quinta-feira, 16 de junho de 2011

O dia do Corpo de Deus em Lisboa, segundo Acúrsio das Neves


A revolução lavrava no sul como no norte do reino, e os franceses, estreitados cada vez mais pela parte da terra e encurralados pela do mar, eram como os habitantes de um edifício que caía sobre eles aos pedaços, e de que não podiam nem retirar-se nem reparar as ruínas.
[...]
O dia de Corpo de Deus [16 de Junho de 1808], sendo tão alegre para toda a cristandade, foi um dos mais aziagos para os franceses. Nele aconteceram-lhes fatais desgraças em diferentes terras de Portugal e Espanha; e em Lisboa sentiram uma vertigem, na verdade mais terrível do que perigosa, que porém devia ser para eles de funesto agouro.
É bem sabida a grande pompa com que se costumava celebrar em Lisboa a procissão e festividade própria deste dia; posto que já muito decaída do esplendor em que a deixara o magnífico Rei D. João V. Junot temeu desgostar mais o povo, privando-o deste espectáculo tão pio como aparatoso, a que estava habituado; e por isso não só tinha resolvido que se celebrasse como dantes, mas pusera o público em grande expectação, pelos pomposos anúncios, que disse lhe tinha dado [a 28 de Maio e a 4 de Junho].
Chegou o dia, e começou a sair a procissão na forma dos mais anos, somente com a falta de São Jorge e do seu estado. Pretextaram os franceses esta falta dizendo que o Duque de Cadaval tinha levado para o Brasil as ricas peças [diamantes] com que o Santo costumava adornar-se (todas ou a maior parte era próprias do Duque), dizia o público que não o quiseram deixar sair porque era Santo inglês; mas os que feriram melhor o ponto assentaram que era por não quererem contribuir com uma propina que a piedade dos nossos Soberanos sempre lhe mandava dar da sua fazenda à entrada do castelo. Pode ser que também concorresse o quererem evitar que a comitiva, com o pretexto de acompanhar o Santo, devassasse-lhe o mesmo castelo onde então mandavam fazer várias obras que cuidadosamente ocultavam aos olhos do público, como quem se preparava para sustentar ali um assédio. Faltando na procissão S. Jorge e o seu estado, faltava uma das peças mais vistosas; o que era já um grande desgosto para o povo, mas não é daqui que proveio o reboliço.
A procissão já enchia o círculo que devia correr, e era no momento em que estava para se fazer a primeira muda das varas do pálio, ainda dentro da igreja de S. Domingos, quando de repente se arma um barulho numa travessa da Rua Augusta, que num instante se comunica ao imenso povo que cobria aquelas ruas e a grande Praça do Rossio, o agita e abala como uma onda. Ignorava-se o motivo, e todos procuravam fugir pelo caminho que achavam mais próximo. Uma coluna do povo que estava mais perto da igreja penetrou por ela dentro, levando tudo diante de si em linha recta: clérigos, religiosos, ministros, cavaleiros das ordens, tudo foi indistintamente atropelado e calcado debaixo dos pés dos que entravam, e esteve a pontos de haver maior desordem, porque os soldados franceses que formavam as alas e guarneciam o interior da igreja começaram imediatamente a carregar as armas; felizmente, porém, serenou o repelão logo que o terreiro contíguo à igreja ficou vazio. 
Os dragões, granadeiros e todos os invencíveis de Junot não foram os últimos em fugir, desamparando as ruas e as praças que guarneciam; até um parque de artilharia que tinham colocado no Rossio foi abandonado; e viram-se, em lugar de artilheiros, homens, mulheres e rapazes montados sobre as peças e carretas. Entravam pelas casas e pelas lojas que achavam abertas, e nalgumas despedaçaram os vidros e as louças de que estavam providas, com o ímpeto da entrada, e suplicavam num português bárbaro que lhes conservassem as vidas, porque eram cristãos. Aumentou-se o reboliço com uma voz que se levantou do meio do maior tumulto, que os ingleses tinham feito um desembarque. A grande praça e todas as ruas vizinhas, que três ou quatro minutos antes se achavam apinhoadas de povo, ficaram vazias de gente e cobertas de sapatos, chapéus, barretinas e outros trastes semelhantes. Era um campo de batalha, todo juncado de despojos, e em que apenas apareciam alguns estropiados que não puderam arrastar-se, algum sacristão ou frade idoso que tiveram a constância de não desampararem as cruzes que conduziam: destas ficaram muitas estendidas pela terra, e algumas feitas em pedaços.
Que espectáculo para o delegado do grande Imperador e para a sua grande oficialidade, que, com Lagarde, o observaram das varandas do Palácio da Inquisição! O sobressalto e os flatos de algumas damas que eram da companhia, o tornavam ainda mais horroroso, e Junot o sofreu mudo e quedo, enquanto não foi informado dos motivos daquele tumulto. Sabendo poucos momentos depois que não tivera outro princípio que o reboliço causado por uns soldados que seguiam um ladrão, apanhado a furtar um relógio por entre o ajuntamento do povo, quando se achava mais espesso, e que não havia coisa alguma de perigo, procurou consolar as aflitas damas, e saiu a reunir a pequena parte dos dispersos que tinham parado em pequenas distâncias, e fazer concluir a procissão com estes miseráveis fragmentos: Que temeis? Não estou eu convosco? O inimigo está longe. Estas e outras semelhantes expressões eram as de Junot, depois de passado o susto, ou para falar com verdade, as que se lhe atribuíram numa fabulosa e enfeitada relação deste sucesso, que se publicou numa segunda gazeta no dia seguinte. Foi segunda, porque apareceu depois de publicada a folha do costume, e a veio substituir: andaram moços (coisa horrível!) pelas casas dos assinantes a recolher as que já se tinham distribuído, para ficarem suprimidas; mas não foi possível conseguir-se este fim. Muitos as conservaram, e eu conservo uma e outra, como um monumento precioso, que mostra assaz a falta de respeito com que estes impostores tratavam o público e o escândalo com que insultavam grosseiramente a verdade.

[Fonte: José Accursio das Neves, Historia Geral da Invasão dos Francezes em Portugal, e da Restauração deste Reino - Tomo III, Lisboa, Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1811, pp. 254-262].