quinta-feira, 19 de maio de 2011

Carta de Geoffroy Saint-Hilaire aos professores-administradores do Museu de História Natural de Paris (19 de Maio de 1808)





Lisboa, 19 de Maio de 1808.


Meus respeitáveis e caros colegas:

Acabei de visitar as colecções de história natural da Ajuda, e o que vi ultrapassou todas as minhas expectativas. Não vos arrependereis nada por terdes expedido um comissário, pois o vosso comissário desfruta de toda a liberdade que exigem as suas operações.
Metade da colecção é composta por animais brasileiros, e toda essa metade falta-vos [ao Museu de História Natural de Paris, entenda-se]. A principal riqueza das colecções da Ajuda é formada por mamíferos, aves e insectos. Como já tive a honra de vos contar, meus caros colegas, vi alguns animais novos nos gabinetes de Madrid, e [agora] reencontrei-os nos da Ajuda. Temos grandes motivos de satisfação, sobretudo porque todos estes animais estão perfeitamente conservados. Disseram-me o motivo: quase todos provêem duma remessa que foi feita há dois anos atrás*.
Vi estas colecções como um simples amador, pois ainda não recebi uma autorização formal para agir em vosso nome e em nome do Ministro. Desta forma, não conheci senão o que está exposto. Fiz algumas perguntas, e informaram-me que tinham muitas outras coisas em depósito, mas que a falta de espaço e de preparação era o motivo pelo qual não se expunham ao público.
A colecção que mais vos interessará será sobretudo a dos macacos: é bastante considerável. Exceptuando quatro ou cinco, os restantes são novos. Levar-vos-ei finalmente o verdadeiro Simia belzebuth [segundo a denominação de Lineu] ou Guaribu de Marcgrave**; ou melhor, erro ao particularizar, pois levar-vos-ei todos os animais que este antigo naturalista nos deu notícias curtas e até agora insuficientes.
Deixei o gabinete da Ajuda com a maior satisfação: ter-me-ia sido bastante penoso empreender uma viagem tão longa e tão fatigante se não tivesse chegado a um resultado importante, e ao resultado que havíeis prometido a vós mesmos.
Uma sala considerável é consagrada à mineralogia. Peço perdão ao sr. Haüy por não ter nada para lhe dizer hoje, porém, fosse pela minha ignorância sobre esse assunto, fosse por me entreter bastante com os objectos que estão ligados mais directamente aos meus estudos, passei ao de leve pela [sala da] mineralogia; tudo o que percebi é que todas as amostras são muito pequenas.
Ainda não vi as colecções botânicas. Na minha próxima carta informarei os senhores Desfontaines, Jussieu e Thouin [acerca deste assunto], pois hei-de conseguir saber alguma coisa daqui a dois dias.
Vou jantar hoje à casa do General em Chefe [Junot]; espero determinar com ele a maneira como me apropriarei de tantas riquezas.
É essencial para a minha missão que não faltem os objectos que vos devem ser levados. Espero, ademais, que o poder [dos franceses] prevalecerá sobre o querer [dos portugueses].
O General em Chefe aprecia as ciências e tudo o que possa engrandecer o domínio do espírito humano; tenho muita confiança no que ele achará adequado ordenar.
Assim que os meus [próximos] passos estejam traçados, escreverei a Sua Excelência o Ministro do Interior para lhe prestar contas; e para que sejais, meus caros colegas, mantidos perfeitamente ao corrente das minhas operações, enviar-vos-ei cópias dos meus ofícios a Sua Excelência.
Aceitai, caros e respeitáveis colegas, os meus ternos sentimentos e saudações respeituosas.

Geoffroy St-Hilaire.

[P.S.] Lalande apresenta-vos os seus respeitos; vamos separar-nos. Ele continuará junto das colecções da Ajuda, a fim de não perder nenhum tempo. No que me diz respeito, ocupo um magnífico aposento na casa dum escanção da Inquisição, um ex-negociante condecorado com a Ordem de Cristo. É o melhor dos Inquisidores, dado que tem para comigo uma bondade e uma complacência infinita.

[Fonte: E.-T. Hamy, "La mission de Geoffroy Saint-Hilaire en Espagne et en Portugal (1808). Histoire et documents", in Nouvelles Archives du Muséum d'Histoire Naturelle, Quatrième série - Tome dixième, Paris, Masson et C. Éditeurs, 1908, pp. 1-66, pp. 43-44].

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Notas:

* Segundo o autor do artigo onde foi publicada originalmente esta carta, Geoffory Saint-Hilaire alude aqui muito provavelmente às colecções de animais, plantas e minerais recolhidas pelo naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira, que tinha estado durante quase dez anos no Brasil. [Cf. Manuel José Maria da Costa e Sá, "Elogio do Doutor Alexandre Rodrigues Ferreira", in Historia e Memorias da Academia Real das Sciencias de Lisboa - Tomo V. Parte II, Lisboa, Na Typografia da mesma Academia, 1818, pp. LVI-LXXX, sobretudo a partir da p. LXV; "Notícia dos Escritos do Senhor Doutor Alexandre Rodrigues Ferreira", in id., ib., pp. LXXXI-LXXXIX].
Algumas das caixas que Alexandre Rodrigues Ferreira tinha remetido para Portugal continuavam em 1808 por abrir, facto que muito impressionou Geoffroy Saint-Hilaire, quando finalmente lhe foi concedido o acesso aos depósitos do "gabinete" da Ajuda. Em cartas que posteriormente viria a escrever aos seus colegas do Museu de História Natural de Paris, anotou a este respeito que muitos herbários com plantas do Brasil, de África ou da Índia estavam ainda virgens, precisamente porque ninguém se tinha dado ao trabalho de os abrir. Um deles, feito em 1785, foi encontrado por Geoffroy Saint-Hilaire bastante devorado por insectos. Tal desleixo impressionou tanto Saint-Hilaire que, já depois da Convenção chamada de Sintra, pressionado pelos ingleses para devolver as caixas com os materiais que entretanto tinha recolhido em Portugal, viria a apelar ao naturalista Sir Joseph Banks, presidente da Royal Society, escrevendo-lhe uma carta onde dizia preferir entregar-lhe as ditas caixas do que deixar que o seu conteúdo permanecesse assim desprezado e ignorado pela ciência, pois tinha a convicção de que "depois de mim, estas caixas não serão abertas"... 
Curiosamente, e fazendo justiça às palavras de Geoffroy Saint-Hilaire, algumas das caixas que em 1808 continuavam virgens, assim permaneceriam por mais  200 anos, como foi o caso da recente "descoberta", na Universidade de Coimbra, de uma colecção de peixes do Brasil, recolhida nos finais do século XVIII pelo citado Alexandre Rodrigues Ferreira. [Cf. André Jegundo, "Colecção raríssima do séc. XVIII de peixes do Brasil encontrada na Universidade de Coimbra", in Público, 17 de Janeiro de 2011; "Colecção rara de peixes do século XVIII descoberta na UC", Ciência Hoje, 18 de Janeiro de 2011; "Colecção de peixes do século XVIII encontrada em Coimbra", in Super Interessante].

*Geoffroy Saint-Hilaire viria a descrever este e outros símios do Brasil no seu artigo "Tableau des quadrumanes, ou des Animaux composant le premier Ordre de la Classe des Mammifères", in Annales du Muséum d'Histoire Naturelle - Tome dix-neuvième, Paris, Chez G. Dufour et Compagnie, 1812, pp. 85-122, p. 108.