coração aquele amor e lealdade, como bons e fiéis vassalos a tão bom Senhor. Todas as embarcações na praia em terra levantaram a bandeira portuguesa acima, sem temerem o inimigo nem a mais nada senão a sua liberdade e serem fiéis ao nosso amado Príncipe, de quem tinham recebido tantas mercês e favores. Sucede no dia dezasseis de Junho, dia de gloriosa memória de 1808, dia de Corpo de Deus, pelas dez horas e meia do dia, tocando-se à missa do dia, estarem muitos marítimos e mais povo no adro da igreja para ouvirem a missa, e chegar José Lopes, governador da Vila Real, a quem eles já tinham chamado a si por este se ter ausentado de Vila Real para não estar sujeito ao francês, vindo assistir [=residir] neste Lugar sem mando, mais a sua família; e todos juntos, estando um edital francês que tinha mandado o General francês de Lisboa, chamado Junot, pregado à porta da Igreja e outro no pelourinho [=cadeia] prometendo muitas promessas e ameaças a todos os que não quisessem, e pedindo nele auxílios a nós portugueses, este José Lopes, fazendo uma fala a este povo e principalmente a nós mareantes, dizendo que já não havia homens do mar marítimos como os antigos, eles todos juntos a uma voz lhe responderam que eles eram homens como os seus antecessores e bons fiéis e leais vassalos a Sua Majestade e que por ele queriam morrer e dar até a última pinga de sangue do seus corpo, dizendo mais que os mandasse e governasse como seu chefe, que para tudo estavam prontos e mais que prontos. E logo sem mais demora, correndo cada um quem mais podia a rasgar o edital que estava pregado na porta da Igreja e o fizeram em bocadinhos e o pisaram aos pés, outros logo correndo ao pelourinho a fazer o mesmo ao outro edital, outros subindo à torre tocar o sino a rebate, e logo todos juntos a uma voz clamaram dizendo "Viva Sua Majestade, viva o Príncipe-Regente Nosso Senhor D. João de Portugal, viva toda a Família Real, viva todos os nossos governos portugueses que foram fiéis ao nosso amado Príncipe, morra toda a nação francesa", e logo se arvorou as armas do nosso Portugal, e correndo pelas ruas em altas vozes clamando "Viva o nosso amado Príncipe", o que todo o povo seguiu a mesma voz e logo todos, a quem mais prestes correndo, embarcando-se em barcos, deitando-se ao mar assim como estavam vestidos, sem olharem a mais nada, embarcando em barcos uns à Barra Grande e outros à Barra Nova [mais precisamente ao forte (arruinado) da Armona e à fortaleza de S. Lourenço] buscar as peças e algumas munições e pólvora para nos defendermos do inimigo, e os que cá ficaram era tanta alegria e prazer que havia na terra, todos pegando nas armas que havia na terra, que eram forcados, fisgas, besteiros e paus, espadas velhas, espadins, paus, pedras, tanto faziam homens como mulheres, rapazes, raparigas, até o mesmo pároco da igreja e os padres, todos dizendo em altas vozes “Queremos morrer pelo nosso amado Príncipe e toda a Família Real”. E todos unidos a uma voz e a uma vontade, dispostos a todos os perigos, embarcados em barcos a quem mais podia embarcar, os da Barra Grande chegando à cabana do guarda do Forte da Barra Grande, que se achava comandando o Sargento Jacinto Ramalho Ortigão, o que este oficial, como bom fiel vassalo a Sua Majestade, logo entregou a eles marítimos tudo o que lá tinha em seu poder, sem pôr a menor dúvida, que constava de duas peças de bronze, uma caixa de pólvora e mais munições, e chegando ainda mais que ele mesmo mais os seus soldados embarcaram dos barcos e nos vieram ajudar, assistindo em tudo como bons e fiéis vassalos, a socorrer este Lugar aonde assistiram em tudo; os barcos que foram à Barra Nova, que comandava o tenente José Alberto, obrando pelo contrário, não quis entregar nada, antes embolando as peças e mandando formar soldados contra eles mareantes, os quais se vieram embora sem trazerem nada. Outros barcos que foram à armada inglesa, que se achava ancorada na Figueirita, para ver se nos mandava algum auxílio ou nos socorria com algum armamento, lhes responderam que não podiam dar isso e se tínhamos nós mantimentos para sustentar as suas tropas inglesas. Largando foram a Ayamonte, topando lá o Capitão Sebastião Martins Mestre, da cidade de Tavira, este sabendo o que eles lá iam buscar, e juntamente que Olhão estava levantado contra os franceses, os estimou muito e lhes deu tudo o que era preciso para darem socorro a este Lugar contra o inimigo, e por sua via alcançaram 130 espingardas, e embarcando ele mesmo no dito barco, de que era mestre Cristóvão Gomes, que tinha acabado o ano passado de ser juiz deste Compromisso, chegando todos a terra a este Lugar todos muito contentes, e principalmente este Lugar, por se achar sem armas entremeio de duas cidades inimigas [Faro e Tavira] que lhe não podiam valer ainda por via das muitas tropas francesas que estavam nelas. O dito governador José Lopes, mais o Capitão Sebastião Martins Mestre, entregando estas espingardas aos homens do mar e alguns da terra que assistiam neste Lugar, recebendo as ditas armas todos ficaram muito contentes e fortes, como se estivessem na melhor praça de armas das mais fortes que houvesse no mundo. Neste mesmo dia tomámos o coche da nossa Rainha, que tinha trazido o General francês que estava em Faro, trazido de Lisboa, que ia de Faro para Tavira pela estrada de cima a buscar umas francesas para Faro. Sabendo-se que três chavecos de Tavira vinham para Faro carregados de trastes de guerra e outras coisas mais, encomendadas pelos franceses, entrando pela Barra Grande se embarcaram os marítimos deste Lugar, como bons, fiéis e valorosos portugueses, em barcos pescadores, e junto à Barra Nova tomaram todos os três chavecos e aprisionaram tudo o que eles tinham tirado ao Regimento de Lagos e ao Regimento de Tavira, onde trouxeram tudo para este mesmo Lugar, onde aprisionámos setenta e sete soldados franceses, quatro oficiais e um quartel-mestre; em terra aprisionámos três correios franceses com cartas que traziam de Lisboa. Chegados que foram os chavecos a este Lugar, os prendemos a todos e principalmente sabendo-se que estes soldados e estas bagagens vinham para Faro em socorro das tropas francesas que se achavam em Faro e que tinham medo que os filhos de Olhão os fossem atacar a Faro, de sorte que juntassem em Faro, pelas estradas que vêm para Olhão, peças de artilharia. 
Ponte velha de Quelfes
O General francês [Maurin], logo que no mesmo dia soube que Olhão estava levantado, mandou ordens a Tavira e a Vila Real para virem para Faro todos juntos, para virem arrasar Olhão e passarem tudo à espada. Já a este tempo nós tudo sabíamos por via de três piquetes que lhes tínhamos apanhado com cartas que diziam isto mesmo; os valorosos marítimos e mais algumas pessoas da terra que assistiam neste Lugar de Olhão nada disto lhes metera medo nem abalo, antes lhes meteu mais ânimos, de sorte que sabendo-se neste Lugar, por piquetes que trazíamos, que tinham chegado a Moncarapacho pelo meio-dia as tropas francesas, as fomos esperar à Ponte de Quelfes, onde começámos a atirar os primeiros tiros e os fomos perseguindo em peleja entre os matos do Joinal, matando lhes dezoito soldados franceses, fora doze feridos entrando em Faro estropiados. Vendo o General francês da sorte que Olhão estava da sua tropa maltratada, mandando um piquete a este Lugar dizendo que o seu Imperador Bonaparte nos daria muitos dobrados privilégios dos que tínhamos do nosso Rei e não pagaríamos tributos nenhuns, seríamos livres de todos os direitos, isentos de tudo, e que o seu Imperador seria nosso amigo, que nos perdoaria tudo, que seria nosso amigo, que faria tudo como nós quiséssemos, que esperava de nós este favor e que lhe mandássemos a resposta por escrito. Esta embaixada mandou ele General francês a um hortelão de uma horta de Faro, e seu irmão provedor francês a trouxe e a deu ao tal hortelão, ele ficou à Meia-Légua esperando pela nossa resposta, porque neste tempo tudo quanto vinha de Faro se aprisionava. Dada a resposta por escrito, cujo se escreveu em casa do pároco deste Lugar, o Padre António de Matos Malveiro, o qual foi muito valoroso e fiel vassalo, pois era o primeiro que se achava em tudo o que era preciso, concorrendo em tudo o que era preciso de sua casa, socorrendo os pobres e metendo muito ânimo a todos, pregando pela ruas e na Igreja, dispondo muitas vezes o venerável sacramento, em cuja resposta respondeu o povo todo junto a uma voz e resoluto que não queriam reconhecer o Bonaparte por seu Rei, senão o Príncipe Dom João de Portugal e toda a mais Família Real, e que não se queriam entregar nem queriam seus privilégios nem suas dádivas, que pelo seu Príncipe estavam prontos até à última pinga de sangue do seu corpo, se queria guerras que eles estavam prontos no campo, que viesse mais todos os franceses e todo Faro, que estavam prontos para tudo. Dada a resposta por escrito e a voz do povo, ido que foi o embaixador, mandando seu irmão o Governador francês trazendo obrigados à força da cidade de Faro o Dr. Corregedor Juiz de Fora e mais algumas pessoas particulares de Faro, vindo todos em seges e outros a cavalo a Torrejão de Cima, porque na embaixada que se lhe deu fora o juiz deste Compromisso e o escrivão do mesmo assinados, e mandando chamar o dito juiz do Compromisso e mais oficiais, onde fora ter com eles levando em sua companhia o eleito mais velho, António Martins Calado, e mais algumas pessoas do povo, chegados que foram à sua presença o chamou para o pé de si com muito amor e carinho, e chamando-lhe bom pai de família, que ele era seu amigo, que fizesse com o seu povo que os acomodasse, que se fizesse tudo como nós quiséssemos, que ele queria paz connosco, que se queríamos assim que pedíssemos nós os fiadores que quiséssemos e seria tudo o que nós determinássemos, se queríamos assim no outro dia à Meia-Légua viria um tabelião fazer a escritura, se não quiséssemos fazer o que ele dizia seríamos todos passados à espada e Olhão arrasado para memória das mais terras. Estando nestas práticas chegou um piquete francês de cavalo, todo suado, a toda a pressa, a dar-lhe notícia que Faro estava levantado. E logo todos se foram embora para Faro, levando consigo a tropa francesa e alguma portuguesa obrigados à força, que vinham a combater com este Lugar de Olhão; chegando à horta de Caetano Domingues lhes fizeram fogo do alto os nossos portugueses, de que fugiram todas as tropas francesas. Em Faro aprisionaram o General francês e mais alguns franceses, isto foi no dia dezanove de Junho no dito ano de 1808, pelas três horas e meia da tarde, de que se levantou Faro. Fugidas que foram as tropas francesas de Faro, passando nessa noite desviados deste Lugar, perdidos por essas fazendas com medo que tinham da gente de Olhão, não tomando estradas direitas toda a noite, deixando por cima deste Lugar, na estrada de São Bartolomeu, um obus mais uma peça, tudo encravado em muita pólvora escramalhada por essas estradas, entrando em Tavira pela manhã, cansados, estropiados do caminho e de não dormirem aquela noite, na tarde se formaram todos, onde se dizia que vinham arrasar Olhão e passar tudo à espada; formadas as tropas francesas, tomaram a Rua de São Lázaro pela estrada do Alentejo, e idos que saíram de Tavira se alevantou a cidade no dia vinte de Junho do dito ano acima.
Nestes dias todos que estivemos alevantados contra os franceses, não vinha pão nem nada de fora da terra para este Lugar nos sustentarmos a nós e mais quarenta e nove soldados pés-de-castelos que nos ajudaram a nos defendermos, tanto fez de noite como de dia, todos nós pegados em armas das que havia sem ninguém descansar, com rebates de noite e de dia, nem se dormir. Além das muitas despesas que este Compromisso tinha já feito nas tarimbas, aquartelamentos e camas e tudo isto mais que lhe era preciso, obrigados pelo General francês a fazerem tudo isto e o mesmo foi nas mais terras deste Reino e sem este Compromisso de todo em todo ter cinco réis, por causa que neste dias todos não ia ninguém ao mar nem ainda ao rio [actualmente denominado Ria Formosa] passando todos muitas necessidades por não irem ao mar nem haver condutos para nos sustentarmos, de sorte que muita gente dias e dias não comia nada por não ter para comprar pão e principalmente a tropa que nos ajudava, que foi necessário que os oficiais deste Compromisso, António Martins Calado e mais outros, andassem pedindo pela terra pelo amor de Deus para os sustentarmos e lhes darmos naqueles dias o seu soldo por não morrerem à fome, e com todas estas necessidades que passámos parecia que Deus Nosso Senhor nos mantinha, porque havia dias que ninguém vinha comer a casa senão à pressa, à noite, e logo marchava para o campo a pôr-se pronto tudo em geralmente, e desta se deitaram as tropas francesas fora deste Reino do Algarve, ficando livre desta maldita nação. Idos que foram deste Reino do Algarve, foram direitos a Beja, onde houve muitos mortos na nossa gente e muitas desgraças, morrendo também muita gente francesa, e o mesmo fizeram em várias cidades do nosso Alentejo, muitas casas perdidas e famílias inteiras mortas; sabendo-se isto, vindo alguns oficiais nossos do Alentejo a este Algarve a pedir socorro, lhes foi socorrer o mesmo José Lopes levando gente deste Algarve e peças de Faro, os deitaram fora com ajuda das tropas espanholas que nos vieram ajudar a deitar fora, tomando o caminho as nossas tropas de Setúbal restaram, e mais terras tomadas que foram fizeram linha da banda do sul de Lisboa e saltando as tropas inglesas em terra por cima de Lisboa se deu o inglês por cima de Lisboa [Vimeiro] um combate ao francês em que lhe matou muita gente e no dia 15 de Setembro se entregou Lisboa, do ano de mil oitocentos e oito, cujas tropas francesas os ingleses os meteram em navios e os mandaram pela barra fora, e desta sorte ficou Portugal livre dos franceses, e que depois foi o mesmo José Lopes, já feito marechal de campo, com tropas portuguesas ajudar a Espanha a se defender dos franceses.
E por tudo isto ter sucedido neste Lugar de Olhão, atestamos e fazemos certo, e o que escrevemos de fora do que sucedeu nas mais terras por cartas que recebemos e dito por pessoas de crédito e sabermos de certo tudo isto. Estes são os infortunados sucessos em que se viram este miserável Lugar de Olhão, tanto faz os homens do mar como os homens da terra que então assistiam[=residiam] neste Lugar de Olhão, reservando várias pessoas que fugiram nesta ocasião do combate e nos largaram neste conflito e se ausentaram para fora deste povo, o que presenciámos de vista e sabemos de certo como oficiais que então servíamos neste Real Compromisso, declarados: juiz, José Martins Micano; eleito mais velho, António Martins Calado; recebedor, Lourenço da Costa; escrivão, João da Rosa; procurador, Francisco da Rocha; eleito mais moço, José dos Santos; mordomo, Fernando da Silva. De que fiz declaração como escrivão deste Real Compromisso para todo o tempo constar o sucedido.

João da Rosa


[Fonte: O Manuscrito de João da Rosa [edição actualizada, revista e anotada por Helena Vinagre, Veralisa Brandão e António Rosa Mendes], Gráfica Comercial - Loulé, Câmara Municipal de Olhão, 2008. Ademais de diversas notas (que não incluímos aqui), esta edição contém uma introdução do professor António Rosa Mendes, intitulada "Um documento precioso", que vivamente recomendamos aos interessados].