domingo, 14 de novembro de 2010

Uma Carta Americana sobre o Governo de Portugal por três soberanos, contendo reflexões sobre a licença para a venda das fazendas inglesas

Plácido a Venâncio


Dezembro de 1807

Quando vi no princípio deste mês que o General Junot, em vilipêndio da autoridade suprema delegada ao Conselho da Regência, promulgava decretos como se fora soberano, entendi que o escandaloso usurpador dominava todas as províncias do Reino; mas sei agora que o General espanhol Taranco, depois de imitar o francês*, transcrevendo quase por inteiro as determinações insertas na Proclamação de que já te falei**, criou uma Junta Provisional para administrar as rendas públicas das províncias [de] Entre-Douro e Minho e Trás-os-Montes***; e sei que o General Solano confirmou nos empregos os Magistrados do Alentejo, Algarve e Setúbal****; e como a jurisdição dos ministros só emana do Príncipe, assim como só a ele compete o direito de fazer e abrogar as leis, segue-se que a soberania, indivisível por natureza, está em Portugal repartida entre o nosso legítimo Soberano, o Imperador dos franceses, e o Rei de Espanha.
Duvido, meu amigo, que dure longo tempo esta monstruosa sociedade; mas enquanto as armas não decidem a questão, falemos do que se vai ordenando, tendente tudo (ainda que nao se saiba como) ao nosso aumento e prosperidade.
Era evidente que desde o momento em que se declaram confiscadas as manufacturas inglesas, sem excepção alguma, ficara também proibida a sua venda; porém, os espíritos iluminados que nos regem não viram a consequência senão quando lha mostraram em diferentes representações. Diferindo a elas se publicaram três decretos; o primeiro em 19 [de Dezembro], que dá aos donos das fazendas inglesas a liberdade de as venderem, mas obstando-lhe com tantos estorvos, que dificultuosamente lha poderiam coarctar mais sem lha tirar de todo; o segundo em 21, que regula o pagamento das letras sacadas, aceitas ou endossadas por vassalos da Inglaterra; o terceiro em 22, que ordena a forma do desembarque das fazendas confiscadas a bordo de navios ancorados no porto de Lisboa. Falarei somente do primeiro, porque muitas reflexões são aplicáveis aos outros.
As condições singulares com que se permite a venda sao as seguintes: I. ter feito o vendedor a declaração a que o obrigou o Decreto de 4 do corrente, individuando a espécie, qualidade, medida, quantidade e preço do que se quer vender; II. fazer-se a venda com autoridade do Comissário perante quem se tiver feito a declaraçao; III. ficar o vendedor responsável pelo produto da venda até se decidir a sorte da mercadoria; IV. dar, se lhe for pedida, uma caução que corresponda ao valor das vendas; V. lançar o vendedor no seu livro o importe de cada venda, a quantidade do que vendeu, e o nome do comprador.
Os raros engenhos que vieram proteger-nos seguem invariavelmente o baixo sistema de afectar servir o público, ordenando o injusto, ou só relativo aos seus interesses e criminosos desígnios. Em vao se finge no preâmbulo do Decreto querer por ele evitar o mal que o público sofreria se saíssem da circulação os géneros e manufacturas da Grã-Bretanha; a menor reflexão nos convence que as condições são tantas cautelas, ditadas pela cobiça que os desassossega, e unicamente imaginadas com o fim de prevenir fraudes***** que poderiam diminuir o roubo. Nada importa que nas actuais tristes circunstâncias seja quase impossível depositar cauções ou achar fiadores; e que a responsabilidade a que a lei vincula o vendedor seja especialemente danosa ao comerciante de pequenos fundos, pois não se atreverá a dispor do produto das vendas, sabendo que lhe pode ser pedido por pessoas a quem custam tão pouco as injustiças; tudo é indiferente, contanto que se leve avante o projecto.
O receio de lhe escapar algum covado de pano ou alguma vara de fita lhe sugeriu sem dúvida a fútil lembrança de obrigar o vendedor a lançar o nome do comprador no seu diário. Os frívolos autores desta esquisita cautela não reparam que não sabendo os donos das fazendas os nomes de todas as pessoas que lhas compram, podia o comprador Paulo dizer que era Francisco, e que só por este engano inevitável dos nomes ficava sendo perfeitamente impossível conferir a confissão do comprador com o assento do livro, único fim deste subtil expediente.
Tão ridículas futilidades nem dignas são da nossa censura; mas desejara que se conservassem para mostrar aos vindouros a que homens encarregava o grande Napoleão o governo das nações que dizia subjugadas.

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*** Por determinação de 20 [de Dezembro], publicada no Porto.

**** Por determinação de 31 [de Dezembro], publicada em Setúbal. No mesmo dia foi D. Joaquín María Sotelo nomeado Juiz Maior das ditas províncias


***** Por esta palavra entende-se aqui somente a inobservância do preceito; porque, rigorosamente falando, não pode chamar-se fraude ao meio de evitar uma injustiça. 



in Cartas Americanas publicadas por Theodoro José Biancardi, Lisboa, na Impressão de Alcobia, 1820, pp. 138-142 [todas as notas são do autor].