sábado, 5 de dezembro de 2009

Duas "cartas americanas"




A obra Cartas Americanas, romance de Theodoro José Biancardi em forma de epistolário entre personagens fictícios, foi publicada pela primeira vez em 1809 [a edição original pode ser consultada aqui]. Onze das cinquenta e quatro cartas incluídas abarcam, pela parte que nos interessa, o período da chamada primeira invasão francesa. O "autor" dessas onze cartas perfeitamente verossímeis, Plácido, conta ao seu correspondente Venâncio alguns factos reais passados em Portugal (mais particularmente em Lisboa), misturados com comentários críticos e irónicos ao governo francês, incluindo trechos de decretos e notícias da imprensa (com a respectiva citação das fontes consultadas, como que para dar mais veracidade ao discurso, como indica Simone Cristina Mendonça de Souza num interessante estudo sobre esta obra), alusões a boatos e outros episódios curiosos. 


As duas cartas que se seguem referem-se ao período até agora aqui abordado. A primeira (carta XLI) é sobre a saída da família real para o Brasil e a entrada dos franceses em Lisboa. A segunda (carta XLII) é uma análise à Proclamação de Junot datada de 17 de Novembro de 1807. As notas com asterisco e os itálicos são da edição consultada (a segunda). O conteúdo entre parêntesis rectos visa tornar o texto mais claro.  Como em todos os textos aqui transcritos (à falta de indicação em contrário), procedeu-se à actualização da linguagem e da pontuação. 








Plácido a Venâncio


 Dezembro de 1807
[...]


Depois de muitas e encontradas notícias sobre a marcha do Exército francês e sua entrada neste território, julgando uns que o Príncipe o esperava na Corte, outros que se ausentava para a América, entrou em 22 [de Novembro] uma fragata inglesa neste porto [de Lisboa] e propagou-se universalmente a opinião de que se retirava para o Brasil.
Quando por provas incontestáveis me convenci que o projecto se reduzia a facto, tremi considerando-lhe as consequências. Supus-me subitamente em dias de anarquia, no meio duma cidade abundante em vadios, licenciosos e até de novos miseráveis pela ausência do Soberano, cuja desesperação, ainda que momentânea, podia ser tão terrível como a crueldade habitual dos perversos. Persuadi-me que, tratando-se de salvar a família augusta, embarcariam ao menos as tropas da capital; e que o povo, sem o freio do temor dos castigos, se dividiria em bandos, saltearia as casas e cometeria por toda a parte roubos e assassínios. 
Apesar de tão justos receios, e de um generoso agasalho que se me ofereceu no Alentejo, não sei que força desconhecida me segurava e detinha na cidade. Parecia-me que invejaria, se saísse, a sorte dos que ficavam, e não podendo resistir ao apetite louco de ser presente àquilo mesmo que temia, fiquei em Lisboa, onde nada houve de extraordinário, nos primeiros momentos, senão a tranquilidade inesperada. 
No dia 27, das onze horas para o meio-dia, embarcou no cais de Belém o Príncipe e a família real, enquanto o povo apinhado nos montes vizinhos do rio e derramado pela beira dele, se entretinha sossegadamente com a partida das diferentes famílias que se despediam, com lágrimas, dos amigos e parentes que deixavam. 
É incrível a pressa e desordem com que se efectuou o embarque. Foram filhas sem pais, mulheres sem maridos, e pessoas da alta nobreza se acharam a bordo sem fato, sem roupa, e com pouco ou nenhum dinheiro. Não individuo estes factos, porque as circunstâncias alongam em demasia a narração; e basta o que digo para formares ideia da confusão que reinou na precipitada saída do no nosso Soberano; o qual, deixando regulada a Regência do Reino*, que por editais se publicou no dia 28, largou deste porto a 29, com parte da Esquadra portuguesa e grande número de navios mercantes. Acompanharam o Príncipe, além de muitos nobres, os títulos seguintes: o Duque de Cadaval; os Marqueses de Angeja, de Alegrete, de Lavradio, de Torres Novas, de Pombal, de Belas; os Condes de Redondo, de Cavaleiros, de Belmonte, da Caparica, de Aveiras; e o Visconde de Anadia**. 
Desamparados e expostos aos horrores da guerra com que pareciam ameaçar-nos a Inglaterra e a França, julgávamos certa a nossa ruína, quando no dia 30 de manhã nos ofereceu a protecção de Bonaparte o General Junot, que entrou no mesmo dia em Lisboa, e tomou para seu quartel a casa do Barão de Quintela. Algumas tropas se encaminharam logo para as torres da barra, outras se alojaram nos quartéis dos nossos soldados, conventos e castelo; e o povo, conservado na antiga fleima, viu sem inquietação a entrada dos novos hóspedes. 
Vários discursos se fazem sobre a nossa insensibilidade ou covardia, mas eu creio que uma nação de filósofos não procedia com mais acerto. Se a Espanha mais prevista se tivesse acautelado contra o astucioso político por quem tem loucamente sacrificado riquezas e vassalos, era bem digno do nome português unirmos as nossas forças com as suas, e disputarmos de concerto ao inimigo comum o passo dos Pirinéus. Seria porém loucura rematada querermos, fracos, sós e pobres, fazer rosto a dois contrários tão poderosos, um dos quais aliciado por enganosas promessas, não vê que a nossa escravidão é o prelúdio da sua. 


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** Foram também D. Rodrigo de Sousa Coutinho; D. Joao de Almeida de Melo e Castro; e António de Araújo de Azevedo. 






***




Plácido a Venâncio




Dezembro de 1807


Estou assombrado, meu amigo, com a polícia e governo dos nossos ilustres Protectores! Espero que a tua admiração não seja menor que a minha. 
Apesar de ser verdade indubitável que o poder de legislar compete unicamente ao Soberano*, o General francês estabeleceu nas fronteiras deste Reino castigos contra os portugueses culpados de sedição ou assassínio**, isto é, arrogou-se insolentemente [a] uma faculdade que não lhe pertencendo nem sequer pelo desgraçado título de conquistador***, só lhe podia ser conferida pela vontade geral.
Examinemos agora as ordenações que este legislador incompetente inseriu na sua primeira proclamação, bem digna de melhor analítico. Para que possas dispensar o original, traslado as palavras formais do texto, que divido em duas partes.
I.ª Todo o soldado do exército francês, que for achado roubando, será punido com o mais rigoroso castigo. Todo o indivíduo de qualquer ordem que seja, que tiver percebido alguma contribuição injustamente, será conduzido perante um conselho de guerra, para ser julgado segundo todo o rigor das leis. Todo o indivíduo do Reino de Portugal, não sendo soldado da tropa de linha, que se apanhar fazendo parte de qualquer ajuntamento armado, será arcabuzado. Todo o indivíduo convencido de ser chefe de ajuntamento ou de conspiração, tendente a armar os cidadãos contra o exército francês, será arcabuzado.
Nesta primeira parte, como [que] para nos dar uma prova da imparcial administração da sua justiça, são ameaçados os franceses e portugueses. Noto contudo que contra aqueles não se especificam penas; diz-se vagamente que serão punidos com o mais rigoroso castigo; que serão julgados com todo o rigor das leis; mas os portugueses têm logo a consoladora certeza de serem arcabuzados. Observo também que o legislador somente se propõe castigar nos franceses o crime de latrocínio; e nos portugueses o de morte ou rebelião. Esta diferença é muito acertado; proíbe-se aos soldados que furtem para não diminuírem o quinhão dos chefes; e não se lhes proíbe que matem porque nada vale a vida dum indivíduo que não pertence à Grande Nação. Pelo contrário, proíbe-se aos portugueses que matem, porque os soldados são necessários para sustentar a execução das violências projectadas, e não se lhes proíbe que roubem, porque seria loucura imaginar que podíamos roubar recovas de mendigos, descalços e rotos. 
II.ª Toda a cidade, vila ou aldeia onde se derem tiros de espingarda contra a tropa francesa, será queimada. Toda a cidade, vila ou aldeia onde se assassinar um indivíduo que pertença ao Exército francês, pagará uma contribuição que não poderá ser menor que três vezes o seu rendimento anual. Os quatro habitantes principais servirão de reféns para o pagamento da soma; e para que a justiça seja exemplar, a primeira cidade, vila ou aldeia onde for um francês assassinado, será queimada, e arrasada inteiramente. 
Parece coligir-se destas determinações que será queimada a povoação onde se derem tiros contra a tropa francesa; e que pagará o triplo da renda anual aquela em que se matar um indivíduo do Exército. Como se cominam penas diferentes nas duas hipóteses, julgo que também são diversos os crimes; e como na segunda se fala expressamente do caso de assassinar um francês, entendo que o da primeira é dar tiros baldados contra a tropa francesa. Portanto, se dois ou mais portugueses atirarem aos soldados e não acertarem o alvo, será queimada a terra onde o fizerem; mas se matarem algum, somente ficará sujeita a pagar uma contribuição; donde eu concluo que não matar um francês é pior do que matá-lo.
Tal seria a melhor inteligência deste informe pedaço, se o legislador nada mais acrescentaria; mas com as três ultimas linhas vejo dificuldades invencíveis. No princípio diz que a terra onde se matar um francês pagará uma contribuição; no fim diz que se arrasará; uma vez impõe este último castigo a toda a cidade, vila ou aldeia; outra vez, somente à primeira; dou as mãos, meu amigo, não sei desenredar a meada.
Diz-me agora, Venâncio, qual será a sorte deste Reino, sujeito a tão bons senhores? Que se pode esperar dum Governo que publica leis ininteligíveis e cruéis que a ignorância e o despotismo formaram, e que a força armada protegerá atropelando os nossos sagrados direitos? Como se ignora que a pena é sempre proporcionada ao delito, e que só incorre nela o culpado? Porque se confunde o cidadão sossegado com o turbulento, o justo com o perverso? Quem se julgará seguro podendo padecer pelos crimes dos outros? Fujamos, se possível é, deste país; o Governo de Constantinopla não é mais abominável que o francês. 


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* Ou seja, um só homem como na monarquia, ou alguns como na aristocracia; ou todos como na pura democracia. 
*** Porque dizia na dita Proclamação que os portugueses deviam recebê-lo como amigo auxiliando as vistas pacíficas do seu Príncipe.