quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

As dificuldades de Junot e as novas ordens de Napoleão


No dia 19 de Janeiro de 1808, Junot escreveu a Napoleão a carta que abaixo se publica. Trata-se duma síntese importantíssima que mostra bem (pelas próprias palavras do General em Chefe do Exército francês) as enormes dificuldades que Junot tinha para conseguir gerir o país. 


Lisboa, 19 de Janeiro de 1808 

A difícil posição em que nos encontramos obriga-me a ocupar de novo V. M. [Vossa Majestade] com a nossa situação, e peço a vossa indulgência para a extensão desta carta, na qual vou procurar explicar esta situação em todos os seus aspectos.

GOVERNO
Quando perderam o seu antigo Governo, os portugueses teriam visto com prazer que ele fosse substituído pela autoridade imediata de V. M. ou de um Príncipe francês; logo, porém que a autoridade ficou dividida em três, a incerteza do seu futuro destino trouxe-lhes o desânimo. Deixei subsistir o conselho de Regência porque só ele estava em condições de fazer andar a administração nesses primeiros dias de perturbação, reservando para mim, todavia, a direcção das ordens que ele deveria emitir. Não tinha, e continuo a não ter, quem pusesse em seu lugar; a maioria dos homens em condições de actuar partiu com o Príncipe [D. João]; procurei reunir aqueles que estavam nas províncias, mas são precisos meses para conseguir que um português se mexa; e agora, quando lhes poderia dar emprego, ignoro por completo de que forma devo fazê-lo porque V. M. ainda não me explicou que forma de Governo deseja dar a este país nem em nome de quem ele deve ser governado; e, no entanto, é exactamente esta a grande dificuldade, é por causa desta incerteza que os portugueses não agem com franqueza; aguardam esta decisão de V. M. numa contínua angústia por causa da Espanha; suplico, pois, a V. M. que me dê as suas ordens para que possamos ser capazes de dar execução aos seus desejos.

ADMINISTRAÇÃO INTERNA
Nenhum país da Europa apresenta tantas extravagâncias na sua administração, relativamente aos poderes dos Corregedores, Juízes de Fora, etc. Cada distrito tem a sua legislação própria. Sem a intervenção das autoridades nacionais, é, pois, impossível fazer andar a administração interna a não ser substituindo-a por outra, o que terá de ser o resultado de uma modificação total da forma de Governo, e isso será feito logo que V. M. o haja resolvido. Conservando a integridade de Portugal, ter-se-ia feito funcionar a antiga administração, pois todos os seus ramos terminavam em Lisboa; mas a actual divisão do território dificulta qualquer operação porque cada comandante administra à sua maneira e as ordens emanadas de Lisboa não são cumpridas na margem esquerda do Tejo.

FINANÇAS
Este assunto é, como de resto em toda a parte, um dos mais importantes; por ocasião da nossa chegada a Lisboa, havia no Tesouro 6.000 francos em papel; o Príncipe levara o último trimestre das contribuições, recentemente cobrado; todas as pensões e vencimentos, e até os salários dos domésticos, tinham um ano de atraso; o Príncipe levara todo o dinheiro amoedado existente em todas as caixas, incluindo os Depósitos, e parte da argentaria das igrejas, e os muitos fidalgos que o acompanharam levaram também todo o dinheiro que puderam reunir. Ao sair de Lisboa, a feitoria inglesa também levou quantias imensas, e os negociantes estrangeiros, que havia muitos meses observavam os acontecimentos, também tinham transferido para Londres, Paris ou Amsterdam grande parte do seu numerário; nos dois últimos meses tinham saído da cidade de Lisboa, sem exagero, cinquenta milhões em numerário.
Nos primeiros dias depois de aqui chegar, levantei contribuições no valor de cinco milhões, sendo a quarta parte em papel, a fim de ocorrer às despesas do meu exército; o administrador-geral das finanças [Hermann] tentou pôr ordem no Tesouro Público e conseguiu cobrar algumas contribuições, mas as três províncias que eu governo [Beira, Estremadura e Trás-os-Montes] são as menos boas e, por conseguinte, as imposições rendem muito pouco embora tenham sido consideravelmente multiplicadas. V. M. deve ter visto o relatório do senhor Hermann, que lhe terá demonstrado como são poucos os meios de que dispomos para acudir às despesas. 
Todos os nossos recursos existiam, pois, em Lisboa, e os mais consideráveis eram as receitas da Alfândega, agora nulas; todo o dinheiro exportado causou a destruição do comércio; nenhum negociante paga aos seus empregados, e é completamente impossível cobrar a contribuição de 100 milhões que V. M. ordenou; ainda que se conseguisse reunir toda a prata e todo o ouro amoedados que há em Portugal, não se poderia obter essa quantia. Com algum tempo, seria no entanto possível receber grande parte dela se se pudesse colectar todo o Reino. Apesar de tudo, ordenei o cumprimento do Decreto de 23 [de Dezembro]. Aguardo a todo momento as ordens de V. M.
Os bens da Coroa, os chamados bens do Infantado e os bens pertencentes às três ordens de Portugal [de Avis, de Santiago e de Cristo] e à ordem de Malta encontram-se, em grande parte, nas províncias ocupadas pelos espanhóis. Ordenei o seu sequestro logo nos primeiros dias depois de chegar a Portugal, e igualmente o dos bens dos fidalgos que acompanharam o Príncipe. Os rendimentos de todos esses bens vão entrando no Tesouro à medida que se vencem e são administrados pelo senhor Hermann; neste aspecto, está dado cumprimento ao artigo do decreto de V. M. que lhes diz respeito.
Se considerarmos legitimamente devidas todas as pensões concedidas pelo antigo Governo, a dívida pública é imensa; é indispensável que parte dessas pensões seja paga, mas só V. M. pode decidir quais, e em que termos serão consolidadas. Estou convencido de que a maioria dos pensionistas ficaria contente se as reduzíssemos a um terço, como em França, com a garantia de pagar-lhas.
Se o Reino continuar dividido, não deverá também [ter] cada porção de território a sua parte dessas pensões, na proporção das suas receitas? Todas as receitas que obtemos, venham de onde vierem, aparecem sempre metade em papel e metade em moeda; quando pagarmos às tropas do General Dupont, só lhes poderemos dar moeda; como ela já não circula no interior do país, isso fará aumentar a já tão grande raridade de numerário, mas as ordens de V. M. serão cumpridas.

MANTIMENTOS
Este assunto, do qual já falei por várias vezes a V. M., continua a ser o que mais nos inquieta; mandei fazer um trabalho até agora desconhecido em Portugal, que é o levantamento dos trigos existentes. A maior dificuldade é reuni-los num país onde não há estradas e onde são poucos os meios de transporte.
Das informações que obtive resulta que, se não recebermos trigo do exterior, ficaremos totalmente sem pão; ordenei uma compra de 4.000 moios de trigo na província do Alentejo. Esta quantidade pode bastar para alimentar o nosso exército durante 5 meses, mas é preciso pensar na alimentação da imensa cidade de Lisboa, e só do exterior podemos obter recursos; para isso, é necessário ter muito dinheiro e a liberdade no mar. 

EXÉRCITO PORTUGUÊS
Nas três províncias que eu governo havia 11 Regimentos de Infantaria, 8 Regimentos de Cavalaria e um Regimento de Artilharia. Amalgamei estes Regimentos e fiz com eles três de Infantaria, dois de Cavalaria e um Batalhão de Artilharia; cada Regimento de Infantaria tem cerca de 1.600 homens, e os Regimentos de Cavalaria têm cerca de 550. O primeiro Regimento vai partir imediatamente [para a França] e o segundo não tardará a segui-lo, bem como os de Cavalaria. O 3.º Regimento de Infantaria, formado nas províncias de Trás-os-Montes e da Beira, levará mais tempo para ficar organizado, pois não podemos reunir os homens por causa da escassez de mantimentos. Enviarei esse Regimento por Almeida e Ciudad Rodrigo. Conservarei comigo os artilheiros e dividi-los-ei de maneira que me sirvam sem que em nada possam prejudicar-me. 
Ordenei que cada Regimento de Cavalaria portuguesa enviasse 150 cavalos ao General Kellermann [Comandante da Cavalaria francesa], o que está agora a ser feito; e, para que o General Dupont [Comandante do 2.º Corpo de Observação da Gironda] e o Marechal Moncey [Comandante do Corpo de Observação das Costas do Oceano] possam tirar proveito dos cavalos que sobrarem, creio indispensável enviar os dois Regimentos montados; será mais fácil, e e haverá menos inconvenientes em mandá-los apear-se em Burgos ou em Bayonne que aqui; de resto, estou persuadido de que V. M. os vai querer conservar logo que os veja; prometi-lhes o mesmo tratamento que o do exército francês, quer em guarnição quer em marcha quer em acampamento. Um Decreto de V. M. deixá-los-ia mais seguros e contentes. Tenho a honra de vos enviar em anexo o decreto que emiti para esta organização; ordenara anteriormente que fossem dadas licenças a fim de reduzir estes Regimentos aos efectivos que pretendia dar-lhes.
V.M. deve ter recebido os relatórios e as plantas que tive a honra de lhe enviar pelo último correio; juntei-lhes a planta de Elvas, embora esta praça não nos pertença, mas pensei que V.M. gostaria de tê-la. Tenho a honra de enviar-vos hoje uma planta da cidade de Lisboa; mandei trabalhar para o acabamento desta planta, que no estado em que está apenas cobre a cidade propriamente dita; a planta completa ainda não existe e exigirá muito tempo. 
Também mandei trabalhar activamente no castelo de Lisboa a fim de o pôr em condições de defesa, e mandei fazer algumas pequenas obras no interior dos Arsenais de terra e de mar, que seriam úteis contra uma insurreição. O Coronel de Engenharia está agora a percorrer a costa, mas todas essas deslocações são excessivamente longas por causa da dificuldade das comunicações.
Tenho a honra de enviar hoje a V. M. a planta de Peniche e um relatório do General Loison sobre o estado dessa praça e do seu armamento. 
Já tenho 12 morteiros em bataria e alguns obuses na foz do Tejo. Estou a apressar na medida do possível a construção dos reparos de morteiros que nos faltam para completar o armamento do porto.
Está-se a trabalhar activamente na confecção das pranchas necessárias para o nosso abarracamento; nada aqui é feito com prontidão; necessito da indulgência de V. M. porque, se não consigo fazer tudo quanto desejais, é porque a minha posição é realmente difícil e me têm faltado até agora os meios de execução.
Os relatórios do mar acusam sempre, de há dias a esta parte, 8 navios e 2 fragatas [inglesas].

De Vossa Majestade Imperial e Real,
Sire

[Fonte: Junot, Diário da I Invasão Francesa, Lisboa Livros Horizonte, 2008, pp. 129-133]


Alguns dias depois de ter enviado esta carta, Junot recebeu novas ordens de Napoleão, através de uma carta de 3 de Janeiro remetida pelo ministro das relações exteriores francês, Champagny (sucessor de Talleyrand). Esta carta (à qual não tivemos acesso) não devia divergir muito duma outra que Junot certamente também teria recebido naqueles dias, da parte do General Clarke, ministro da guerra francês, cujo conhecimento que temos se deve à seguinte carta que Napoleão enviou ao próprio Clarke, no dia 4 de Janeiro:



Paris, 4 de Janeiro de 1808.

Fazei expedir por um correio extraordinário a ordem ao General Dupont de dirigir para Portugal os Regimentos provisórios e todos outros pertencentes ao corpo do Exército do General Junot.
Escrevei ao General Junot que ele deve ter em conta que os ingleses farão os maiores esforços, logo que a estação o permita, em suscitar toda a espécie de desordens no país; que ele não deve, portanto, perder tempo para organizar um governo provisório, enviar as tropas portuguesas para a França, armar os fortes e estabelecer boas baterias em Lisboa, e tomar todas as medidas que lhe ordenei; e portanto vós lhe ordenareis novamente a sua severa execução; é uma quimera pensar que se possa segurar o país doutra forma; que ele tem apenas Janeiro e Fevereiro para executar essas medidas e submeter verdadeiramente o país; que ele deve igualmente impor uma contribuição de guerra e tomar medidas para que o exército seja abundantemente provido de tudo; que ele necessita tomar posse da praça de Elvas e de todas as praças-fortes; que ele igualmente deve conservar a administração e a soberania da totalidade de Portugal, até que a convenção dos limites seja feita. Finalmente, recomendai ao General Junot que vos envie relatórios da situação exactos.
Em lugar de enviardes um correio, enviai um oficial inteligente, que vos informe do resultado do que terá visto sobre a situação de artilharia do exército, das praças do país, e que envie um mapa enorme de Lisboa.

[Fonte: Correspondance de Napoléon Ier – Tome XVI, Paris, Imprimerie Impériale, 1864, pp. 269-270 (n.º 13429)]. 


Estas ordens, recebidas por Junot em data incerta (mas seguramente na última semana de Janeiro de 1808), iriam provocar uma mudança brusca na administração francesa de Portugal. Até aí, por todas as razões já apontadas (nomeadamente na própria carta de Junot que acima se transcreveu), Junot tinha adiado o cumprimento das ordens de Napoleão, em particular de algumas das ordenações mais severas que tinha recebido alguns dias antes. Um dos principais entraves à administração francesa, sobretudo no que tocava à ordenação da arrecadação da pesada indemnização imposta a Portugal pelo Imperador a 23 de Dezembro de 1807, era o facto do país estar dividido em três partes; agora, porém, Napoleão traía os próprios termos do Tratado de Fontainebleau e dizia que a totalidade de Portugal deveria estar nas mãos dos franceses...


Deixámos para último a seguinte carta de Napoleão a Junot, por não podermos precisar quando foi recebida, embora talvez também o tenha sido antes de 1 de Fevereiro:


Paris, 7 de Janeiro de 1808

Recebi a vossa carta de 21 de Dezembro. Vejo com pena que, desde o 1.º de Dezembro, dia da vossa entrada em Lisboa, até ao dia 18 [sic], quando se começaram a manifestar os primeiros sintomas de insurreição, não fizestes nada. No entanto, não parei de vos escrever: «Desarmai os habitantes; enviai todas as tropas portuguesas; praticai exemplos severos; mantende-vos numa situação de severidade para serdes temido». Mas parece que a vossa cabeça está cheia de ilusões, e que não tendes conhecimento algum do espírito dos portugueses e das circunstâncias onde vos encontrais. Não reconheço aí um homem que foi elevado na minha escola. Não tenho dúvidas que, em consequência dessa insurreição, tenhais desarmado a cidade de Lisboa, feito fuzilar umas sessenta pessoas e tomado as medidas convenientes. Todas as minhas cartas predisseram o que vos começa a acontecer e o que em breve acontecerá. Sereis vergonhosamente expulso de Lisboa, logo que os ingleses executem um desembarque, se continuais a agir com essa moleza. Perdestes um tempo preciso, mas ainda tendes tempo. Espero que as minhas cartas, que sucessivamente fostes recebendo, vos tenham determinado sobre que partido tomar, e que tenhais adoptado medidas fortes e vigorosas, sem deleitar-vos com ilusões e tagarelices. Estais num país conquistado, e agis como se estivésseis em Bourgogne. Não tenho nem o inventário da artilharia nem o das praças-fortes; não conheço nem o seu número nem a sua situação. Nem sequer sei se as ocupais. Ainda não enviastes ao ministro o percurso das vossas etapas desde Bayonne até à vossa primeira praça-forte, nem nota alguma sobre a situação do país. No entanto tenho fortes razões para querer isto. Enfim, sou levado a crer que as minhas tropas ainda não estão em Almeida. Se ocorrer algum acontecimento, encontrar-vos-eis bloqueados pelos portugueses. Em tudo isto há uma singular imprevidência.  
[Fonte: Lettres Inédites de Napoléon Ier (An VIII - 1815) Tome Premier, Paris, Librairie Plon, 1897 (deuxième édition), p. 136].