Tenho um conto que contar, | |
Mas não o quero dizer, | |
Porque não me hão de crer | |
Se eu o for publicar: | |
Eu fui sem dar nem tomar | |
À rua da procissão, | |
Vi do exército cagão | |
O soldado e o tambor | |
Fugir com todo o valor, | Fugirem com todo o valor |
Sendo de Napoleão. | Os oficiais de Napoleão. |
Se isto é verdade, ou não, | |
Eu não estava a dormir; | Eu não estive a dormir, |
Vi os soldados fugir | Eu vi os soldados fugir |
Largando as armas da mão; | |
Vi os generais então | E vi os Generais então |
Saírem à desfilada, | Saindo à desfilada, |
Julgando que a pancada | |
Lhes caía de improviso, | |
E que antes do final juízo | |
Davam todos a ossada. | |
A cavalaria sentada | |
Não esperou capitão, | Não esperou por Capitão: |
Fugindo à discrição, | |
Corriam pela calçada; | |
Largando armas e espada, | |
Julguei que a Infantaria | |
Da mesma forma corria | |
Com medo dos portugueses, | |
E que doze mil ingleses | E que dez mil ingleses |
Os tragavam neste dia. | |
Que disseres e que diria [?] | Ora quem tal diria |
Que o exército de Marengo | |
Fugia como podengo | |
De uma coisa que não via! | |
Largavam a artilharia, | Largando a artilharia, |
Que empresa mais gloriosa! | |
Fugir à morte aleivosa | |
De um valor iracundo: | É um valor iracundo. |
Assim venceu todo o mundo | Assim vence todo o mundo |
Esta tropa valorosa. | Esta tropa valorosa? |
Mas nesta função ditosa | |
Foi São Jorge desprezado, | |
Roubam-lhe o seu estado, | |
Que a fazia mais lustrosa: | |
Houve uma voz poderosa | |
Que a todos intimidou; | |
O mesmo Junot ficou | |
Mais mirrado que uma corda, | |
Até o mesmo Laborda [sic] | |
Os calções todos borrou. | Os calções todos cagou. |
Mas eu a dizer já vou | |
O que entendo piamente: | |
Que a toda esta fraca gente | |
De vida pouco lhe dou; | |
Esta tropa aqui entrou | |
Com fé de nos ajudar; | |
Entraram logo a furtar, | |
Saqueando em geral | |
Ao reino de Portugal | O reino de Portugal |
Sem os templos lhe escapar. | Sem o Divino escapar. |
Que podemos nós esperar | Que poderemos esperar |
De gente sem religião? | |
Não tenham compaixão, | Não tenhamos compaixão: |
Devem todos acabar: | |
Nem um só deve escapar, | |
Da ira dos portugueses, | |
Morram todos os franceses, | |
O Maneta e o Junot, | O Intendente e o Junot; |
Não esteja vivo um só | |
Quando entrarem os ingleses. | |
Levantem-se os holandeses, | |
A Itália e a Turquia, | |
Tenham juízo um dia | |
Renanos e genoveses; | |
Acabem-se os franceses, | Acabem com os franceses, |
Declarem-se os russianos, | |
Alemanha e a Toscana | Alemanha e toscanos |
Sejam com eles cruéis, | Sejam com eles cruel, |
Não lhes prestem quartéis, | Não lhe dêem mais quartel |
Façam como os castelhanos. | Como fazem os castelhanos. |
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Observações:
Para uma melhor compreensão do assunto tratado nestes versos, ver o relato de José Acúrsio das Neves sobre o aludido dia do Corpo de Deus em Lisboa.
Encontrámos estas décimas em dois manuscritos, respectivamente intitulados:
1. "A procissão do corpo de Deus em 1808", disponível no site da Biblioteca Nacional Digital do Brasil.
2. "Ao terror pânico que se apossou dos vencedores da Europa no dia 16 de Junho, no acto da procissão do Corpo de Deus", in Antonio Joaquim Moreira (org.), Colecção de sentenças que julgarão os réos dos crimes mais graves e attrozes commetidos em Portugal e seus dominios - Vol. 4, 1863, fls. 93-93v.
A versão transcrita à esquerda é a assinalada com o número 1 e é a mesma donde extraímos a imagem da primeira folha, acima inserida. Da segunda versão extraímos as variantes assinaladas à direita.