À medida que o Exército invasor começava a instalar-se em Portugal, alguns oficiais do mesmo "exigiam nas casas em que se aboletavam, não só o necessário mas o supérfluo. Um escolhia os melhores quartos para seu aposento; outro, desdenhando a comida que se lhe oferecia, designava (como se as pagasse) as iguarias do jantar e da ceia; este apresentava a lista numerosa dos trastes que não podia dispensar no seu serviço; aquele mudava em pouco tempo de alojamento, só para conduzir ao novo os móveis de que se tinha servido no antigo" [Theodoro José Biancardi, Cartas Americanas, p. 136].
Diz Domingos Alves Branco Muniz Barreto, na sua Memoria dos Successos acontecidos na cidade de Lisboa [fls.7-8], que "o Comendador das Caldas foi despejado das casas do largo do Loreto [actual largo do Chiado] para servir de Quartel de ordens e para residência de três Generais de Brigada e de dois Ajudantes de Campo do General em Chefe [...]. Mas todos iam jantar à casa do [barão de] Quintela.
[A] Mr. Delaborde, General imediato a Mr. Junot [...] se lhe destinou a casa de António de Araújo de Azevedo, da qual se mudou em breves dias para o palácio do Ex.mo Duque de Cadaval [que partira para o Brasil], trazendo consigo em carros de mato e em carros comuns toda a mobília e quanto achou na mesma casa, fosse ou não precioso. Não se satisfazendo com esta herança, tomou igualmente posse de todos os móveis que achou no mesmo palácio, e pertenciam ao Duque, não deixando para a residência de seu irmão, o Ex.mo D. Nuno, mais que os pequenos quartos que fazem frente para o Rossio, sendo impedido de se comunicar pelo interior do pátio e portão do palácio, o que o obrigou a mandar abrir uma nova escada, para a frente do mesmo Rossio.
Mr. Thiebault, terceiro General imediato a Delaborde, foi alojar-se em casa do deputado da Junta do Comércio Jacome Ratton [actual sede do Tribunal Constitucional] [...].
Mr. Laffet, General de Cavalaria, foi alojar-se em casa do negociante Francisco António Ferreira, levando consigo grande comitivas; e este é o que fez maior despesa com a hospedagem, depois do Barão de Quintela, que só em cera para luzes do General Mr. Junot e sua comitiva, despende diariamente, como já fica dito, 19$200 réis.
Todos os outros Generais do Exército, tanto de Divisão como de Brigada, Oficiais maiores e Oficiais subalternos, foram alojados por todas as casas de Lisboa, sem distinção de classes nem de empregos.
Os soldados foram aquartelados nos conventos do Carmo, da Boa-Hora, dos Paulistas, de S. Domingos, de S. Pedro de Alcântara, de Belém e de Mafra.
Além destes alojamentos, foram obrigados os fanqueiros, capelistas, mercadores, ourives e todas as outras corporações de ofícios, darem por cada indivíduo quatro camas chamadas rabecas [i.e., enxergas de palha], e outros tantos cobertores em que foram multados para dormirem os soldados franceses. Os mercadores foram os mais lesados nesta contribuição, porque além do que já tinham dado, foram de novo multados cada um em 200 covados [132 metros] de baeta ou baetão [tecidos de lã] para cobertores.
Logo depois dos referidos alojamentos, ordenou o General Mr. Junot [que] fosse chamado o Intendente das Cavalariças, Joaquim da Costa e Silva, para lhe dar uma relação circunstanciada do número de coches, seges, bestas e cavalos pertencentes a V.A.R. [Vossa Alteza Real]; o que, executando em breve tempo, houve neste artigo a maior prostituição. As mesmas carruagens em que V.A.R. rodava e a sua Real Família, e que se deviam respeitar, não só foram distribuídas pelos Generais franceses para seu uso, e dos Oficiais maiores e civis, mas que até se destinavam para conduzir nelas dançarinas e outras mulheres semelhantes, e com os mesmos criados de V.A.R. e com as librés da casa".
Acúrsio das Neves acrescenta alguns pormenores a estas delapidações e humilhações na sua História Geral da Invasão dos Franceses em Portugal e da Restauração deste Reino [Tomo I, 1809, Lisboa, pp. 239-247].
Os Generais franceses fazem requisições de diversos objectos que dizem ser indispensáveis para uma profusa e lauta mesa, e para a sustentação dos seus domésticos, como se manifesta das inclusas contas e requisição [estes documentos não se encontram na fonte]. A multiplicidade destes objectos fazem uma despesa considerável; não se tem até agora designado donde deverá sair; e ninguém se presta à venda dos géneros, sem que se lhe indique a certeza e modo do pagamento. Sirvam-se Vossas Excelências dar providência sobre este artigo, pois que sem ela não se pode satisfazer às mesmas requisições, só empregando-se a força e a extorsão.
(Fonte: António Ferrão, A 1.ª Invasão Francesa, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1925, pp. 9-10)
Diz Domingos Alves Branco Muniz Barreto, na sua Memoria dos Successos acontecidos na cidade de Lisboa [fls.7-8], que "o Comendador das Caldas foi despejado das casas do largo do Loreto [actual largo do Chiado] para servir de Quartel de ordens e para residência de três Generais de Brigada e de dois Ajudantes de Campo do General em Chefe [...]. Mas todos iam jantar à casa do [barão de] Quintela.
[A] Mr. Delaborde, General imediato a Mr. Junot [...] se lhe destinou a casa de António de Araújo de Azevedo, da qual se mudou em breves dias para o palácio do Ex.mo Duque de Cadaval [que partira para o Brasil], trazendo consigo em carros de mato e em carros comuns toda a mobília e quanto achou na mesma casa, fosse ou não precioso. Não se satisfazendo com esta herança, tomou igualmente posse de todos os móveis que achou no mesmo palácio, e pertenciam ao Duque, não deixando para a residência de seu irmão, o Ex.mo D. Nuno, mais que os pequenos quartos que fazem frente para o Rossio, sendo impedido de se comunicar pelo interior do pátio e portão do palácio, o que o obrigou a mandar abrir uma nova escada, para a frente do mesmo Rossio.
Mr. Thiebault, terceiro General imediato a Delaborde, foi alojar-se em casa do deputado da Junta do Comércio Jacome Ratton [actual sede do Tribunal Constitucional] [...].
Mr. Laffet, General de Cavalaria, foi alojar-se em casa do negociante Francisco António Ferreira, levando consigo grande comitivas; e este é o que fez maior despesa com a hospedagem, depois do Barão de Quintela, que só em cera para luzes do General Mr. Junot e sua comitiva, despende diariamente, como já fica dito, 19$200 réis.
Todos os outros Generais do Exército, tanto de Divisão como de Brigada, Oficiais maiores e Oficiais subalternos, foram alojados por todas as casas de Lisboa, sem distinção de classes nem de empregos.
Os soldados foram aquartelados nos conventos do Carmo, da Boa-Hora, dos Paulistas, de S. Domingos, de S. Pedro de Alcântara, de Belém e de Mafra.
Além destes alojamentos, foram obrigados os fanqueiros, capelistas, mercadores, ourives e todas as outras corporações de ofícios, darem por cada indivíduo quatro camas chamadas rabecas [i.e., enxergas de palha], e outros tantos cobertores em que foram multados para dormirem os soldados franceses. Os mercadores foram os mais lesados nesta contribuição, porque além do que já tinham dado, foram de novo multados cada um em 200 covados [132 metros] de baeta ou baetão [tecidos de lã] para cobertores.
Logo depois dos referidos alojamentos, ordenou o General Mr. Junot [que] fosse chamado o Intendente das Cavalariças, Joaquim da Costa e Silva, para lhe dar uma relação circunstanciada do número de coches, seges, bestas e cavalos pertencentes a V.A.R. [Vossa Alteza Real]; o que, executando em breve tempo, houve neste artigo a maior prostituição. As mesmas carruagens em que V.A.R. rodava e a sua Real Família, e que se deviam respeitar, não só foram distribuídas pelos Generais franceses para seu uso, e dos Oficiais maiores e civis, mas que até se destinavam para conduzir nelas dançarinas e outras mulheres semelhantes, e com os mesmos criados de V.A.R. e com as librés da casa".
Acúrsio das Neves acrescenta alguns pormenores a estas delapidações e humilhações na sua História Geral da Invasão dos Franceses em Portugal e da Restauração deste Reino [Tomo I, 1809, Lisboa, pp. 239-247].
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A este respeito, veja-se o seguinte ofício do Intendente Geral da Polícia de Lisboa:
Ofício de Lucas Seabra da Silva aos Governadores do Reino
(4 de Dezembro de 1807)
Os Generais franceses fazem requisições de diversos objectos que dizem ser indispensáveis para uma profusa e lauta mesa, e para a sustentação dos seus domésticos, como se manifesta das inclusas contas e requisição [estes documentos não se encontram na fonte]. A multiplicidade destes objectos fazem uma despesa considerável; não se tem até agora designado donde deverá sair; e ninguém se presta à venda dos géneros, sem que se lhe indique a certeza e modo do pagamento. Sirvam-se Vossas Excelências dar providência sobre este artigo, pois que sem ela não se pode satisfazer às mesmas requisições, só empregando-se a força e a extorsão.
(Fonte: António Ferrão, A 1.ª Invasão Francesa, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1925, pp. 9-10)
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No meio de todos estes vexames, publicava-se finalmente no dia 9 de Dezembro a seguinte Ordem do dia. Segundo o referido Acúrsio das Neves, "que efeito podia produzir esta ordem contra o exemplo que o próprio Junot estava dando em casa do Barão de Quintela, e os outros Generais naquelas em que se aquartelavam? Continuou-se na mesma, ou talvez com maior excesso" (id., p. 243).
Ordem do Dia do Exército Francês
Quartel-General de Lisboa, aos 9 de Dezembro de 1807
Repetidas queixas se fizeram a Sua Excelência Mr. o General em Chefe [Junot], de que muitos Oficiais, apesar da Ordem geral do Exército n.º 22, deliberaram-se a pedir mesa nas casas onde estão alojados.
Sua Excelência sente muito esta desobediência e espera que a mesma não será mais praticada.
Sua Excelência lembra aos Senhores Oficiais que tanto em Lisboa como nas mais cidades de Portugal se devem considerar como estando de Guarnição, não tendo outro direito de pedir às casas mais que alojamento, lume e luz.
Sua Excelência lembra-lhes finalmente que os Oficiais do Exército de Portugal serão tratados como os do Grande Exército [de Napoleão]; receberão um soldo extraordinário, que lhes será exactamente pago, e que bastará para suprir as despesas do seu tratamento e sustentação.
Por ordem de Sua Excelência Mr. o General em Chefe, Junot
O General Chefe do Estado Maior, General Thiébault.
(Fonte: Joaquim José Pereira de FREITAS, Biblioteca Histórica, Política e Diplomática da Nação Portuguesa – Tomo I, Londres, Casa de Sustenance e Strecht, 1830, p. 63).