domingo, 31 de julho de 2011

Cópia de uma carta escrita a Mr. Junot por um seu amigo



Como é volúvel a Roda da fortuna, que num momento corta a fio da mais sólida ventura! Nunca imaginei que vos havia de chegar a Santa-Unção primeiro que a Quintela. Que desconsolação para os vossos amigos e para a vossa Madame Ega, ver-vos expirar depois dum Ducado tão glorioso no Mundo como o Reinado de vosso amo! Vós tínheis os fundamentos lançados de uma fama tão assinalada como a daquele Herói que incendiou em Éfeso o Templo de Diana, e em tudo, e por tudo, seriam reproduzidas em vós as virtudes deste. Porém, quanto pôde a ingratidão dos portugueses tomando as armas contra vós! Como depressa se esqueceram da Protecção que trouxestes ao seu país, fazendo dele uma conquista de amigo, abrindo estradas, rompendo canais, e pondo a coberto o seu ouro e prata da influência maligna da Inglaterra; ah, meu amigo, quanto sinto ver-vos à borda do precipício, verificando-se em vós o rifão antigo: Entradas de leão e saídas de sendeiro. Quem me dera uma voz tão robusta que ressoasse nos montes e vales, ou tão irada como o som da artilharia; eu bradaria então: 
Portugueses, que mal vos fez o vosso protector, para assim o acometerdes com ferro e fogo? Não é à iluminada Política deste General que o pobre Tejo deve o incomparável benefício de se ver desafrontado daqueles Exércitos de vasos que faziam gemer as suas águas com o enorme peso dos trigos, queijos, manteigas, arrozes, açúcares, farinhas de pão, algodões, panos, drogas e outras ridicularias deste género? Não é à grande protecção deste virtuoso chefe que a famosa Lisboa deve o ver-se evacuada de ingleses, americanos, gregos, marroquinos, holandeses, e de outros pobretões deste género, que nunca souberam comerciar como Mr. Junot, nem possuíram a grande arte de felicitar os povos como Napoleão; e não é por ele que se viu extinta na vossa capital a grande praga da traça, ficando tudo aliviado do peso das lãs, e remediada a sórdida indigência? Não é nas suas mãos que se viu reunido como num só ponto todo o vosso comércio; as artes num vigor tão prodigioso, que não fatigavam já os membros dos operários; as ciências em tanto gás que brevemente vos dariam um novo Camões; a Religião tão despida das superstições que a desonram, que sem demora seria o vosso catecismo o Filósofo militar, o Emílio, e outros iluminados Apóstolos que não teve a Igreja nos seus fundamentos; e em conclusão, uma polícia também ordenada, que tudo era uma limpeza decidida e elevada ao seu cume. E é contra um político desta ordem que vos tomais às armas? Assim insultais o Omnipotente que o enviou a proteger-vos, e que decidiu a vossa sorte dum modo tão glorioso e honrado? Assim se recompensam as acções grandes que ele obrou entre vós, e aquela piedosa protecção que enviou aos cidadãos das Caldas, pelo ministério dum General tão grande na virtude como mesquinho nos membros? 
Amigo Junot, assim falaria eu por vós, porém a Natureza [...] não me fez gigante [como] Golias, nem me deu a lira de Orfeu. Eu ouço já o estrondo das armas portuguesas que marcham em vosso alcance, e se o vento vos deixa ainda articular alguns sons, pedi a Vossa Amante ou que tome as armas da sua casa para vingar como Heroína o insulto que se dirige à Vossa Pessoa, ou que diga um eterno adeus aos arbustos do Ramalhão, com que coroaste os seus mimosos sorrisos.

Vale

[Fonte: Arquivo Histórico Militar (cota: AHM/DIV/1/14/006/32, fls. 1-3)].

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Nota:

Devemos o conhecimento deste documento, disponível fisicamente no Arquivo Histórico Militar, ao historiador Rui Manuel C. Prudêncio, que o disponibilizou integralmente no seu Blogue de História e Estórias, respeitando a ortografia original. Como referiu então Rui Prudêncio, ainda que o documento não se encontre datado, percebe-se pelo seu conteúdo que “é provável que date do período dos levantamentos populares organizados pelas sucessivas juntas formadas ao longo do país a partir de Junho de 1808 e antes do fim do governo de Junot com a Convenção de Sintra em Agosto do mesmo ano”. Resta-nos somente acrescentar que o seu tom de (aparente) incredulidade e de (falsa) ingenuidade parece ter sido inspirado por textos como a proclamação que Junot fez aos portugueses na data de 26 de Junho de 1808, precisamente a primeira onde o General francês se manifestou contra as incipientes revoltas que tinham então começado a surgir em vários pontos do país.
Em relação à autoria deste documento anónimo, não devemos confundir a última palavra do texto (Valle, no português antigo do manuscrito original) com o nome do autor. De facto, trata-se duma palavra latina que significa "adeus", e que era antigamente usada ao jeito de despedida, aparecendo precisamente com esse sentido no final de prefácios de outras obras portuguesas da época, e sendo exactamente assim definida no Diccionario da Lingua Portugueza de Rafael Bluteau de 1799). 
Escrita por um suposto amigo e apologista de Junot, esta "carta" é na verdade um documento bastante sarcástico que satiriza subtilmente o papel de Junot em Portugal através duma aparente crítica directa (embora nitidamente irónica) à ingratidão dos portugueses para com os seus protectores. Para além de várias referências irónicas às inúmeras promessas presentes nas proclamações de Junot (particularmente a de 1 de Fevereiro de 1808), este texto anónimo também alude ao suposto affaire que as más línguas da época diziam existir entre Junot e a Condessa de Ega (contando supostamente com o consentimento do próprio Conde da Ega), havendo inclusive rumores que o General francês a instruía na arte equestre em sítios como a quinta do Ramalhão. Raul Brandão, na sua obra El-Rei Junot, recolheu algumas poesias coetâneas que abordam este caso:  "[...] O Ega a mulher / Ao Junot foi entregar. // É onde pode chegar / O génio de ser cabrão. / Enfim, já chamam à Ega / Princesa do Ramalhão"; "O tal amigo Jinó [= Junot]Sem ser do seu mandado / Fez o Ega coronel / Deixando-o mui bem armado"; "Dizem que se transformaram / O conde da Ega e a mulher, / Ele em burro paneleiro, / Ela em besta de aluguer"; "P. - Trus, trus. R.  - Quem é? / P. - Aqui é que mora o almocreve / que aluga a égua e anda a pé?" [Fonte: Raul Brandão, El-Rei Junot, Porto, Renascença Portuguesa, 1919 (2.ª ed.), p. 276, p. 449 e p. 454]. Por curiosidade, e independentemente da veracidade de tais boatos, a convivência harmónica entre os Condes da Ega e Junot viria a motivar a fuga do casal para a França após a chamada Convenção de Sintra, acabando mesmo o Conde da Ega por ser condenado à morte em 1811, pena esta que foi finalmente anulada em 1823.



Iohn Bull amongst the Spaniards, or Boney decently Provided for, caricatura de Charles Williams (Julho de 1808)



John Bull entre os espanhóis, ou Bonaparte decentemente provido.
Caricatura de Charles Williams, publicada em Julho de 1808.


Esta caricatura, publicada na sequência dos pedidos de auxílio de algumas Juntas espanholas ao Governo britânico e da consequente declaração do fim das hostilidades contra a Espanha, representa John Bull sobre um barril de bebidas espirituosas britânicas, declarando aos espanhóis pouco animados que o cercam: "Meus bons amigos, aqui estou entre vós. Deveis saber que não gosto de qualquer tipo de estrangeiros, mas como quereis derrotar Bonaparte, trouxe-vos - por puro amor e caridade - alguma coisa para vos ajudar: aqui está um barril de bebidas espirituosas britânicas e outro de lâminas de barbear, dois cangalheiros, um coveiro e um pequeno caixão. O que mais podeis desejar?". 


Pormenor

Aludindo à segunda parte do título desta caricatura (note-se ainda que Boney, ademais de ser o diminutivo de Bonaparte em inglês, significa também "ossudo"), encontra-se aos pés do coveiro e dos cangalheiros cedidos por John Bull um pequeno caixão, condicente com a reduzida estatura atribuída ao Imperador da França, sobre o qual se lê o seguinte "epitáfio", que mais parece uma prece: 
Napoleão, por graça de Deus, deixa esta vida





Outras digitalizações:

British Museum

British Museum

The Ghosts of the Old Kings of Spain appearing to their Degenerate Posterity, caricatura atribuída a Charles Williams (Julho de 1808)




Os fantasmas dos velhos Reis da Espanha aparecendo à sua posteridade degenerada
Caricatura atribuída a Charles Williams, publicada em Julho de 1808.



Quatro fantasmas irados de antigos Reis da Espanha surgem no meio de fumo para condenar a família real espanhola. Um dos fantasmas, ao centro da gravura, vira-se para Carlos IV e declara-lhe: Desgraça dos vossos antepassados, tremereis pela vingança! O velho monarca, horrorizado, implora pela misericórdia do fantasma: Oh, não olheis com essa carranca para um pobre, miserável e velho rei. À esquerda da imagem, Fernando volta-se para o fantasma que está atrás de si, declarando-lhe, enquanto aponta um dedo acusador a Godoy:  Eis a causa da nossa desgraça. Contudo, o fantasma recorda a Fernando que também ele é responsável pelo destino da sua família: Relembrai que sois um Príncipe. Godoy, cujo chapéu está tombado no chão, enterra a sua cabeça no colo da rainha, como que buscando protecção, e do seu bolso caem papéis da Correspondência entre Godoy e Bonaparte e outros Para o Príncipe [da] Paz. Incapaz de assistir à horrífica cena, a própria rainha tapa a cara. Napoleão, no lado direito da gravura, é indiferente às aparições. Com um sorriso no rosto, remove a coroa de Carlos IV, e declara-lhe: Não vos alarmeis, meu bom amigo, tomarei conta da vossa Coroa, a qual não poderia estar em melhores mãos; penso que servirá no mano Zézinho. Vendo isto, John Bull, atrás de Napoleão, ordena-lhe que pare: Parai, meu pequeno senhor. Vereis que aí está uma pessoa chamada Fernando; essa coroa servir-lhe-á muito melhor do que em Zézinho



Outras digitalizações:

British Museum (a cores).

British Museum (a preto e branco).

Brown University Library (a preto e branco).