Excelentíssimo e Reverendíssimo Senhor:
Graças ao Altíssimo! No dia 18 do corrente e à uma hora depois da meia-noite entrou nesta casa o Primeiro Tenente Francisco Gonçalves da Costa, e me entregou o maço que Vossa Excelência lhe confiou, e que continha a carta de ofício de 7 de Julho e o manifesto da mesma data, e a cópia do Tratado feito com o reino de Galiza a 4 [sic] de Julho.
Qual fosse o alvoroço com que recebi as primeiras notícias directas dos movimentos que tinha havido em Portugal, deixo a Vossa Excelência a julgar. Eu não o posso expressar com palavras.
Graças ao Altíssimo!, torno a repetir; graças ao digno Ministro do Altar, que tão gloriosamente anima com o seu exemplo aqueles fiéis vassalos que sacudiram o jugo estranho e aclamaram de novo o seu legítimo Soberano!
Vossa Excelência não pode duvidar da prontidão com que eu faria e fiz na manhã seguinte presentes a este Ministério os ofícios e mais papéis que Vossa Excelência me remeteu. Eu não omiti de fazer observar a estes Ministros de Estado a felicíssima disposição dos ânimos, tanto dos moradores dessa cidade em requerer logo a instituição de um Governo em nome do Príncipe Regente Nosso Senhor, como a muito e muito louvável prontidão com que os habitantes das três províncias do norte se uniram e submeteram ao Governo instituído nessa cidade, como cabeça das três províncias do norte e do reino enquanto a capital não está livre.
Que júbilo, que satisfação provará Sua Alteza Real, quando souber o ardor com que os seus vassalos aproveitaram o primeiro instante que puderam para tornar ao seu amado e legítimo domínio.
Depois de ser o primeiro Ministro de Sua Alteza Real a reconhecer uma autoridade tão nobremente fundada como a do Supremo Governo do Porto, e antes que eu exponha a Vossa Excelência o que este Ministério resolveu, seja-me lícito recomendar a Vossa Excelência e a todos os membros desse Governo o mesmo princípio que estou certo que está bem impresso nas suas almas, que é o de conservar por todos os modos possíveis a união de todos os ânimos para o único fim da restauração do reino, instruindo e aclarando o povo, para que, conhecendo que o seu interesse e a sua força dependem da íntima união entre si e com o Governo, facilitem a pronta formação de um exército e de um erário, e conservem no primeiro não somente o valor, que é qualidade inata dos portugueses, mas a subordinação, de cuja falta pode resultar a total ruína do reino.
Vossa Excelência e os membros do Supremo Conselho acharam na resposta que me deu mr. Canning, Ministro dos Negócios Estrangeiros, com data de 27 do corrente, que as suas proposições foram quase por inteiro atendidas, e já a estas horas se achará sobre essas costas um exército inglês comandado por Sir Arthur Wellesley, que sendo composto de dez mil homens, vai ser consideravelmente reforçado; e por esta ocasião dos reforços que se mandam, irá o dinheiro que se pode alcançar por ora, pólvora, espadas, e creio que o fardamento.
Vossa Excelência e os membros do Supremo Governo podem ficar certos que eu não perderei um momento para acelerar a expedição de tudo, e creio que o ex-cônsul William Warre* será rogado de passar a essa cidade para o manejo dos dinheiros e facilitar as remessas em letras, porque a dificuldade de achar moeda metálica é a maior.
Quanto ao General estrangeiro, escreverei a Vossa Excelência noutra carta, e talvez por ocasião mais particular. É um objecto este muito delicado. Vossa Excelência faria bem de ver se se remediava com os nacionais; se acha algum que tenha os talentos necessários, e que se entenda com os ingleses que ali vão.
Na carta anexa achará Vossa Excelência mais particularidades.
Incluo a minha nota a mr. Canning, a sua resposta em inglês, [e] a tradução da mesma.
Deus Guarde a Vossa Excelência muitos anos.
Londres, 28 de Julho de 1808.
P.S. Na manhã seguinte chegou J. G. Braasch, que me entregou a carta de Vossa Excelência de 2 de Julho; e ainda que veio depois de Francisco Gonçalves da Costa, contudo como ele largou o seu navio no mar, e num barco veio a terra, julguei-me obrigado a pagar-lhe a despesa que alegou que tinha feito com uma carta do real serviço, e que foi de libras 83-12, de que junto o recibo.
D. Domingos António de Sousa Coutinho
[Fonte: Julio Firmino Judice Biker, Supplemento á Collecção dos Tratados, Convenções, Contratos e Actos Publicos celebrados entre a Corôa de Portugal e as mais Potencias desde 1640 - Tomo XVI, Lisboa, Imprensa Nacional, 1878, pp. 18-20].
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Nota:
* G.me [Guilherme] Warre, no texto original. A família Warre detinha uma das mais antigas e mais importantes companhias vinícolas inglesas estabelecidas no Porto, a Warre's, cujos sócios tinham regressado à Inglaterra na iminência da chamada primeira invasão francesa a Portugal. Por curiosidade, um sobrinho do referido ex-cônsul William Warre, de nome homónimo e natural da própria cidade do Porto, acompanhava nesta data a expedição do General Wellesley a Portugal, cujas forças desembarcariam em Lavos entre os dias 1 e 3 de Agosto de 1808. Nos dias e anos seguintes, este último William Warre viria a participar activamente em alguns dos episódios mais conhecidos das guerras peninsulares, descritos pelas suas próprias palavras em diversas cartas que durante este período remeteu a familiares e amigos seus, cartas estas que viriam a ser publicadas anos mais tarde pelo seu sobrinho Edmond Warre: Letters from the Peninsula - 1808-1812, London, John Murray, 1909. Depois de reeditada em 1999, com anotações de William Acheson Warre, sobrinho-bisneto do autor, foi esta reedição traduzida e publicada finalmente em português: William Warre, Cartas da Península - 1808-1812, Lisboa, Alêtheia, 2009.