domingo, 2 de janeiro de 2011

Uma Carta Americana sobre a proclamação de Junot de 1 de Fevereiro de 1808



Venâncio a Plácido

 
Fevereiro de 1808


Des biens des nations ravisseurs alterés. 
Le bruit de nos tresors les a tous attirés.




Todos os sucessos, meu Venâncio, que até agora me pareceram extraordinários, são átomos comparados com a grandeza dos novos acontecimentos.
Portugal é uma justa aquisição dos franceses, e só por eles há de ser governado; o Príncipe do Brasil perdeu, porque se ausentou, o direito que tinha à soberania deste Reino; e os seus habitantes devem pagar uma contribuição de quarenta milhões de cruzados. Tal é a suma da Proclamação e das ordens que, enfeitadas de palavras de bom sonido, se publicaram no princípio do presente mês de Fevereiro*.
Os vossos interesses, diz a Proclamação, fixaram a atenção de S. M. O Imperador, Nosso Augusto Senhor. Toda a irresolução deve desaparecer: decidiu-se a sorte de Portugal e segurou-se a sua felicidade futura, pois que Napoleão o Grande o tomou debaixo da sua omnipotente protecção.
O vil adulador não reparou que esgotava todas as lisonjas na ímpia aplicação dum atributo da Divindade; que se privava para sempre do prazer de exaltar mais o seu herói; e que, fazendo depender a nossa felicidade da omnipotência de Napoleão, perdemos de todo as esperanças de deixarmos de ser desgraçados. Não tarda, meu amigo, uma nova apoteose; os franceses dos nossos tempos disputam vilezas com os escravos dos Tibérios.
O Príncipe do Brasil, abandonando Portugal, renunciou todos os seus direitos à soberania deste Reino. A Casa de Bragança acabou de reinar em Portugal.
Que fraudulenta conduta! Que indignos estratagemas! Obriga-se com a invasão injusta de um Exército a sair deste Reino a família real, e serve depois a mesma saída para prova justificativa da usurpação. O príncipe regente, retirando-se ao Brasil, tomou o único sensato expediente que lhe restava para salvar a sua própria pessoa, e poupar os vassalos aos horrores de uma guerra que seria então necessariamente desgraçada. A aliança pública da Espanha com a França e os ajustes particulares que se suspeitaram pela ligação dos dois Exércitos desanimaram com razão o nosso Ministério, que não só teve por baldada e funesta qualquer resistência, mas conheceu que a França se servia do pretexto de vir fechar os portos à Inglaterra para introduzir tropas e arrancar o ceptro ao nosso legítimo monarca. Vê-se claramente que se entenderam bem suas danadas tenções, quando se lê no Decreto de 26 de Novembro estas notáveis palavras: as tropas franceses dirigem-se muito particularmente contra a minha real pessoa.
Com efeito, meu amigo: respeitariam porventura o soberano os pérfidos que desde os primeiros momentos da sua entrada intimaram ordens aos Governadores do Reino, dispuseram dos bens da Coroa, e se apossaram do Tesouro Público, como se fora próprio? Respeitariam o soberano os que ousam dizer-nos com inaudita insolência, pisando os direitos do povo português, e insultando a nação, que já não compete à Casa de Bragança o direito de reinar neste país? Não, meu amigo; o príncipe soberano de Portugal era uma das vítimas que a insaciável ambição de Bonaparte designava para o sacrifício, de que depende a elevação da sua família; portanto, ficando no Reino, era inevitável a sua desgraça; e retirando-se, é muito incerto o perdimento da Coroa, apesar do que blasonam com insensata arrogância os intrusos dominadores.
Quem, se não o vira, acreditara que o chefe da nação, que há poucos anos declarou tão solenemente os direitos dos povos, se arrogava o poder de nos governar, ou talvez de nos dar um soberano, desentronizando o legítimo que nos regia, como descendente do primeiro, que os nossos maiores livremente aprovaram para reinar? Qual não foi a indignação da França contra as potências que no princípio da Revolução tentaram dar-lhe a sua antiga forma de Governo? Demonstraram os novos republicanos (e bem diferentes dos antigos) que a cada nação em particular pertencia a escolha da autoridade suprema; e o povo, justamente irritado pela afronta que lhe faziam os reis que contra eles se ligaram, vingou-se das injúrias dos seus inimigos por uma longa série de vitórias. A França, pois, reconhecendo modernamente a base primeira das convenções sociais e sustentando com as armas [a] sua independência, nos autoriza com lições e exemplos a não sofrermos o jugo que aleivosamente nos prepara.
Não penses contudo que assim equiparo o procedimento dos reis à vil conduta do flagelo da Europa; aqueles parentes e aliados do último monarca francês procuravam mantê-lo no trono que legitimamente ocupava; este exerce sobre nós os poderes de soberano sem consultar [a] nossa vontade; aqueles declararam guerra à França; este anuncia-se amigo, aliado, protector e apossa-se do Reino com enganos, para nos sujeitar atraiçoadamente ao seu domínio. Que vingança não pode este incrível atentado, e que não será o último, se a Europa não opuser diques poderosos à torrente devastadora? Como se alucinam as potências a ponto de não verem que a preponderância da França procede mais da indolência e medo dos contrários do que das suas próprias forças? Porque não se lembram do que Aníbal pensava dos romanos, e que exactamente se aplica aos actuai? “Os Romanos são invencíveis (dizia aquele excelente General) porque os seus inimigos são medrosos e néscios; enganados pelas ardilezas do Senado, sucumbem uns após outros, sem reflectirem que seria bem fácil alcançarem reunidos e persistentes, o que nunca conseguirão separados e inconstantes”. Nesta desgraçada idade, a Itália, Alemanha, Prússia e Rússia têm caído no mesmo erro, e cooperado involuntariamente para os triunfos da França. Voltemos à Proclamação.
O Imperador Napoleão quer que este belo país seja administrado e governado todo inteiro em seu nome, e pelo General em Chefe do seu Exército. A tarefa que me impõe este sinal de benignidade e confiança de meu amo é difícil de cumprir; mas eu espero preenchê-la dignamente, ajudado dos trabalhos dos homens mais instruídos do Reino, e da boa vontade de todos os seus habitantes.
De que modo cuidas tu que o General vai desempenhar a tarefa? Lê nas suas próprias palavras, e pasma.
Eu ordeno que se abram estradas e rompam canais para facultar as comunicações, e tornar florescente a agricultura e a indústria nacional, dois ramos tão necessários à prosperidade de um país, a qual será fácil de reestabelecer com um povo espirituoso, sofredor e intrépido.
Paro aqui para me deleitar com a imaginada perspectiva da nossa felicidade futura, e para admirar contigo o novo criador. Quanto é grande o poder francês! Para se executarem os projectos mais difíceis e dispendiosos basta dizer ordeno. Não vês tu nesta frase o fiat lux do Génesis? Duvido porém que chegues a ver o facta est1.
As rendas públicas bem administradas assegurarão a cada empregado o prémio do seu trabalho; a instrução pública, esta mãe da civilização dos povos, se derramará pelas províncias; e o Algarve e a Beira Alta terão também um dia o seu Camões. A Religião de vossos pais, a mesma que todos professamos, será protegida e socorrida pela mesma vontade que soube restaurá-la no vasto império francês, mas livre das superstições que a desonram; isto é, aliviadas as igrejas do peso de todos os seus ornamentos de oiro e prata; a justiça será administrada com igualdade e desembaraçada das delongas e arbítrios voluntários que a sopeavam; porque no governo militar olha-se mais para a brevidade do que para a rectidão das sentenças.
A tranquilidade pública não será mais perturbada por horríveis salteadores, resultado da ociosidade; e se acaso existirem malvados incorrigíveis, uma polícia activa livrará deles a sociedade; a disforme mendicidade não arrastará mais os seus fatos imundos na soberba capital, nem pelo interior do Reino; estabelecer-se-ão casas de trabalho para este fim; o pobre estropiado ali achará um asilo, e o preguiçoso será empregado em trabalhos necessários à sua própria conservação.
Observo que o General é particularmente afeiçoado ao Algarve e Beira Alta; aliás, que lhe custava dar igualmente a cada uma das outras províncias o seu Camões? Porque seria mesquinho em prometer fortunas que nunca por seus cuidados hão de ter realidade?
Dizem-nos que será protegida a religião de nossos pais; eu o creio; será protegida como nós. Os baixos embusteiros, conhecendo a poderosa influência da religião sobre os homens, prestam-lhe homenagem nas expressões e fingem respeitá-la, porque temem, desprezando-a, chamar sobre si a cólera dos povos, sempre mais prontos a vingar os ultrajes feitos a Deus do que os seus próprios. Sobre a providência de não arrastar mais a disforme mendicidade não arrastará mais os seus fatos imundos na soberba capital, só digo (por não falar da imprópria e ridícula inchanção das frases) que ficando Portugal reduzido à miséria extrema pela ocupação dos nossos protectores e pelo benefício da contribuição, será baldado o empenho de instituir casas públicas para recolher os pobres, se não tiverem capacidade para receber todos os habitantes do Reino.
Confesso-te que o meu amor próprio se ofende quando vejo que se aspira a iludir o corpo inteiro da nação, assoalhando sabidas generalidades; que só entreterão espíritos tão superficiais e ignorantes que cheguem a confundir as promessas com o cumprimento delas, e não vejam que a regeneração do Estado não pode ser a obra dos que o roubam e devastam.
De muitos conquistadores nos fala a história, que assolaram e exterminaram povos para contentar caprichos e ambições; mas invadir manhosa e violentamente um Reino; tirar sem causa as ocupações aos empregados; extorquir somas avultadas por todos os modos possíveis; denominar conquistado o país (em que entrou amigavelmente) para lhe impor uma contribuição cujo produto é incalculável; e chamar por fim a tantas desgraças fortunas e prosperidades, é caso único, que não se repetirá talvez na sucessão de muitos séculos, e que estava reservado para o feroz Bonaparte e seus infames satélites.
Não renunciemos, porém, meu Venâncio, à esperança consoladora de ver abatido o seu poder colossal; julguemos antes que o excesso das calamidades é a aproximação do seu termo. Precisam-se maiores forças para conservar as conquistas do que para alcançá-las; os povos gemem em afrontosa escravidão e suspiram por liberdade; a Inglaterra, invencível pela situação e pela energia do Governo, pode (e lhe convém) prestar socorro às nações que se resolverem a sacudir o jugo; e a vingança terrível que resultar da desesperação, poderá talvez  derribar do trono o orgulhoso tirano, que tão violentamente tem disposto dos alheios.





*     [Nota do autor]: Com a data de 1 de Fevereiro tivemos a proclamação que o Autor transcreveu quase por inteiro e 3 decretos. Um estabelecia a derrama da contribuição imposta por Bonaparte em Milão, aos 23 de Dezembro de 1807. Outro tratava da criação do novo Governo francês. O terceiro dava as fórmulas para as leis, decretos, ordens, sentenças, etc.

1     [Nota nossa]: Trocadilho com o terceiro versículo do livro do Génesis, segundo a Vulgata: dixitque Deus fiat lux et facta est lux ("disse Deus: haja luz. E houve luz").



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In Cartas Americanas. Publicadas por Theodoro José Biancardi [1.ª ed., 1809], Lisboa, Impressão de Alcobia, 1820, pp. 145-154. 

A contribuição extraordinária de 40 milhões de cruzados



Tardaram alguns dias para se tornar público aquele que, segundo Acúrsio das Neves, foi o "mais terrível de todos os decretos, o da devastação geral do reino, do saque aos templos e aos bens da Casa Real, do clero, das corporações e dos particulares: é da mesma data do das grandes reformas na administração pública e finanças, da abertura dos canais, protecção das letras, da religião e da justiça, do extermínio da mendicidade e de tantas promessas, como temos visto, de felicidades incalculáveis; mas somente se publicou alguns dias depois; porque todo o descaramento francês não foi bastante para se poderem unir estas duas peças num só dia. 

Primeira página do decreto 
sobre a contribuição extraordinária
decretada a 1 de Fevereiro
Depois do que temos visto e iremos vendo, não é preciso gastar tempo em reflexões sobre as mentirosas promessas desta gente; mas é muito útil aprendermos a sua linguagem e a sua lógica para, pelas suas palavras, adivinharmos os seus pensamentos. Lembremo-nos daquelas do primeiro edital do 1.º de Fevereiro: Se é necessário que façais alguns sacrifícios nos primeiros momentos, isso é para pordes o Governo no estado de melhorar a vossa sorte. Vejamos o que elas queriam dizer, e o melhoramento que eles pretendiam dar-nos pelo seguinte decreto" [Accursio das Neves, Historia Geral da Invasão dos Francezes em Portugal - Tomo II, Lisboa, Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1810, pp. 38-39]


O decreto anunciado por Acúrsio das Neves (que abaixo se transcreve) foi tornado público no dia 4 de Fevereiro e impunha sobre Portugal uma contribuição extraordinária de 40 milhões de cruzados, "cuja exacção foi sancionada pelo proprio punho de Napoleão no mesmo dia em que recebeu na cidade de Milão a noticia de que o Príncipe Regente, com parte de sua Corte e dos seus tesouros, tinha escapado às suas garras [na verdade, Napoleão tomara conhecimento desse facto no dia 17 de Dezembro, ou seja, seis dias antes de ter composto o aludido decreto]. Ficou furioso de ver mal logrado um golpe que há tanto meditava, e se ele fosse capaz de vergonha, talvez se corresse de que um Príncipe de que ele não receava, por ser pacifico e Justo, fosse o único na Europa que, numa hora, fez voar todos os seus projectos de ambição e de tirania universal: constou publicamente que se enraivecera como uma fera, que se mordera, e que nenhum dos circunstantes pudera suportar o seu frenético delírio. Foi neste acesso de mania e de vingança que ele concebeu aquele diabólico pensamento, pelo qual condenou a nação portuguesa toda inteira a perder a propriedade de todos os seus bens, móveis e de raiz, pelo simples facto da entrada de suas tropas como amigas e aliadas no meio desta infeliz nação. Que este foi o seu verdadeiro pensamento assaz o explica a palavra resgate de que se serve no seu Decreto de 23 de Dezembro; e para que a posteridade não duvide do carácter deste homem, é preciso que todos façam esta reflexão: que ele não se serviu desta palavra senão para encobrir o seu crime por meio de outro crime ainda mais horroroso; queria fazer um grande roubo em Portugal; e para isso foi necessário supor os portugueses despojados de todos os seus bens, concedendo-lhes a graça e o favor de resgatá-los pela sobredita soma de 40 milhões; achando deste modo o método de cometer as mais atrozes injúrias debaixo das aparências de quem faz benefícios, e ajuntando num só caracter a desumanidade de um ladrão com a vaidade de um benfeitor. A lição deste edital fez desmaiar quase todas as pessoas que passavam pelas ruas e se juntavam nas esquinas a certificar-se por seus olhos daquilo que repugnava ao seu entendimento; quase todos voltavam embaçados e mudos, deixando ver na palidez do rosto a desolação de sua alma; e um pobre homem que se deixou soltar algumas palavras contra este edital, que acabava de ler no largo do Quintela, foi logo preso, e por ordem de Junot metido a ferros nas prisões do Castelo [de S. Jorge]. Mas com estes lances de rigorismo não se sufocava o rancor que havia entrado em todos os corações; começou cada um a perder de todo o ânimo e a esperança, detestando e amaldiçoando, pela boca pequena com os seus amigos, a vinda e a entrada de semelhante gente em Portugal" [Fonte: José Caetano da Silva Coutinho, Memoria Historica da Invasão dos Francezes em Portugal no anno de 1807, Rio de Janeiro, Impressão Régia, 1808, pp. 70-71].


Para se ter uma pequena ideia da exorbitância do valor estipulado por Napoleão (100 milhões de francos, quantia equivalente a 40 milhões de cruzados), vejam-se as notas que atrás indicámos sobre a crise económica que o país atravessava há já alguns anos, intensificada agora pela ida da corte para o Brasil (levando consigo cerca de 150 milhões de cruzados) e pela invasão de cerca de 55.000 soldados dos exércitos franceses e espanhóis*.


Publicamos finalmente o "famoso" decreto de Junot sobre a contribuição extraordinária, que era precedido pelos três primeiros artigos do decreto de Napoleão datado de 23 de Dezembro, que já atrás publicamos na íntegra, e que o Imperador não queria que fosse impresso... 





No nosso Palácio Real de Milão
aos 23 de Dezembro de 1807.
Napoleão, Imperador dos Franceses, 
Rei de Itália, 
Protector da Confederação do Reno.
Havemos decretado e decretamos o seguinte:



Título I

Artigo 1.º Uma contribuição extraordinária de guerra de cem milhões de francos será imposta sobre o Reino de Portugal, para servir de resgate de todas as propriedades, sob quaisquer denominações que tenham, que possam ser pertencentes a particulares.
Art. 2.º. Esta contribuição será repartida por províncias e cidades, segundo as posses de cada uma, pelos cuidados do General em Chefe do nosso Exército; e tomar-se-ão as medidas necessárias para a sua pronta arrecadação.
Art. 3.º Todos os bens pertencentes à rainha de Portugal, ao príncipe regente e aos príncipes que desfrutem de apanágios, serão sequestrados. Todos os bens dos fidalgos que acompanharam o Príncipe quando este abandonou o país, e que não se tiverem recolhido ao reino até ao dia quinze*de Fevereiro de 1808, serão igualmente sequestrados.
Napoleão
  


Em consequência do Decreto de Sua Majestade, em data de 23 de Dezembro de 1807, Nós, Governador de Paris, Primeiro Ajudante de Campo de Sua Majestade, General em Chefe do Exército Francês em Portugal, temos decretado e decretamos o seguinte:
Art. I. Lançar-se-á uma contribuição extraordinária de guerra de quarenta milhões de cruzados sobre todo o Reino de Portugal. A contribuição de dois milhões de cruzados imposta e já satisfeita**depois da entrada do exército francês, entrará na conta da presente contribuição, e será satisfeita dos últimos milhões pelo nosso Recebedor Geral [mr. Felix Berthelot].
Art. II. Para esta contribuição extraordinária pagarão uma soma de seis milhões de cruzados todos os negociantes, banqueiros e rendeiros das rendas e contratos do Reino de Portugal, por intervenção da Junta do Comércio, que fará a repartição desta soma por todos os indivíduos desta classe, pro rata [= proporcionalmente], de sua fortuna conhecida ou presumida; e esta contribuição será satisfeita da maneira seguinte: o primeiro terço será pago no dia dez do próximo mês de Março; o segundo terço será pago no primeiro de Maio; e o terceiro terço será pago no primeiro de Agosto.
Art. III. Todas as mercadorias de manufactura inglesa, sendo confiscáveis pelo único facto de sua origem, serão resgatadas pelos negociantes que as possuem, e serão senhores de dispor delas à sua vontade, pagando por seu resgate o terço do seu valor, segundo as facturas. Efectuar-se-á este pagamento em três prazos e nas épocas estabelecidas no artigo precedente.
Art. IV. Todo o ouro e prata de todas as igrejas, capelas e confrarias da cidade de Lisboa e seu termo serão conduzidos à Casa da Moeda e recebidos pelo Tesoureiro dela, debaixo da inspecção e ordens do Provedor da mesma Casa, no termo de quinze dias; não ficarão nas igrejas mais que as peças de prata necessárias à decência do culto, das quais peças se remeterá uma lista assinada pela pessoa ou pessoas encarregadas da administração e guarda destes objectos; o portador receberá do Tesoureiro da Casa da Moeda um recibo em forma autêntica. Toda a pessoa convencida de fraude, seja a respeito da declaração dos objectos existentes, seja dos objectos deixados às igrejas, seja de ter desviado alguns objectos em utilidade sua, será condenada a pagar o quádruplo do valor do objecto não declarado ou desviado.
Art. V. Todos os objectos acima ditos pertencentes às igrejas, capelas e confrarias das províncias serão entregues em casa dos Recebedores das Décimas, no termo de quinze dias, debaixo das condições e penas determinadas no Art. IV. Estes recebedores passarão recibos autênticos e remeterão os objectos recebidos à Casa da Moeda de Lisboa, cujo Tesoureiro lhes passará o competente recibo. Dar-se-á uma escolta a estes recebedores, no caso de precisarem dela.
Art. VI. O produto total do valor dos ditos objectos será abatido na conta da presente contribuição.
Art. VII. Todos os arcebispos e bispos do Reino, todos os prelados e superiores de Ordens religiosas de ambos os sexos, as congregações regulares e seculares que possuem bens, fundos ou capitais postos a juros, contribuirão com dois terços do seu rendimento anual, se este rendimento não exceder 16 mil cruzados; se o seu rendimento exceder 16 mil cruzados, com três quartos deste rendimento. Tanto uns como os outros ficarão livres de pagar décima no presente ano.
Art. VIII. Quinze dias depois da publicação do presente Decreto, todos os sobreditos prelados serão obrigados a remeter ao Secretário de Estado da Repartição do Interior e das Finanças [mr. Hermann] uma declaração exacta de seus rendimentos anuais, a qual ele fará examinar e verificar; e toda a pessoa cuja declaração não for exacta, será condenada a pagar o duplo da sua contribuição; esta multa será cobrada por via de execução feita nos bens do delinquente.
Art. IX. O primeiro terço desta contribuição deverá ser entregue na caixa do Recebedor Geral das Contribuições e Rendas de Portugal no prazo de um mês depois da publicação do presente decreto pelos Prelados acima mencionados, residentes em Lisboa, e no espaço de seis semanas por aqueles que residem nas províncias.
Art. X. O segundo terço será entregue na dita caixa seis semanas depois da primeira entrega pelos Prelados residentes em Lisboa; e dois meses depois da primeira entrega, pelos que residem nas províncias.
Art. XI. O terceiro terço será entregue na dita caixa dois meses depois da segunda entrega pelos Prelados que habitam em Lisboa; e três meses depois da segunda entrega, pelos prelados que habitam nas províncias.
Art. XII. Toda a pessoa que possuir beneficio eclesiástico de 600 a 900 mil réis por ano contribuirá com dois terços do seu rendimento anual; se o benefício exceder a 900 mil réis, contribuirá com três quartos do seu rendimento anual. Os pagamentos serão feitos na caixa do recebedor ordinário da décima do distrito, debaixo da inspecção dos respectivos Superintendentes das Décimas, que verificarão as ditas declarações; e as mesmas penas serão pronunciadas contra os delinquentes. 
Art. XIII. Os respectivos recebedores das décimas, debaixo da inspecção e das ordens dos ditos superintendentes, entregarão, o mais breve possível, o importe da sua receita na caixa do Recebedor Geral das Rendas de Portugal.
Art. XIV. Todos os Comendadores das três Ordens militares [de Avis, de Cristo e de Santiago] e os da Ordem de Malta contribuirão com dois terços do rendimento das suas comendas, na forma, nos prazos e debaixo das penas acima indicadas para os prelados.
Art. XV. Todos os donatários de bens da Coroa pagarão o duplo da contribuição anual que até agora lhes tem sido imposta. A entrega será feita da maneira acima dita.
Art. XVI. Todo o senhorio de casas dentro de Lisboa e seu termo contribuirá com metade do preço anual por que as tiver alugado, no caso de estarem alugadas; se, porém, o proprietário habitar nas suas próprias casas, avaliar-se-á o seu valor. Os pagamentos, recebimentos e entregas serão feitos na forma acima mencionada, e debaixo das mesmas penas. Todos os senhorios de casas das demais cidades e vilas do Reino ficam sujeitos à mesma contribuição, debaixo das mesmas formas e penas.
Art. XVII. Todos os proprietários de terras pagarão por este ano duas décimas sobre aquela que lhes foi imposta.
Art. XVIII. Por cada parelha de cavalos ou machos de carruagem, por cada cavalo de sela e por cada criado que no presente ano foi dado ao rol dos impostos respectivos, pagar-se-á uma soma igual à que já estava determinada.
Art. XIX. Todas as casas e estabelecimentos públicos que contribuem para a despesa da polícia, pagarão, de mais, uma soma igual à sua contribuição deste ano.
Art. XX. O Juiz do Povo, debaixo das instruções e ordens do Senado, fará uma repartição de contribuição proporcional sobre todas as corporações de ofícios, quanto aos donos de loja aberta e lugares de venda nas praças públicas e fora delas; lançando e fazendo arrecadar por via de execução, e por esta vez, um imposto para a sobredita aplicação. Passar-se-ão recibos ou conhecimentos em forma autêntica a todos os que houverem de contribuir. O Senado fará entregar o produto deste imposto na caixa do Recebedor Geral das Contribuições e Rendas de Portugal, todos os oito dias até a sua inteira satisfação. O mesmo Senado expedirá ordens a todas as Câmaras das províncias da Estremadura, Alentejo e Algarve, para fazerem lançar e arrecadar o mesmo imposto, com esta diferença, que nas províncias os pagamentos serão feitos aos Recebedores Gerais das décimas, que farão as remessas todos os meses ao Recebedor Geral das Rendas e Contribuições até a inteira satisfação.
Art. XXI. O Senado do Porto fará lançar e arrecadar o mesmo imposto e da mesma maneira na cidade do Porto e seu termo; e fica encarregado de obrigar a fazer o mesmo em todas as outras Câmaras das províncias do norte, sobre as quais terá inspecção para este efeito somente.
Art. XXII. A Mesa do Bem Comum procederá a fazer, debaixo da inspecção da Real Junta do Comércio, uma igual repartição sobre todas as lojas que se acharem fora da jurisdição do Senado, com as mesmas formas e as mesmas entregas.
Art. XXIII. O General em Chefe, querendo indemnizar os infelizes habitantes da província da Beira do que têm sofrido pela passagem dos exércitos, ordena que as vilas, lugares e aldeias compreendidas entre o Tejo e a estrada de Salvaterra, Idanha-a-Nova, Castelo Branco, Sobreira Formosa e Vila de Rei, inclusivamente até ao Zêzere, à excepção de Abrantes, serão isentas dos dois primeiros terços da primeira contribuição e da imposição compreendida no Art. XXI; as vilas, lugares e aldeias próximas à estrada de Lisboa, desde Abrantes inclusivamente, sejam isentas da imposição compreendida no Art. XXI. Não são compreendidas na disposição do presente artigo as terras pertencentes aos Comendadores, aos donatários da Coroa, nem aos indivíduos denominados no Art. VII.
Art. XXIV. O Secretário de Estado do Interior e das Finanças fica encarregado da execução do presente Decreto, que será impresso e afixado por todo o Reino.
Dado no Quartel-General em Lisboa, no 1º de Fevereiro de 1808.

Junot





*  Por curiosidade, tenha-se em conta que o primeiro banco público do Brasil, fundado poucos meses depois, tinha como fundo de capital "apenas" mil e duzentos contos de réis, ou seja, três milhões de cruzados [Cf. Alvará de 12 de Outubro de 1808]


** Note-se que Junot modificou o prazo original imposto por Napoleão, que era até 1 de Fevereiro, como se pode ver no decreto original de 23 de Dezembro.


***  Referência à contribuição extraordinária de 2 milhões de cruzados decretada por Junot a 3 de Dezembro de 1807, que já aqui aludimos (veja-se também o respectivo decreto).




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Este decreto foi publicado, entre muitas outras fontes, na Gazeta de Lisboa, n.º 6, de 9 de Fevereiro de 1808.

A constituição do novo Governo de Portugal, encabeçado por Junot


No dia 2 de Fevereiro, afixou-se por Lisboa um decreto de Junot, datado do dia anterior, referente à composição do novo Governo de Portugal. Era o início dos sete meses e meio que durará a (relativa) soberania de "el-rei Junot", como posteriormente viria a ser apodado. Como atrás se indicou, Junot valeu-se para o efeito de alguns  dos membros do Conselho da Regência previamente suprimido. Ainda a este respeito, referiu Acúrsio das Neves que "o novo governo, verdadeiramente militar, presidido pelo General em Chefe, [era] dividido em repartições [em] que todas tinham à sua frente Secretários de Estado franceses de nação e Conselheiros portugueses. Estes Conselheiros eram uns autómatos, subordinados inteiramente à vontade do General, os quais entraram nesta organização por dois motivos bem palpáveis: o de enganar os povos com esta aparência de que os nacionais tinham parte no governo, e o de se aproveitarem deles, no que fosse preciso; porque como portugueses facilitariam muito as operações mais arriscadas, e porque nem Junot nem algum dos seus sequazes tinham os conhecimentos necessários para governarem o reino" [Accursio das Neves, Historia Geral da Invasão dos Francezes em Portugal - Tomo II, Lisboa, Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1810, pp. 34-35]. De facto, esta última apreciação deste autor pode ser confirmada pelas palavras do próprio Junot, como por exemplo na carta de 19 de Janeiro enviada a Napoleão, que já aqui foi transcrita, ou por uma outra carta remetida também ao Imperador, datada de 4 de Fevereiro, ou seja, já depois de ditadas as novas medidas: "Conforme as ordens de V. M. que me foram transmitidas pelo senhor de Champagny [ministro dos Negócios Estrangeiros da França], pela sua carta de 3 de Janeiro último, apressei-me a organizar um Governo provisório em Portugal; como a carta do ministro não continha quaisquer instruções, nem sobre a forma ou organização do Governo nem sobre o comportamento que eu deveria ter com os espanhóis, fiquei embaraçado; mas, como o mal maior seria não dar execução às ordens de V. M., e depois de reflectir acerca de quem poderia ser mais conveniente nas actuais circunstâncias, mandei reunir na segunda-feira [dia 1 de Fevereiro] o Conselho de Regência nomeado pelo Príncipe. Compareci na sessão e declarei que esse governo fora suprimido e que de futuro todo o reino de Portugal seria governado em nome de V. M. I. pelo General em Chefe do seu Exército. [...]. Creio, Sire, ter escolhido para o serviço de V. M. os indivíduos mais capazes de me ajudar. A nação portuguesa vê com prazer a reunião dos poderes na mão de um francês, e os portugueses ficarão contentes connosco desde que não se tornem espanhóis. A divisão que existia [segundo o tratado de Fontainebleau] era, de resto, tão prejudicial para os interesses de Lisboa que, se continuasse, nós não poderíamos manter-nos nela durante todo o mês de Fevereiro por falta de mantimentos, visto que o Alentejo é a única província que nos pode fornecer trigo. Suplico a V. M. que me permita renovar-lhe os meus receios, que não são quiméricos. Será muitíssimo difícil aguentar no mês de Março, e até duvido de que tenhamos com que viver até ao dia 25 [de Fevereiro], mas posso assegurar a V. M. que já não há mais nada, e V. M. sabe o que seria a populaça de uma cidade de 300.000 habitantes sem pão. [...] Vou ter grandes dificuldades para conseguir organizar este Reino, pois bem precisava de ter em administração a instrução necessária para isso; mas V. M. saberá, pelo menos, que nisso apliquei todo o meu tempo e todos os meus cuidados. O meu desejo de bem vos servir e a minha dedicação não são duvidosos, e devo, pois, contar com a vossa indulgência se me enganar" [Junot, Diário da I Invasão Francesa, Lisboa, Livros Horizonte, 2008, pp. 134-135 (n.º 88)]

Vejamos agora o decreto referente à constituição do novo Governo, que é uma espécie de segunda parte da proclamação de 1 de Fevereiro:




O General em Chefe do Exército Francês em Portugal, 
em nome de Sua Majestade o Imperador dos Franceses, Rei de Itália, 
e em observância das suas ordens, 
decreta:

Art. I. O Reino de Portugal será daqui por diante administrado todo inteiro e governado em nome de S. M. o Imperador dos Franceses, Rei de Itália, pelo General em Chefe do Exército Francês em Portugal.
Art. II. O Conselho de Regência criado por Sua Alteza Real o Príncipe do Brasil, no momento em que este Príncipe abandonou o Reino de Portugal, fica suprimido.
Art. III. Haverá um Conselho de Governo, presidido pelo General em Chefe, composto de um Secretário de Estado, encarregado da Administração do Interior e das Finanças, com dois Conselheiros de Governo, um encarregado da Repartição do Interior, e outro encarregado da Repartição das Finanças; de um Secretário de Estado encarregado da Repartição da Guerra e da Marinha; de um Conselheiro de Governo encarregado da Justiça e dos Cultos, com o nome de Regedor. Haverá um Secretário Geral do Conselho, encarregado dos Arquivos.
Art. IV. Os Senhores Corregedores das Comarcas, Juizes de Fora, Juizes do crime e Juízes ordinários, os Desembargadores dos diferentes Tribunais, o Senado da Câmara, o Presidente do Terreiro Público; numa palavra, todos os encarregados da administração pública são conservados, à excepção das reduções que o interesse público mostrar, que é necessário fazerem-se pelo tempo adiante, e das mudanças nos objectos relativos a seus cargos que a nova organização do Governo julgar indispensáveis.
Art. V. Mr. Hermann é nomeado Secretário de Estado encarregado da Repartição do Interior e das Finanças. D. Pedro de Mello é nomeado Conselheiro de Governo da Repartição do Interior. O Senhor d’Azevedo, da Repartição das Finanças. Mr. Lhuitte é nomeado Secretário de Estado encarregado da Guerra e da Marinha. O Senhor Conde de Sampaio é nomeado Conselheiro do Governo da Repartição de Guerra e da Repartição da Marinha. O Senhor Principal Castro é nomeado Conselheiro de Governo encarregado da Justiça e dos Cultos, com o título de Regedor. Mr. Vienez-Vaublanc é nomeado Secretário Geral.
Art. VI. Haverá em cada província um Administrador geral, com o título de Corregedor Mor, encarregado de dirigir todos os ramos da Administração, de vigiar sobre os interesses da província, de indicar ao Governo os melhoramentos que devem fazer-se, tanto a respeito da agricultura como da indústria; devendo corresponder-se, sobre qualquer destes objectos, com o Secretário de Estado da competente Repartição, e com o Regedor pelo que pertencer à Justiça e ao Culto. Haverá igualmente em cada província um Oficial General encarregado de manter a ordem e a tranquilidade: as suas funções são puramente militares, mas nas cerimónias públicas terá o seu lugar à direita do Corregedor Mor. Haverá um Corregedor Mor na província da Estremadura, que residirá em Coimbra, e um Corregedor na cidade de Lisboa e seu Termo, o qual será demarcado de uma maneira exacta.
Art. VII. O presente Decreto será impresso e afixado em todo o Reino, para ter força de Lei. O Secretário de Estado do Interior e das Finanças, o Secretário de Estado da Guerra e da Marinha, e o Regedor são encarregados da sua execução, cada um pela parte que lhe toca.
Dado no Palácio do Quartel-General, no 1º de Fevereiro de 1808.
Junot






No dia 2 também se tornou público o seguinte decreto, sobre o novo formulário que devia estar assente nos documentos oficiais produzidos pelo governo de Portugal:



O Governador de Paris, 
Primeiro Ajudante de Campo de Sua Majestade o Imperador e Rei, 
General em Chefe, 
decreta:

Da data deste em diante, todos os Actos públicos, Leis, Sentenças, etc., etc., de qualquer natureza que sejam, que até agora se faziam e processavam em nome de Sua Alteza Real o Príncipe Regente de Portugal, principiarão pela fórmula seguinte: Em nome de Sua Majestade o Imperador dos Franceses, Rei de Itália, Protector da Confederação do Reno.
Todos os actos administrativos e de execução, relativos a qualquer Decreto ou Ordem, emanados do actual Governo, terão, além da fórmula acima, a seguinte: E em consequência do Decreto ou das Ordens de Sua Excelência o Governador de Paris, Primeiro Ajudante de Campo de S. M., General em Chefe do Exército Francês em Portugal.
A fórmula empregada pelo Governo será: Em nome de S. M. o Imperador dos Franceses, Rei de Itália, Protector da Confederação do Reno, ouvido o Conselho do Governo – (quando o Conselho tiver sido consultado) – O Governador de Paris, Primeiro Ajudante de Campo de S. M., General em Chefe do Exército Francês em Portugal, decreta.
E quando não tiver havido deliberação no Conselho, a fórmula será: Em nome de S. M. o Imperador dos Franceses, etc., etc. O Governador de Paris, etc., decreta ou ordena.
O selo do Governo será o mesmo do Império Francês, com esta legenda: Governo de Portugal.
O Secretário de Estado do Interior e das Finanças, o Secretário de Estado da Guerra e da Marinha, e o Regedor são encarregados da execução do presente Decreto, cada um pela parte que lhe toca.
Dado no Palácio do Quartel-General, no primeiro de Fevereiro de 1808.
Junot




Em virtude do segundo decreto aqui transcrito, o novo Secretário de Estado do Interior e das Finanças, mr. Hermann, escreveu a seguinte carta ao impressor da Gazeta de Lisboa, António Rodrigues Galhardo, por este ter publicado nesse mesmo dia 2 de Fevereiro o referido jornal com as armas reais portuguesas e com a legenda - Com privilégio de S. A. [Sua Alteza] Real - até então vigente:




Tendo aparecido hoje a Gazeta de Lisboa impressa pela antiga forma, contra as ordens de Sua Excelência o Governador de Paris, Primeiro Ajudante de Campo de Sua Majestade o Imperador e Rei, General em Chefe; determina Sua Excelência que imediatamente se suprima a folha hoje publicada, reimprimindo-se e substituindo-se as palavras «Com privilégio do Governo», sem lhe pôr o antigo selo de armas; o que se prosseguirá da mesma sorte no futuro, ficando Vossa Mercê nesta inteligência.
Deus Guarde a Vossa Mercê.
Secretaria de Estado dos Negócios das Finanças, 2 de Fevereiro de 1808.
Francisco António Herman [sic]

De facto, quem consultar os seguintes números da Gazeta de Lisboa constatará que as armas reais portuguesas e antiga legenda desaparecem do cabeçalho do jornal, restando apenas o seu título e a legenda imposta aqui por Hermann. No entanto, a partir de 22 de Abril, a Gazeta passaria a contar com as armas napoleónicas no cabeçalho. Finalmente, a 16 de Setembro do mesmo ano, já com os franceses saindo de Portugal, o jornal passaria a ostentar novamente o seu antigo cabeçalho.







Os dois decretos aqui inseridos, bem como a proclamação de Junot também datada de 1 de Fevereiro, encontram-se publicados, entre muitas outras fontes, no Suplemento Extraordinário à Gazeta de Lisboa, n.º V, 5 de Fevereiro de 1808. Também neste número, estrategicamente, tornou-se pública a proclamação do General Loison sobre a condenação à morte de Jacinto Correia (que tinha sido fuzilado no dia 25 de Janeiro).
A carta de Hermann encontra-se no Arquivo Histórico Militar, div. 1, 14.ª sec., cx. 5, doc. 3.

A formalização da usurpação de Portugal (1 de Fevereiro de 1808)





O 1.º de Fevereiro de 1808 será sempre um dia horroroso na memória dos portugueses:  foi nele que se consumou a cena da usurpação do reino.

[Accursio das Neves, Historia Geral da Invasão dos Francezes em Portugal - Tomo II, Lisboa, Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1810, p. 23].



Na manhã de 1 de Fevereiro de 1808, a população lisboeta assistiu à disposição de um grande corpo militar entre o palácio do Barão de Quintela, que desde o início da ocupação francesa servia como residência e quartel-general de Junot, e o palácio da Inquisição, onde se reuniam os membros do Conselho da Regência instituída pelo príncipe regente D. João antes de ter rumado para o Brasil. Segundo Acúrsio das Neves, foram inclusive dispostas para o mesmo efeito 12 peças de artilharia na praça do Rossio (actual praça D. Pedro IV), diante da qual se encontrava precisamente o antigo palácio da Inquisição. O objectivo de tal aparato (o maior que os franceses tinham feito até então) era obviamente intimidar os Governadores e a própria população de Lisboa para o que em breve se anunciaria. 
De facto, ao chegar ao palácio da Inquisição, Junot declarou o fim do reinado da Casa de Bragança em Portugal, dissolveu o Conselho da Regência e assumiu o Governo de todo o país, informando que estas medidas tinham sido tomadas "em consequência da determinação de Sua Majestade Imperial e Real de tomar debaixo da sua alta protecção este país[Cf. Suplemento Extraordinário à Gazeta de Lisboa, n.º V, 5 de Fevereiro de 1808].

Fonte: Google Earth
Indicam-se a vermelho as ruas por onde estaria disposto o aparato militar, entre o palácio do Barão de Quintela (assinalado com o n.º 1) e o antigo palácio da Inquisição, situado onde actualmente se encontra o Teatro Nacional D. Maria II  (assinalado com o n.º 2).



Antigo palácio da Inquisição de Lisboa
(A gravura apresenta o aspecto do palácio por volta de 1842, já 
depois dum incêndio o ter consumido. Poucos anos depois, foi 
demolido para dar lugar ao Teatro Nacional D. Maria II).

Mas vejamos mais alguns pormenores do que realmente se passou naquele dia, revelados por uma testemunha coetânea numa obra composta pouco depois de sucederem estes factos: 
"Principiou este dia por se cobrirem as Armas Reais do portão da Ribeira das Naus com um grande painel de madeira em que se viam pintadas as Armas do Império francês, que eram uma águia com coroa imperial e um raio nas unhas, com a cifra de Napoleão. Às nove horas, apareceu no Rossio o Conde de Novion à testa de vários Regimentos franceses de Infantaria, que os fez postar em duas alas, desde a porta do Palácio da Inquisição, em que estava a Regência, atravessando o Rossio pelo Chiado acima até à porta do Quartel-General, em casa do [Barão de] Quintela. Neste meio tempo, estavam avisados todos os membros da Regência para se acharem incorporados no dito Palácio do Governo; e dizem que juntamente receberam a cominação de que por suas cabeças pagariam qualquer tumulto ou revolta que naquele dia houvesse no povo. Pouco antes do meio dia, apareceram algumas berlindas com criados da Casa Real, que conduziram para o Palácio da Regência os Ministros do Governo francês, como Hermann, que já dissemos ser Ministro das Finanças; veio também Mr. Lhuitte, Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Marinha e da Guerra; e outros funcionários públicos, que subiram para as salas da Regência. Logo depois do meio-dia, marchou Junot por entre as alas dos soldados, a cavalo, com todo o seu Estado Maior e um numeroso acompanhamento de Generais e Oficiais de graduação, no centro de um grande Batalhão de Cavalaria: vieram a recebê-lo os Ministros franceses, mesmo ao pátio do Palácio; e subindo com ele, encontraram na primeira sala os Governadores portugueses Salter e Breyner; na segunda, [D. Francisco de] Noronha e [Marquês de] Abrantes; na terceira, o Principal Castro com o resto dos seus colegas. Nesta terceira sala estava preparada uma majestosa cadeira para Junot, que, sentando-se, se levantou logo para ouvir ler de pé, por um dos seus secretários, o Decreto do Imperador, em que o constituía Governador do Reino todo, sem excepção de nenhuma de suas províncias. Imediatamente, quantas pessoas ali se acharam lhe deram os parabéns; e ele ali mesmo passou a nomear por Ministros do novo Governo francês a alguns dos extintos Governadores portugueses, que deram demonstrações de que muito o estimavam, excepto João António Salter, que absolutamente se escusou, e o Principal Castro, que não aceitou senão depois de repetidas instâncias de Junot, que lhe apertou a mão, dizendo-lhe que o mesmo Imperador lho pedia. Vieram todos acompanhar Junot até abaixo, seguindo-o na mesma ordem até ao Quartel-General; ao mesmo passo, o Conde de Novion fez dar sinal por foguetes do ar, para que o castelo desse uma salva real de vinte e um tiros, a que corresponderam as embarcações de guerra e as fortalezas, e até dizem que todos os fortes ao norte da costa até à Praça de Peniche; e desde este momento se viu tremular em quase todos os lugares públicos e do costume, o pavilhão francês" [Fonte: José Caetano da Silva Coutinho, Memoria Historica da Invasão dos Francezes em Portugal no anno de 1807, Rio de Janeiro, Impressão Régia, 1808, p. 38].


As medidas reveladas por Junot aos membros do Governo da Regência foram tornadas públicas através da seguinte proclamação, afixada em edital no mesmo dia:

Primeira folha da proclamação



O Governador de Paris
Primeiro Ajudante de Campo de Sua Majestade o Imperador e Rei, 
General em Chefe.


Habitantes do Reino de Portugal:


Os vossos interesses fixaram a atenção de Sua Majestade o Imperador, Nosso Augusto Senhor. Toda a irresolução deve desaparecer; decidiu-se a sorte de Portugal e segurou-se a sua felicidade futura, pois que Napoleão o Grande o tomou debaixo da sua omnipotente protecção.
O Príncipe do Brasil [D. João], abandonando Portugal, renunciou todos os seus direitos à soberania deste Reino. A Casa de Bragança acabou de reinar em Portugal. O Imperador Napoleão quer que este belo país seja administrado e governado todo inteiro em seu nome e pelo General em Chefe do seu Exército [Junot].
A tarefa que me impõe este sinal da benignidade e confiança de meu Amo é difícil de cumprir; mas eu espero preenchê-la dignamente, ajudado dos trabalhos dos homens mais instruídos do Reino e da boa vontade de todos os seus habitantes.
Eu tenho estabelecido um Conselho de Governo para me iluminar a respeito do bem que devo fazer; mandar-se-ão administradores às províncias, para se assegurarem os meios de melhor administração e estabelecerem nelas a ordem e a economia. Eu ordeno que se abram estradas e rompam canais para facultar as comunicações e tornar florescente a agricultura e indústria nacional, dois ramos tão necessários à prosperidade de um país, a qual será fácil de reestabelecer com um povo espirituoso, sofredor e intrépido. As tropas portuguesas, comandadas pelos mais recomendáveis de seus chefes, formarão, bem depressa, uma só família com os soldados de Marengo, de Austerlitz, de Jena, de Friedland; e não haverá entre eles outra rivalidade que a do valor e da disciplina. As rendas públicas bem administradas assegurarão a cada empregado o prémio do seu trabalho; a instrução pública, esta mãe da civilização dos povos, se derramará pelas províncias; e o Algarve e a Beira Alta terão também um dia o seu Camões. A Religião de vossos pais, a mesma que todos professamos, será protegida e socorrida pela mesma vontade que soube restaurá-la no vasto império francês, mas livre das superstições que a desonram; a justiça será administrada com igualdade e desembaraçada das delongas e arbítrios voluntários que a sopeavam. A tranquilidade pública não será mais perturbada por horríveis salteadores, resultado da ociosidade; e se acaso existirem malvados incorrigíveis, uma polícia activa livrará deles a sociedade; a disforme mendicidade não arrastará mais os seus fatos imundos na soberba capital, nem pelo interior do reino; estabelecer-se-ão casas de trabalho para este fim; o pobre estropiado ali achará um asilo e o preguiçoso será empregado em trabalhos necessários à sua própria conservação.
Habitantes do Reino de Portugal, estai seguros e tranquilos; repeli as instigações daqueles que quereriam conduzir-vos à rebelião, e a quem não importa que se derrame sangue, contanto que seja o sangue do Continente; entregai-vos com confiança aos vossos trabalhos; vós recolhereis o seu fruto. Se é necessário que façais alguns sacrifícios nos primeiros momentos, isso é para pordes o Governo no estado de melhorar a vossa sorte; eles são, aliás, indispensáveis para a subsistência de um grande plano, necessário aos vastos projectos do Grande Napoleão: seus olhos vigilantes estão fixados em vós, e a vossa futura felicidade está segura: ele vos amará tanto como aos seus vassalos franceses: cuidai, porém, em merecer os seus benefícios por vosso respeito e vossa sujeição à sua vontade.
Dado no Palácio do Quartel-General em Lisboa, no primeiro de Fevereiro de 1808.

Junot