segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Carta do Bispo e Presidente da Junta Suprema do Porto ao Almirante Séniavin, comandante da esquadra russa ancorada no Tejo (22 de Agosto de 1808)



A Junta do Supremo Governo instituído nesta cidade do Porto, à qual se têm unido e subordinado as províncias do norte de Portugal para o fim da restauração do mesmo reino, e restituição dele ao seu legítimo Soberano, o Príncipe do Brasil, tendo reintegrado as suas antigas alianças com o reino da Galiza, e com a sua fidelíssima aliada a Grã-Bretanha, estimaria muito poder renovar na Real presença do Imperador de todas as Rússias o Tratado de aliança ultimamente celebrado entre a Corte de Petersburgo e Sua Majestade Fidelíssima. Mas não permitindo o aperto do tempo nem a grande distância, que o actual Governo de Portugal dirija directamente a Sua Majestade Imperial os seus respeitosos ofícios, toma a deliberação de representar ao Ilustríssimo e Excelentíssimo Almirante da esquadra russiana [sic] fundeada no porto de Lisboa os sinceros desejos que tem de conservar a mesma inteligência e boa harmonia que entre as duas Corôas havia no tempo da partida de Sua Alteza Real para os seus Estados do Brasil.
Porto, 22 de Agosto de 1808.


Carta secreta do Brigadeiro-General Frederick von Decken ao General Hew Dalrymple, Comandante do Exército britânico em Portugal (22 de Agosto de 1808)


Porto, 22 de Agosto de 1808


Senhor:

Sua Excelência terá recebido a carta secreta do passado dia 18, que tive a honra de remeter-vos através do Brigadeiro-General Stewart, sobre as comunicações de Sua Excelência o Bispo do Porto relativas à sua renúncia do Governo nas mãos da Regência estabelecida pelo Príncipe Regente. Para além do que tive a honra de referir sobre este assunto, peço licença para acrescentar que Sua Excelência o Bispo quis hoje que eu acautelasse Vossa Excelência, no caso que possa ser desejável que ele mantenha o Governo nas suas mãos até que a vontade do Príncipe Regente seja conhecida, que ele não abandonará o Porto, e o assento do Governo deverá necessariamente, em tal caso, continuar nesta cidade. Sua Excelência o Bispo pensa ser seu dever informar-vos desta circunstância assim que for possível, pois prevê que a cidade de Lisboa será preferida para o assento do Governo logo que o Exército britânico a tenha em seu poder. 
Se o assento do Governo temporário permanecer no Porto, o melhor método a adoptar, em relação às outras províncias de Portugal, parece ser que enviarão deputados para tal lugar, para os propósitos de tratar os negócios relativos às suas próprias províncias; da mesma maneira como as províncias de Entre-Douro e Trás-os-Montes enviam agora os seus representantes.
Uma das principais razões pelas quais Sua Excelência o Bispo pode apenas aceder em continuar à cabeça do Governo, com a condição deste permanecer no Porto, é porque ele está convencido que os habitantes da sua cidade não lhe permitirão que a abandone, a não ser por ordem do Príncipe Regente. 
Também poder ser aconselhável manter o assento do Governo no Porto, porque supõe-se que Lisboa estará num estado de grande confusão nos dois primeiros meses depois dos franceses a abandonarem.

Carta do Almirante Cotton à Junta de Sines (22 de Agosto de 1808)


A bordo da nau de Sua Majestade Britânica a Hibernia, fora da barra do Tejo, 22 de Agosto de 1808.


Meus Senhores:

Tenho a honra de reconhecer o recebimento da sua carta com data de 16 do corrente, pedindo-me que deixasse a fragata Comus para guardar a costa de Sines. O Capitão Smith, Comandante da dita fragata, é despachado agora por mim expressamente para informar a Vossas Excelências das várias causas que motivam a sua retirada por breve tempo daquele serviço, em que tem sido tanto tempo, e tão bem empregado, a principal das quais causas é ajudar efectivamente a bloquear o Tejo e impedir que o comum inimigo já quase reduzido à última extremidade, não escape com os tesouros que tem roubado neste país; para efeito de semelhante serviço, pequenas fragatas, da natureza da Comus, são da primeira utilidade.
Além disso, tenho bem fundadas esperanças que nada tem que temer semelhante à horrível calamidade que Vossas Excelências dizem ter acontecido em Évora, pois que toda a força do inimigo está actualmente dirigida contra o exército britânico ao norte do Tejo.
O Capitão Smith os informará duma gloriosa batalha dada em Roliça entre os franceses e ingleses, auxiliados estes pelos portugueses, aos 17 do corrente, no qual a divisão do General Delaborde ficou totalmente destroçada, como também da derrota do General Junot no dia 21 seguinte. Tenho esperado com ansiosa expectação ouvir que os leais habitantes das vilas e lugares se têm unido aos de Sines e se têm aproximado a Setúbal, aonde entendo que ficam poucos ou nenhuns franceses, e onde está ancorado um navio de guerra para cooperar com os valorosos sujeitos que determinam esforçar-se para manter a sua independência, ou mesmo a sua existência.
Parece-me supérfluo repetir a Vossas Excelências que, para serem bem sucedidos, é preciso que sejam unânimes, nem intimidados por ameaços, nem seduzidos com promessas, e que a cordial e enérgica cooperação de todos os estados [=classes sociais] é necessária para sustentar uma causa tão grande e gloriosa qual é a em que todo o verdadeiro e leal português está actualmente empenhado.
Tenho a honra de ser, etc.

[Fonte: José Accursio das Neves, Historia Geral da Invasão dos Francezes em Portugal, e da Restauração deste Reino - Tomo V, Lisboa, Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1811, p. 46-47].

Armistício para suspensão das hostilidades entre os Exércitos britânico e francês (22 de Agosto de 1808)



Suspensão de armas concordada entre o Tenente General Sir Arthur Wellesley, da Ordem de Bath, de uma parte, e o General de Divisão Kellermann, Grão Oficial da Legião de Honra, Comendador da Ordem da Coroa de Ferro, Grão-Cruz da Ordem do Leão de Baviera, da outra parte, ambos munidos de poderes dos respectivos Generais dos exércitos francês e inglês. 




Quartel-General do Exército inglês, 22 de Agosto de 1808 


Art. I. A partir desta data haverá uma suspensão de armas entre os Exércitos de Sua Majestade Britânica e de Sua Majestade Imperial e Real, Napoleão I, com o objectivo de negociar-se uma Convenção para a evacuação de Portugal pelo exército francês. 

Art. II. Os Generais em Chefe dos dois Exércitos, bem como o Comandante em Chefe da frota britânica na barra do Tejo, ajustarão um dia para se reunirem naquela parte da costa que julgarem conveniente, para negociar e concluir a dita convenção. 

Art. III. O rio Sizandro formará a linha de demarcação estabelecida entre os dois Exércitos; Torres Vedras não será ocupada por nenhum deles. 

Art. IV. O General em Chefe do Exército inglês responsabilizar-se-á por incluir os exércitos portugueses nesta suspensão de armas, e para eles será estabelecida a linha de demarcação entre Leiria a Tomar. 

Art. V. Concorda-se provisoriamente que o Exército francês não será considerado, em caso algum, como prisioneiro de guerra; e que todos os indivíduos que o compõem serão transportados à França com as suas armas, bagagens e todas as suas propriedades privadas, das quais nada se tirará. 

Art. VI. Nenhum indivíduo, seja português ou duma nação aliada da França, ou francês, será chamado para prestar contas pela sua conduta política; a sua respectiva propriedade será protegida, e ele será livre para se retirar de Portugal dentro dum prazo limitado, com as suas propriedades. 

Ar. VII. Reconhecer-se-á a neutralidade do porto de Lisboa para a frota russa, ou seja, quando o Exército ou a frota inglesa estiveram em posse da cidade e do porto, a referida frota russa não será perturbada durante a sua estadia, nem impedida quando quiser fazer-se à vela, nem perseguida quando sair do porto, senão depois do prazo fixado pelas leis marítimas. 

Art. VIII. Toda a artilharia de calibre francês, bem como os cavalos da cavalaria, serão transportados para a França. 

Art. IX. Esta suspensão de armas não se poderá romper sem um aviso prévio de quarenta e oito horas. 

Feita e concordada entre os Generais acima nomeados, no dia e ano acima mencionados. 

Arthur Wellesley 
Kellermann, General de Divisão 


Artigo adicional. As guarnições das praças ocupadas pelo exército francês serão incluídas na presente Convenção, se não tiverem capitulado antes do dia 25 deste mês. 

Arthur Wellesley 
Kellermann, General de Divisão 


[Fonte: The London Gazette Extraordinary, n.º 16182, 16 September, 1808, pp. 1257-1258. Outras traduções disponíveis in Correio Braziliense, Setembro de 1808, pp. 309-311; José Accursio das Neves, Historia Geral da Invasão dos Francezes em Portugal, e da Restauração deste Reino - Tomo V, Lisboa, Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1811, pp. 156-163 (inclui o texto original e respectiva tradução); Simão José da Luz Soriano, História da Guerra Civil e do Estabelecimento do Governo Parlamentar em Portugal. Compreendendo a História Diplomática, Militar e Política deste Reino, desde 1777 até 1834 – Segunda Época - Tomo V – Parte I, Lisboa, Imprensa Nacional, 1893, pp. 108-109; Julio Firmino Judice Biker, Suplemento á Collecção dos Tratados, Convenções, Contratos e Actos Publicos celebrados entre a Corôa de Portugal e as mais potências desde 1640 – Tomo XVI, Lisboa, Imprensa Nacional, 1878, pp. 30-35 (também inclui o texto original e respectiva tradução). Texto original em francês in Luís Henrique Pacheco Simões (org.), "Serie chronologica da correspondencia diplomatica militar mais importante do General Bernardim Freire de Andrade, Commandante em Chefe do Exercito Portuguez destinado ao resgate de Lisboa com a Junta Provisional do Governo Supremo estabelecido na cidade do Porto e o Quartel General do Exercito Auxiliar de S. Magestade Britanica em Portugal", in Boletim do Arquivo Histórico Militar - Vol. I, Lisboa, 1930, pp. 199-200 (doc. 32)].

__________________________________________________

Nota: 

Este documento foi escrito originalmente em francês, e em tal língua foi publicado pela primeira vez na Inglaterra, no citado número extraordinário da London Gazette. Apesar de logo de seguida ter sido traduzido para português e publicado também em Londres no Correio Braziliense de Setembro de 1808, este armistício (tal como o texto da Convenção definitiva, erroneamente chamada "de Sintra") tardaria bastante em ser publicado em Portugal, onde, à excepção de poucos indivíduos a quem foi remetida uma cópia (truncada ou integral) dos seus artigos, ignorava-se completamente o seu teor. 
Para uma melhor contextualização deste documento, ver o que escrevemos acerca da primeira versão (não ratificada) da Convenção Definitiva para a evacuação de Portugal pelo Exército francês.

Carta do Comendador Joaquim Pais de Sá, enviado ao Quartel-General britânico, ao General Bernardim Freire de Andrade (22 de Agosto de 1808)



[Vimeiro], 22 de Agosto de 1808; às 5 horas [da tarde].


Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor: 



O General Kellermann, com um Ajudante, está fechado com o General inglês [Dalrymple], tratando, segundo se pensa, da Capitulação. 
O General Wellesley me disse que rogava a Vossa Excelência que fizesse alto junto à Lourinhã, e que não fizesse espécie um Esquadrão de Cavalaria que veio com a bandeira de trégua.
Hoje pela manhã chegou outro Tenente-General mais antigo, chamado Sir Hew Dalrymple.
Sou de Vossa Excelência, etc.

Joaquim Pais

[Fonte: Luís Henrique Pacheco Simões (org.), "Serie chronologica da correspondencia diplomatica militar mais importante do General Bernardim Freire de Andrade, Commandante em Chefe do Exercito Portuguez destinado ao resgate de Lisboa com a Junta Provisional do Governo Supremo estabelecido na cidade do Porto e o Quartel General do Exercito Auxiliar de S. Magestade Britanica em Portugal", in Boletim do Arquivo Histórico Militar - Vol. I, Lisboa, 1930, pp. 153-227, p. 198 (doc. 31)].

Carta do General Wellesley a Lord Castlereagh (22 de Agosto de 1808)



Vimeiro, 22 de Agosto de 1808


Meu caro Senhor:

Depois de vos ter escrito na manhã passada, fomos atacados pela totalidade do exército francês, continuando Sir Harry Burrard a bordo do navio, e obtive uma vitória completa. Era impossível que tropas algumas se comportassem melhor do que as nossas; somente tivemos falta de umas poucas centenas mais de cavalaria para aniquilar o exército francês.  
Enviei o meu relatório sobre esta acção a Sir Harry Burrard, que o enviará para a Inglaterra. Vereis aí que mencionei o Coronel Burne do 36.º Regimento de uma maneira muito particular; e garanto-vos que nada me daria tanta satisfação quanto saber que algo se fez por este velho e louvável soldado. O 36.º Regimento é um exemplo para este exército.
Sir Harry desembarcou durante a tarde, já a meio do combate, e quis que eu continuasse as minhas próprias operações; e evitando-se assim algum desapontamento que poderia ter sentido se não tivesse uma oportunidade de concluir uma acção em que tanto estava empenhado, fui amplamente recompensado pela satisfação declarada pelo exército de que a segunda e mais importante vitória tinha sido ganha pelo seu velho General. Também tenho o prazer de acrescentar que isto teve mais efeito do que todos os argumentos que poderia ter usado para convencer o General [Burrard] a marchar, e creio que ele ordenará a marcha amanhã. De facto, se ele não o fizer, seremos envenenados aqui pelo fedor dos mortos e feridos, ou morreremos de fome, pois já se comeu tudo o que havia das redondezas.
Perante o número de franceses mortos sobre o terreno, e o número de prisioneiros e feridos, penso que eles perderam não menos de 3.000 homens. A força que nos atacou era bastante considerável, e provavelmente não inferior a 14.000 homens, incluindo 1.300 dragões e artilharia, e 300 caçadores a cavalo.
Sir Hew Dalrymple chegou na noite passada, e desembarcará esta manhã.
Acreditai em mim, etc., 

Arthur Wellesley


Carta do General Wellesley ao Duque de Richmond, Lord Tenente da Irlanda (22 de agosto de 1808)


Campo do Vimeiro, 22 de Agosto de 1808


Meu caro Duque:

Sir Harry Burrard chegou aqui na noite do dia 20, mas não desembarcou, e, como sou o mais felizardo dos homens, Junot atacou-nos na manhã de ontem com toda a sua força, e nós derrotámo-lo completamente. Vereis o relatório da acção. Os franceses perderam não menos de 3.000 homens.
Desde que vos escrevi pela última vez, vim para aqui para facilitar o desembarque e reunião [do corpo] de Anstruther, o qual decorreu na manhã do dia 20. Durante a tarde chegou [o corpo de] Acland, vindo do Tejo: desembarquei-o imediatamente, e ele reuniu-se a nós antes da acção da manhã de ontem. Contudo, Sir Harry somente desembarcou quando a acção estava quase acabada. 
Apesar de termos, com a reunião de Acland, não menos de 17.000 homens, e entre 6.000 a 7.000 portugueses nas nossas vizinhanças, Sir Harry achou que estes números não eram suficientes para derrotar 12.000 ou 14.000 franceses, determinando-se a esperar pelo corpo de [John] Moore, apesar de tudo o que pude instar sobre o assunto. A acção de ontem teve, contudo, maior efeito que toda a minha eloquência, e creio que ele [= Harry Burrard] marchará amanhã. Se ele me tivesse permitido mover, na tarde de ontem, aquela parte do exército que não foi empregue na manhã, os franceses não iriam parar até que alcançassem Lisboa.
Acreditai em mim, etc.,

Arthur Wellesley


Carta do General Wellesley ao Duque de York (22 de Agosto de 1808)





Vimeiro, 22 de Agosto de 1808



Omiti escrever a Vossa Alteza Real até que tivesse que comunicar algo que merecesse a vossa Real atenção; e espero que a acção que as tropas travaram ontem corresponda a tal descrição.
Escrevi ao Coronel Gordon no dia 18, a partir da Lourinhã, e dei-lhe um relato detalhado das ocorrências até àquela data. No dia 19 marchei para o Vimeiro, de forma a garantir uma melhor protecção ao desembarque da brigada do General Anstruther, que esperava que fosse feita na Maceira [Porto Novo]. O General Brigadeiro Anstruther desembarcou durante aquela tarde e durante a noite de 19 para 20, a cerca de oito milhas a norte da Maceira, tendo reunido-se comigo na manhã do dia 20. A minha intenção era marchar, na manhã de 21, pela estrada de Mafra, à volta da esquerda da posição do inimigo em Torres Vedras e na sua retaguarda; e pretendia que a brigada do General Brigadeiro Acland, que apareceu na costa a meio desse dia, desembarcasse na Maceira durante a tarde, e se juntasse ao exército naquela noite. O General Sir Harry Burrard, contudo, chegou à costa da Maceira na tarde do dia 20, e determinou que o exército devia permanecer no Vimeiro até que fosse reforçado pelo corpo de Sir John Moore, que estava a reembarcar na baía do Mondego.
O desembarque da brigada do General Acland efectuou-se durante a tarde e noite do dia 20, tendo juntando-se ao exército por volta das seis da manhã do dia 21.
Durante a noite de 20 para 21 as minhas patrulhas deram-me informações sobre os movimentos do inimigo; mas como éramos bastante inferiores em cavalaria, as minhas patrulhas não puderam ir muito longe, e naturalmente as suas informações eram muito vagas, e não fundadas em bases muito sólidas. Mas pensei que era provável que, se não atacasse o inimigo, ele iria atacar-me; e preparei-me para o conflito ao amanhecer, posicionando a artilharia de calibre 9 e reforçando a minha direita, por onde esperava o ataque, devido à forma como o inimigo tinha patrulhado o alinhamento naquele ponto  durante os dias 19 e 20. Contudo, ele apareceu, por volta das oito horas da manhã do dia 21, sobre a esquerda, começando-se então uma acção cujo relatório detalhado é dado na cópia inclusa duma carta que escrevi a Sir Harry Burrard sobre este assunto. Incluo igualmente um plano do terreno, que explicará mais claramente a natureza dos diferentes movimentos feitos pelo inimigo e pelas nossas tropas. 
Não posso dizer muito a favor das tropas: a sua bravura e disciplina foram igualmente notáveis; e devo acrescentar que esta foi a única acção onde estive em que tudo se passou tal como foi ordenado, e em que os oficiais encarregados da conduta das tropas não cometeram erro algum. Penso que se a brigada do General Hill e as guardas avançadas tivessem avançado para Torres Vedras, assim que se tornou óbvio que a direita do inimigo seria derrotada pela nossa esquerda, tendo esta aproveitado a sua vantagem, a retirada do inimigo para Torres Vedras seria cortada, e poderíamos estar em Lisboa antes dele; isto, na verdade, se tivesse permanecido algum exército francês em Portugal. Mas Sir Harry Burrard, que já estava neste momento sobre o terreno, continuou a pensar que era mais aconselhável que o exército não saísse do Vimeiro; e o inimigo fez uma boa retirada para Torres Vedras.
Sir Hew Dalrymple chegou esta manhã, e tomou o comando do exército.
Tenho a honra de ser, etc.,

Arthur Wellesley


Extracto duma carta privada dum militar britânico (22 de Agosto de 1808)



Vimeiro, a 22 milhas de Lisboa, 22 de Agosto.


No dia 17 os nossos bravos camaradas forçaram uma passagem [no alto das montanhas] sustentada por 6.000 franceses, façanha esta que somente podia ser conseguida por tropas britânicas. 
As nossas companhias ligeiras carregaram sobre os franceses, provocando-lhes uma fuga desordenada e uma matança medonha. Não podiam passar mais que dois homens ao mesmo tempo. 
Mal tenho tempo de vos informar duma acção mais gloriosa travada ontem neste lugar. Marchámos para este terreno no passado dia 18, descansámos no dia 20, e no dia 21, por volta das nove da manhã, vimos o inimigo avançar sobre as colinas, no número de cerca de 12 a 15.000 homens. Parte do nosso exército moveu-se em direcção ao mar, e a restante manteve-se nas suas linhas, esperando que o inimigo chegasse, o que este fez do modo mais determinado, impelindo os nossos pontos avançados diante dele.
Por fim, a direita do nosso exército carregou sobre o inimigo, tomando-lhe 16 peças de artilharia, carros [de munições], cavalos, etc. O inimigo pensou cortar a nossa esquerda e carregou com cerca de 5.000 homens, que no entanto foram completamente derrotados com grande matança, e perderam o seu segundo no comando*. O Regimento [britânico] n.º 82 perdeu um Oficial, o Tenente Donkin. Fomos completamente vitoriosos. O inimigo perdeu 4.000 homens; as suas mochilas estavam cheias com os seus saques: dinheiro, prata de igrejas, etc.; tenho um grande cálice, retirado de uma das suas bolsas. Há 14 dias que não tiro a roupa. O inimigo envenenou alguns poços no dia 17, e por este motivo alguns homens foram envenenados. Vi um do Regimento n.º 32 e outro do n.º 6 morrendo em agonia depois de beberem desses poços. 
Adeus! Escrevo-vos sobre o terreno.


_________________________________________________________________

Nota:

* Como se depreende da carta de Wellesley a Harry Burrard sobre a batalha do Vimeiro, constava no exército britânico que Thiébault tivesse sido morto, o que não correspondia de todo à verdade.

Carta do Capitão William Warre aos seus pais (22 de Agosto de 1808)




Vimeiro, 22 de Agosto de 1808


Meus amados pais:

Desde que vos escrevi há alguns dias atrás, através do Coronel Brown, tivemos um dia bastante glorioso e memorável para a Inglaterra. Os franceses atacaram-nos ontem na nossa posição com toda a sua força, perto de 15.000 homens. Esperava-se que o ataque fosse de madrugada, e teria-o sido, se eles não se tivessem atrasado devido ao [mau estado dos] caminhos. Repousamos as nossas armas cerca de 2 horas, depois de termos descansado antes da madrugada, como habitualmente, quando chegaram os piquetes do Regimento n.º 40, que faz parte da brigada do General Ferguson, e foram dadas ordens para se prepararem as armas.  
O nosso nobre General, sobre cuja bravura e conduta é quase impossível dar-se uma ideia, foi logo para a montanha, estando os nossos postos a cerca de meia milha de distância duma pequena aldeia, Vimeiro. Conseguimos aí perceber que o inimigo avançava para atacar o centro do exército, e uma forte coluna estava marchando para circundar a colina sobre a qual estava a brigada do General, com Cavalaria e Artilharia; mas como tiveram que dar uma volta considerável, tivemos todo o tempo para nos prepararmos. 
Sir Arthur Wellesley (que foi o comandante, pois Sir Harry Burrard ainda não tinha desembarcado) deu ordens a várias brigadas, e tomou as disposições mais magistrais. O centro do exército, do qual estávamos separados por um vale fundo, foi logo atacado vigorosamente, mas [os franceses] receberam um tal revés, que rapidamente tivemos a glória de ver os franceses a vacilar e depois a afrouxar o seu ataque. Nesta ocasião, a brigada do General Ferguson e a do General Spencer, que comandava esta ala, foi vivamente atacada, mas o nosso nobre General, cerca de meia-hora depois do fogo ter começado, ordenou à sua brigada para carregar, conduzindo-a ele próprio de uma maneira que fica além de todo o louvor (basta também dizer que o Comandante em Chefe [Dalrymple]* considera que ele contribuiu bastante para a vitória mais completa que se poderia ter obtido sem cavalaria para o seguir). Os franceses cederam, e seguiram-se três vivas exclamados por toda a brigada. Uma parte reagrupou-se, mas os Regimentos n.os 36 e 71 carregaram sobre eles com uma impetuosidade irresistível, conduzidos pelo nosso bravo General, e forçaram-os a abandonar as suas armas, das quais foram tomadas quatro [peças de artilharia], juntamente com tantos atrelados. A vitória era agora certa, apesar deles se terem reunido uma vez mais, e foram novamente dispersos pelo Regimento n.º 71. A nossa artilharia completou o triunfo deste dia glorioso. Pareceria presunçoso falar da conduta de qualquer corpo. Cada soldado parecia um herói. Em algumas vezes o fogo era tremendo, e o campo encheu-se com os nossos bravos camaradas carregando as armas. O meu cavalo, uma criatura bonita e agradável que tinha recebido poucos dias antes no Porto, a troco de 38 moidores [sic], foi atingido em diferentes parte e caiu morto. Obtive um outro que pertencia a um Dragão, mas tão cansado que não se podia mexer; e quando um tiro raspou a minha capa, pensei que seria melhor desmontar a juntar-me ao Regimento n.º 36, que estava avançando, e tive a honra de ficar com ele durante o resto da acção. As baixas dos franceses são muito grandes, para cima de 1.200 mortos e feridos deixados no campo, para além dos prisioneiros. O nosso exército perdeu cerca de 500, entre mortos e feridos, e um bom número de Oficiais. O único que conheceis é o pequeno Ewart, atingido na perna, mas espero que não seja muito grave. O exército francês era comandado por Junot, Laborde, Loison, Chalot, Brennier. Os dois últimos foram aprisionados com um grande número de Oficiais, e foram tomadas treze peças de canhão.
Podemos louvar Ferguson pela sua bravura, perícia e calma sobre um fogo como granizo. Os seus homens, uma boa tropa do 20.º Drns. [sic], foram atingidos perto de mim, e receei morrer. O meu pobre amigo Stuart do Regimento n.º9 morreu há dois dias atrás, depois da batalha na Roliça, e todos o lamentam - para mim foi uma perda da qual ainda não me recuperei. Estava muito ligado a ele. Não tenho tempo para escrever mais particularidades. Estou muito fatigado, por ter estado ontem até depois das 5 da tarde recolhendo os feridos ingleses e franceses, e conduzindo-os a um lugar em segurança dos cobardes portugueses, que não lutam um décimo dum francês com armas, mas que roubam e matam os pobres e miseráveis feridos. Se tivesse tempo poderia dizer-vos tais coisas sobre estes meus compatriotas**, que não vos admiraríeis pelo meu despeito sobre eles, e por ter desagradavelmente mudado a minha opinião sobre o seu carácter.
Estou muito contente por vos dizer que nenhum membro do nosso Estado-Maior foi morto. Sofri um bom bocado durante toda a noite e o dia de hoje devido a uma dor de intestinos, mas agora estou melhor. Desejava termos avançado hoje para continuarmos a nossa vitória, sem lhes darmos tempo para se reunirem depois de um revés a que estão pouco habituados.
Adeus; Deus vos abençoe a todos. Com o melhor amor, do vosso filho mais afeiçoado,

William Warre


_______________________________________________________________

Nota: 

* O General Dalrymple tinha sido nomeado General em Chefe do exército britânico destinado à Península Ibérica, mas apenas conseguiu desembarcar na praia do Porto Novo (a 4 quilómetros do Vimeiro) no dia 22 de Agosto, ou seja, um dia depois da batalha do Vimeiro.

** Como já atrás dissemos, William Warre nasceu em Portugal. 

Notícias publicadas na Minerva Lusitana sobre o combate da Roliça (22 de Agosto de 1808)



22 de Agosto

Recebeu-se ontem de pessoa fidedigna e testemunha presencial a seguinte relação da marcha do Exército combinado [luso-britânico], que se dirigiu pela estrada de Alcobaça em direitura ao inimigo, o qual se achava acampado junto a S. Mamede, ao pé da Roliça; e da acção do dia 17 do corrente, que começou às 8 horas da manhã e que acabou às 5 da tarde. 

Domingo [dia 14] pela manhã marchou o Exército inglês em direitura ao inimigo, que se achava acampado em número de 2.000 homens para lá de Cela, em distância de Alcobaça coisa de meia légua. O inimigo levantou imediatamente o campo com a notícia da marcha das nossas tropas, e se retirou para o campo de S. Mamede, junto ao lugar da Roliça, meia légua para lá de Óbidos, aonde se fez forte com a demais tropa que aí havia deixado, ganhando uma posição muito vantajosa, e de mui difícil tomada.
O Exército que seguia a estrada de Alcobaça parecia ser de 10.000 homens ingleses, além de uma divisão de portugueses de batalhão e meio de Valença, outro de Chaves, e dois esquadrões de Cavalaria. 
As tropas inglesas chegaram na Segunda-feira a Alcobaça, acampando-se uma légua para diante, junto à Calvaria; mas logo depois continuaram no caminho para as Caldas. Na noite desse mesmo dia continuou-se a marcha até Salir do Mato, distante meia-légua das Caldas.
Na Terça-feira partiu a tropa aliada para o campo das Caldas, aonde chegou a divisão portuguesa pelo meio da tarde, ficando acampada na vanguarda da coluna esquerda. Na noite de Terça para Quarta-feira se deram as ordens necessárias para a acção do outro dia, e todos mostraram estarem animados dos mais briosos sentimentos.
A tropa aliada prosseguiu a marcha até a saída de Óbidos, aonde o Exército se dividiu em três colunas, marchando uma pelo centro, outra pela direita, e outra pela esquerda. A pouca distância de Óbidos começou a fazer-se o cerco das montanhas, enquanto a coluna do centro marchava direito ao inimigo, e daí a pouco principiou o fogo dos caçadores sobre os franceses. O inimigo pôs-se em fugida para o sítio aonde tinha a artilharia, que era um monte que descobria todos os campos circunvizinhos, tendo ao mesmo tempo todas as vantagens da posição. Mas os caçadores da tropa aliada apossaram-se de um outro monte, donde fizeram sobre o inimigo um fogo tão vivo e tão bem dirigido que os caçadores do inimigo se puseram em retirada.
Os ingleses avançaram-se ao monte a peito descoberto e com a maior valentia; e o General, vendo que a posição favorecia muito o inimigo, mandou que uma coluna subisse pela direitura a cortá-lo; ao que ele não deu lugar pela precipitada fugida em que se pôs, deixando 2 canhões de grosso calibre. Perderam por fim a posição; mas foram ganhar outra, que apesar de ser inferior à primeira, era contudo muito boa.
Começou aqui o forte da acção, com o fogo dos caçadores; e durou desde as 7 para as 8 horas da manhã até às 5 da tarde. É superior a todo o elogio o valor com que a tropa inglesa se portou, metendo-se por meio dum fogo vivíssimo. Os franceses disputaram por muito tempo o campo, fazendo diferentes movimentos, e voltando por vezes à frente a atacar a coluna; mas viram-se por fim obrigados a uma desordenada fugida, que era protegida por um corpo de caçadores, e deixando o campo de batalha. Fizeram um último esforço para retirar os mortos e feridos, o que não conseguiram tão completamente que não ficassem os campos cobertos deles e de espingardas, espadas, mochilas, etc., etc.
O inimigo atacou o flanco esquerdo da coluna da esquerda; mas os caçadores lhe caíram em cima tão fortemente, que ele desistiu logo, tendo antes despedido três descargas; mas inutilmente, porque nem a um só desta coluna feriu.
A perda dos ingleses não se sabe ao certo; mas é bem pequena, sem dúvida, comparada com o modo descoberto e denodado com que combateram. A coluna do centro foi a única que entrou na acção, a qual descansou neste dia, enquanto o resto continuou a perseguir o inimigo. É tão grande a perda dos inimigos em feridos e prisioneiros, que se destinou um batalhão para os conduzir ao Hospital e às prisões.
Por outras notícias da mesma acção consta chegar a 2.000 homens a perda do inimigo, entre mortos, feridos e prisioneiros; mas esperamos dizer mais circunstanciadamente as particularidades desta acção, e com certeza a perda de ambas as partes.

Por notícias hoje recebidas sabemos ter sido de 150 a 200 homens a perda dos ingleses, e de 1.500 a dos franceses; esperamos um boletim do Exército, que publicaremos logo que chegue.
Consta decerto terem desembarcado em S. Martinho 6.000 ingleses, que tinham chegado à Figueira no comboio que já anunciámos; e neste último porto começaram a desembarcar Sexta-feira 15.000 ingleses, que se vão acampando em Lavos.
Agora mesmo recebemos por uma carta a notícia de que houvera Sábado uma nova acção muito porfiada, mas dedicada a favor do Exército combinado.


Carta do Comendador Joaquim Pais de Sá, enviado ao Quartel-General britânico, ao General Bernardim Freire de Andrade (22 de Agosto de 1808)



Vimeiro, pelas 6 da manhã, 22 de Agosto de 1808.


Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor: 

Chegou Sir Harry Burrard, e com o maior sentimento vejo que Sir Arthur Wellesley, que com bastante sangue frio comandou a acção de ontem, em que os franceses atacando em duas colunas perderam 21 peças (julgo que os carros manchegos são incluídos neste número) de 23 que tinham; 2 Generais, vendo eu [que] Brenier e outros muitos oficiais e soldados, talvez em número de 400 a 500, foram feitos prisioneiros; a mortandade foi grande da parte dos franceses, pois que certamente tiveram 800. Os ingleses só tiveram um oficial de consideração ferido gravemente, o Coronel dos Dragões. Eu achei-me sempre no meio do fogo e das balas, e uma ainda tocou o meu cavalo e outra matou um soldado ao pé de mim. Os franceses ainda são bastantes, mas Junot não chegou ao pé das balas, e se conservou sempre em distância, reunindo-se às suas tropas depois da fugida no caminho daqui para Torres, como eu vi. Os nossos cavalos entraram na acção, morrendo o Comandante Elesiário da Polícia, um Cadete e outros feridos, mas devo dizer que de todos quem merece maior elogio foi o Tenente António Pinto. Creio que ainda hoje aqui se fica, não obstante aqui nada haver, mas penso [que os ingleses] querem desembarcar muita mais tropa, contudo aqui nada já há, nem vinho,  nem pão, nem coisa alguma. Se Vossa Excelência quiser dirigir-me a carta que há de escrever ao General novo [Sir Harry Burrard], eu lha entregarei. Esse soldado* me acompanhou sempre ontem, e poderá contar alguma coisa, mas não lhe acho inteligência para o fazer bem. Rogo-lhe [que] queira mandar logo essa carta ao seu destino.
Sou de Vossa Excelência amigo obrigado e atento criado.

Joaquim Pais de Sá

[P.S.] Agora mesmo recebo a sua carta**, mas como o General não está em casa, não lha posso entregar; logo que ele chegue o farei. Vejo o que o primo D. Miguel diz ao Huett a respeito dos mantimentos; aqui é totalmente impossível havê-los, o que será mais fácil na Lourinhã e nos povos circunvizinhos. 

[Fonte: Luís Henrique Pacheco Simões (org.), "Serie chronologica da correspondencia diplomatica militar mais importante do General Bernardim Freire de Andrade, Commandante em Chefe do Exercito Portuguez destinado ao resgate de Lisboa com a Junta Provisional do Governo Supremo estabelecido na cidade do Porto e o Quartel General do Exercito Auxiliar de S. Magestade Britanica em Portugal", in Boletim do Arquivo Histórico Militar - Vol. I, Lisboa, 1930, pp. 153-227, pp. 197-198 (doc. 30)].
_____________________________________________________________

Nota: 

* Alusão ao portador desta carta a Bernardim Freire de Andrade.


** A referida carta de Bernardim Freire de Andrade a Wellesley não se encontra publicada.

A vila de Torres Vedras desde a partida da família real portuguesa até à derrota dos franceses em Agosto de 1808



Torres Vedras, como cabeça de Comarca, e pouco distante da vila de Mafra e do Real Palácio onde residia o nosso Soberano com a Rainha Sua Augusta Mãe e mais Pessoas Reais, no tempo em que a primeira invasão dos franceses fez determinar o seu ânimo a transferir-se para os vastos domínios da América, foi a primeira em participar da consternação e saudade justamente excitadas pela ausência do nosso adorado Príncipe. Quando os habitantes começavam a lamentar-se de tamanha perda, nos primeiros dias de Dezembro de 1807, logo no dia 6 do mesmo mês de improviso foram constrangidos a franquear quartéis e munições de boca para a tropa de mais de duas brigadas, ou de quase toda a segunda divisão, cujo comando ainda então estava (como o fora pela marcha) provisoriamente no Brigadeiro Charlot, que o largou logo nos dias seguintes ao General Loison, posteriormente chegado de França. No dia 8 do mesmo mês adiantou-se para a praça de Peniche o General de Brigada Thomiers com dois batalhões, e passados alguns dias retrocederam dois para Mafra, onde Loison estabeleceu ordinariamente o seu Quartel-General, e permaneceram aqui fixos os dois Batalhões dos Regimentos 12 e 15 de infantaria ligeira, que avultavam a perto de três mil homens, debaixo das imediatas ordens do Brigadeiro Charlot. 
Nos primeiros dias padeceu esta vila não só os gravíssimos incómodos do alojamento, mas quase todo o peso das requisições para a inteira subsistência da tropa; ainda mesmo depois que o seu fornecimento esteve à conta dos contratadores, continuou a haver diversas requisições para o tratamento dos Generais, entre os quais se distinguiu pela sua parcimónia e desinteresse o mencionado General Charlot, merecendo por isso, e pelas disposições pacíficas que constantemente mostrou, ser com justiça reputado o mais humano dos empregados franceses que vieram a Portugal. 
A sua moderação contribuiu em grande parte para a glória de que com ufania pode jactar-se esta vila de haver negado o menor obséquio público ao intruso Governo francês, de que não podem desvanecer-se outras maiores povoações, que aliás não gemiam debaixo da força militar. Igualmente contribuiu ela para nunca se interromperem as funções do culto, nem mesmo a do Natal, e para se fazerem com boa ordem, e até com esplendor. Quando chegou o tempo mais quente, fez o General aliviar a vila dalgum peso de tropa, mandando destacar duas Companhias para a da Lourinhã, e duas para o lugar do Turcifal. Enfim, nos últimos dias de Maio levantou-se o quartel do General Charlot, quando partiu com o Batalhão do Regimento 12, e com os outros que estavam em Mafra, para a frustrada expedição do Douro e Porto comandada por Loison. Pelo mesmo tempo se transferiu o Batalhão do Regimento 15 para Mafra, e veio para aqui um dos alojados na praça de Peniche, de que era Comandante o Major Bertrand, o qual apenas se demorou um dia. Desde então ficou esta vila aliviada de tropa efectiva; mas não deixou de ser frequentada e incomodada por alguns destacamentos, pelo trânsito dos Oficiais do Estado-Maior, e também de vários corpos do Exército*.
Foi nesta ocasião que principiaram a chegar pouco a pouco as noticias de que a expedição do General Loison se tinha malogrado, e que as províncias do norte se davam as mãos para destruir o intruso governo e proclamar o nosso legitimo Soberano; soube-se depois que este heróico entusiasmo já chegava à cidade de Leiria, e que bem depressa as outras povoações da Estremadura, ainda oprimidas pelo inimigo, poderiam patentear os seus verdadeiros sentimentos. Esperava-se com impaciência a aproximação do Exército nacional, auxiliado com o socorro que se dizia chegado de Inglaterra, mas a demora e a incerteza das notícias concorriam para a geral ansiedade. Enfim, quando já mal se acreditavam estes boatos, de repente, na tarde de 17 de Agosto de 1808, constou da batalha da Roliça, ou mais propriamente da Zambujeira (em cuja eminente e vantajosa posição se achava o inimigo) pelos que se retiravam feridos do Exército, e por alguns prisioneiros que aqui vieram pernoitar, escoltados por uma patrulha comandada pelo Capitão Pitton do Corpo da Polícia [de Lisboa]. Nessa acção era comandado o corpo da tropa francesa pelo General Delaborde, o qual, vendo-se obrigado a retirar-se depois de sustentar o resto do dia com evoluções, se aproveitou da noite para largar de todo o campo, e tomou a estrada que diante da quinta da Bugalheira se dirige a Runa, onde descansou poucas horas, prosseguindo a marcha pelo caminho [do Outeiro] da Cabeça, Enquanto o corpo principal seguia esta derrota, não deixavam de passar pela vila em toda a noite soldados dispersos, que eram outras tantas testemunhas evidentes da vitória dos nossos aliados; pediu ela sem dúvida públicos aplausos, porém houve a necessária prudência em sufocá-los, o que serviu para livrar a vila dalgum severo castigo; pois assim mesmo o General Junot se mostrou ressentido, e pediu satisfação por serem maltratados os seus soldados, talvez somente ofendidos pelas mostras de júbilo que viam em todas as fisionomias pela sua derrota. Quando se pensava que no seguinte dia 18 de Agosto entraria o Exército aliado, esperado com tanto alvoroço, aconteceu ao contrário espalhar-se o susto e perturbação, pela notícia de que vinha próximo todo o Exército francês, e na frente dele o mesmo General em Chefe, e que com rigorosas ordens se mandavam aprontar quartéis, víveres e forragens. Foi o primeiro mensageiro desta notícia o Meirinho, que então era do Provedor da comarca, o qual, recolhendo-se na inteligência de achar a capital da comarca restaurada, veio encontrar-se com o Exército francês, e teve de executar as ordens de Junot. Este General entrou com o seu Estado-Maior pelas três horas da tarde do indicado dia 18, rodeado dos Generais quase todos e de uma forte escolta de cavalaria, a qual se dividiu e ocupou logo todas as entradas da vila, não se permitindo a saída de alguém sem guia ou passaporte do Comandante da praça, que então foi o Chefe dos Gens d'armes [sic]. Somente os Oficiais do Estado-Maior tiveram alojamentos, porque os dos corpos ficaram com os mesmos sobre os campos vizinhos. Concorreram aqui muitos indivíduos não militares, uns por empregados e unidos ao Exército nas suas diversas repartições, e outros meramente por buscarem o seu abrigo, receosos de serem sacrificados ao seu furor nas pequenas povoações. Ainda que nos armazéns existissem alguns sobressalentes do antigo fornecimento, nada eram para suprir às urgências de um Exército que se computava em 20.000 homens sem contar os seus agregados: por isso foram indispensáveis as requisições violentas para a entrega dos géneros necessários; as quais, para mais pronto efeito, se faziam por pregões, ameaçando-se os habitantes que se subtraíssem com as penas de morte e do incêndio das suas casas, que seriam examinadas. No dia 19 de tarde saiu pela estrada da Lourinhã Junot com os outros Generais (entrando nesse número Delaborde, que já se lhe havia reunido) e com os seus respectivos ajudantes a observar a situação do Exército aliado. Não dava indícios de entrar em combate com tanta brevidade como depois determinou, talvez movido pelas notícias de que se via o mar coberto de transportes na altura correspondente ao Vimeiro, que era a posição tomada pelo Exército inglês: o certo é que na tarde do dia 20 convocou os Generais a conselho, e o resultado foi levantar-se rapidamente a tropa, e começar a marchar depois das cinco horas pela mesma estrada da Lourinhã. Na manhã deste dia alguns soldados extraviados haviam roubado o Convento dos Religiosos Arrábidos do Barro, penetrando até ao sacrário, e espalhando as sagradas partículas sobre o pavimento da capela mor**. Enquanto se cometia este horroroso desacato, tinha o General Junot mandado matar dois mendigos desconhecidos, um deles espanhol idoso, o outro asiático coxo, que foram presos como suspeitos de espiões; outro miserável da mesma fortuna, residente nesta vila e quase cego, que estava juntamente preso, escapou de experimentar igual sorte pela liberdade e veemência com que falou em sua defesa o Desembargador Vigário da Vara chamado por ordem positiva de Junot para interrogar os presos, e depor da sua conduta, e para ser espectador da injusta e bárbara morte que tiveram, sem que fossem convencidos do crime imputado nem admitidos a algum preparo cristão, e nem de modo algum tratados como homens, mas antes como feras pela indiferença e avidez de matá-los; bem fácil é de ver que esta crueldade foi cometida para exemplo que indicasse como seria castigada qualquer comunicação com o Exército aliado; mas ao mesmo tempo que se empregavam tais meios próprios da cobardia, doutra parte se anunciava com arrogância que os ingleses, menos felizes no campo que no mar, seriam depressa derrotados e reduzidos à extremidade de embaraçar-se, cedendo a vitória, que se contava por certa, e como tal era aplaudida na noite antecedente com luminárias obrigadas por ordem do mesmo Junot. 
No dia 21 de Agosto pelas 9 horas da manhã começou a ouvir-se o estrondo de artilharia; no primeiro tempo do combate vieram notícias agradáveis aos franceses; mas não tardou muito que lhes chegassem outras, com que se mostraram descontentes, posto que ainda alentados, ao menos aparentemente; enfim correram os boatos duma derrota completa, que se viam verificados pelos estragos, e até depois pela própria confissão dos que se recolhiam do campo. A tropa entrou de noite, e buscou acampar-se como antes de ir para a batalha. No dia seguinte viam-se companhias comandadas por um cabo de esquadra (tal havia sido a carnagem na oficialidade); e todo o grande trem de artilharia reduzido a três carretas. Apesar de ser tão visível e avultado o destroço, ainda Junot se ocupava com a impostura de fazer iluminar a vila em aplauso da vitória, e seguindo igual rotina se ocupava o impudente Lagarde em remeter ao Juiz pela Ordenação, que então servia, um ofício enviando-lhe juntamente o Boletim do Exército, e recomendando-lhe que só acreditasse o que ele lhe dizia. No meio de imposturas tão ridículas, não se ocultava o temor, confusão e impaciência de Junot. Ele logo na manhã do dia 22 chamou ao seu quartel os Generais e lhes propôs pedir capitulação, o que foi adoptado, e por ter sido admitida pelos vencedores, salvou aqueles, e privou estes do triunfo mais completo e importante, o qual parecia livre de contingência à vista da grande perda do inimigo, e muito mais subindo consideravelmente a força do Exército inglês com os reforços recebidos no mesmo tempo da batalha pelo pasmoso desembarque que se efectuou no sítio do Porto Novo, ou na foz do rio do Vimeiro***. Apenas haveria três meses depois que o General Charlot tinha corrido a costa, e recolhendo-se de observá-la, dissera é de ferro e não há que temer desembarque.
Foi encarregado de negociar a capitulação o General Kellermann, e enquanto este partia para o Quartel-General inglês, saiu Junot para Lisboa, onde conseguiu entrar na atitude de vitorioso. Logo nessa tarde saíram as Divisões com os seus respectivos Generais à frente, tomando Loison a estrada de Mafra, onde parou, e Delaborde a da Cabeça de Montachique, ficando a vila quase evacuada e limpa de tropa inimiga. 
Pouco tinha faltado para que as avançadas inglesas fossem surpreendidas antes da batalha do dia 21, e talvez não o fossem (segundo então se referiu) pelo aviso que um camponês honrado teve a advertência de fazer-lhes; mas este descuido trocou-se em vigilância e pressentimento excessivo (se pode haver excesso em objecto tão importante e arriscado) no dia seguinte, tomando-se o aparecimento do General Kellerman, que se encaminhava a negociar a capitulação, como indício da marcha ou do alinhamento do Exército inimigo para nova acção; desta conjectura resultou expedir-se ordem ao nosso General Bernardim Freire de Andrade para adiantar-se da Lourinhã e manobrar com o Exército aliado, o que começava a executar-se, e se teria efectuado com a maior satisfação da tropa portuguesa, impaciente de bater-se com o inimigo, se conhecendo-se o engano não houvesse contra ordem para se conservar tranquilo. Nos preliminares da capitulação foi o rio Sizandro constituído linha de separação do terreno em que deviam conter-se os dois Exércitos, e Torres Vedras ficou neutral; assim tanto que o Exército inglês se adiantou para as alturas daquém do Ameal (fixando os Generais os seus quartéis nesse lugar, e ainda mais no do Ramalhal) começou a ser inundada de gente anexa ao Exército, recebida com vivíssimo entusiasmo e prazer; e apesar da suposta neutralidade, houve sem demora sinceras e voluntárias demonstrações de contentamento pela vitória e comunicação dos aliados. As autoridades da vila foram logo cumprimentar os Generais ingleses, e de todas as vizinhanças concorriam numerosos ranchos de pessoas, até do sexo feminino, a observar o campo da batalha, o admirável espectáculo do comboio estacionado defronte do Porto Novo, e a brilhante linha e revista do Exército aliado. 
No segundo dia em que se desfrutava tanto prazer, houve um incidente que o perturbou, e foi o rumor de que retrocedia o Exército inimigo, e já se viam as suas avançadas; por cujo motivo as famílias receosas das crueldades que decerto experimentariam, procuraram precipitadamente ao menos a segurança das vidas com a fuga para a retaguarda da linha inglesa. Isto aconteceu perto da noite, tempo ainda mais oportuno para sofrerem saque as casas abandonadas; porém, felizmente desvaneceu-se este rebate, e até se escapou do menor roubo, sem que se fizessem por isso muito sensíveis os incómodos de marchar a pé uma grande légua, e de pernoitar no campo numa tão bela estação. 
No intervalo em que se arranjavam definitivamente os artigos da capitulação, adiantou-se mais o Exército inglês a ocupar as alturas situadas ao norte da vila, desde o lugar de Sarge até adiante do do Paul, e os Generais tomaram quartéis nas casas mais proporcionadas. Ao mesmo tempo adiantou-se pelo flanco direito o Exército nacional vindo da Lourinhã para o lugar da Encarnação, donde ultimamente passou para Mafra na mesma ocasião em que o Exército inglês dividido marchou pelas estradas do Sobral, e Bucelas, e pela da Enxara dos Cavaleiros, prosseguindo até ocupar a capital. Em Mafra foi exemplar a modéstia e delicadeza com que o General Bernardim Freire se absteve de tomar quarto no andar nobre do Palácio onde habitavam os Soberanos, não obstante achar-se devassado pelo Quartel-General francês; e não foi menos para louvar a obediência com que o Exército do seu comando, muito a seu pesar, conteve o impulso de perseguir o inimigo e de reduzi-lo à extremidade de entregar-se à discrição. 
Pelo que temos dito fica manifesto que sobre esta vila e seus contornos carregou por dias o peso de três Exércitos (contando-se o nacional por duas vezes, sendo a segunda quando se retirou para as províncias); e apesar dos estragos causados nos frutos que ainda se recolhiam e estavam pendentes, tal é a fertilidade do terreno e tal foi a particular abundância daquele ano, que se supriu ao fornecimento da tropa, e não padeceram falta os habitantes. 

[Fonte: Manuel Agostinho Madeira Torres, "Descripção Historica e Economica da Villa e Termo de Torres-Vedras", in Memorias [dos Correspondentesda Academia Real das Sciencias de Lisboa - Tomo VI. Parte I, Lisboa, na Typografia da mesma Academia, 1819, pp. 12-138, pp. 82-90. As notas foram retiradas da 2.ª edição: Coimbra, Imprensa da Universidade, 1861, pp. 164-176].


_________________________________________________________

Notas:

* Antes de passarmos mais adiante, devemos deixar aqui declarado que foi neste ano de 1808 que os franceses deram o saque geral das pratas às igrejas deste Reino, e que a parte que nele tocou às igrejas paroquiais, às dos conventos, e às ermidas desta comarca foi de 5.469 marcos e 5 onças de prata [= 1255,277 gramas]; e 1 onça, 5 oitavas e 36 grãos de ouro [= 0,0477 gramas], de cuja arrecadação foi encarregado o Corregedor da comarca José da Cunha Fialho, sendo aqui nomeado por Tesoureiro o negociante Arsénio Francisco de Carvalho, que tudo entregou em Lisboa na Casa da Moeda, e tudo consta do Livro privativo que se criou para tal arrecadação, existente no Arquivo da Câmara desta vila. É assaz curioso este Livro, porque dele se vê com toda a miudeza a quantidade e qualidade das alfaias de prata, roubadas a cada uma das ditas igrejas e ermidas, e a riqueza que possuíam, sobretudo as Irmandades do Santíssimo, até as das aldeias, em lâmpadas, canudos para as varas do pálio, lanternas, banquetas de castiçais, turíbulos, navetas, caldeirinhas, galhetas, vasos do lavatório, etc. A dita prata e ouro reduzida a dinheiro somava a enorme quantia de 35.000.600 réis. Poucas foram, mas algumas houve, as igrejas em que alguma prata ou toda escapou por esquecimento de a pedirem, ou ter sido ocultada. Na contribuição chamada de guerra exigida pelos mesmos à classe comercial, e cuja cobrança foi encarregada à Junta de Comércio, coube a este concelho a quantia de três contos de réis, e à comarca oito contos. Livro 24 dos Acórdãos, fl. 161. [Nota dos editores]. 

** Por este motivo em desagravo do Santíssimo Sacramento, se fazia neste Convento até ser extinto uma solene festividade no domingo imediato ao dia 15 de Agosto de cada ano; e ainda nos nossos dias ia desta vila um terço de penitência ao dito Convento em tal ocasião. [Nota dos editores].

*** Este nome do Porto Novo deve a sua origem, segundo a tradição daqueles sítios, ao ter-se aberto para dar saída ou servir de foz ao rio Alcobrichel, abandonando-se o álveo e foz antiga, que ia em volta; o Engenheiro que o abriu por empreitada, segundo a mesma tradição, chegando a achar um grande lajedo molar já ao nível do álveo do rio, diz-se ter fugido e abandonado a obra; e assim não se profundou mais esta nova foz, que se o tivesse sido como se desejava, faria uma das mais belas baías naquela costa, abrigada como é, de norte e sul, por dois cabos. [Nota dos editores].